Fabrice Luchini e Sidse Babett Knudsen em "A Corte" |
Não é preciso ser
religioso ou místico para saber que milagres – às vezes – acontecem. Na vida e
na arte. O novo filme do (já algo veterano) cineasta francês Christian Vincent,
"A Corte", é um exemplo de milagre artístico – ou, mais especificamente, de milagre cinematográfico.
O filme começa com
um personagem estilo homem comum (Fabrice
Luchini, melhor ator no Festival de Veneza 2015), que percebe que pegou um
forte resfriado. Ele morde uma maçã e repara que ela está bichada – mas dá de
ombros, joga a parte podre fora, e engole o resto. Um pouco mais tarde, ele
chega ao trabalho e entreouve pessoas falando mal dele pelas costas.
Descobrimos, enfim, que ele é um juiz e que naquele dia julgará um caso de um rapaz
inconsequente, acusado de matar seu próprio bebê.
Depois de mais de
15 minutos diante de coisas sem importância, finalmente o espectador se vê perante
o que parece ser o real "tema" do filme: o assassinato da criança. Mas só
alguns minutinhos depois, o caso é surpreendentemente abandonado, e o filme
volta à pasmaceira da vida comum, acompanhando os membros do júri em uma
refeição, ao redor de uma mesa. Cada um se apresenta e fala um pouco de si – nenhum
deles tem nada de excepcional. E a história segue adiante, com a câmera dando atenção
a detalhes que, tradicionalmente, ignoraria (como o bicho da maçã). Apenas eventualmente retorna à corte, ao caso do bebê assassinado, mas o centro do longa definitivamente não é esse.
O filme lida com cada
uma dessas informações com o mesmo grau de interesse – ou deveria eu dizer de "indiferença"?
Afinal, no filme, coisas irrelevantes, pequenas, cotidianas, têm o mesmo peso dos "grandes temas", aqueles capazes de levar pessoas ao tribunal. Tudo e qualquer coisa é
importante para a câmera de Vincent – mas nada é tão importante assim, no fim
das contas...
O milagre está bem
aí: como Vincent consegue a proeza de fazer o espectador acompanhar a tudo isso
(esse naco enorme de vida cotidiana na tela), prestando atenção quase
encantatória e com o mesmo nível e interesse a tudo o que ele quer mostrar? Porque o diretor meio que hipnotiza o
público desde o começo: apenas seguimos, absortos, o filme aonde quer que ele
nos leve. E mesmo as partes "entediantes", os aspectos sem interesse da vida,
parecem ter algum fascínio cinemático ali. Talvez pelo simples fato de Vincent
não tratar nada com muita reverência – ele parece escolher o que filmar com o
mesmo princípio que um espectador indolente zapeia uma TV no domingo; vai de canal em canal, com algum interesse (mas não muito) por
qualquer coisa que apareça pela frente – ao menos até se cansar e clicar novamente no
controle remoto.
Vincent transita
entre as partes tradicionalmente "relevantes" e as dispensáveis com tanta
desenvoltura que, ao fim do filme, percebemos que talvez nós nos importemos
mais com as coisas pequenas e "sem graça" do que com as mais solenes. A questão
é: como ele conseguiu isso? É ainda mais enigmático porque o estilo de Vincent
não tem nada de especificamente interessante ou especial; o filme não é
esteticamente bonito ou sequer expressivo. É um nada de um filme, mas estranhamente prazeroso, facilmente assistível. Chega-se ao fim de "A Corte" achando que ele poderia ter durado mais horas e horas; é possível que nosso interesse se mantivesse o mesmo. Se isso não é um milagre artístico, então eu não sei o que é.
Vincent fez algum
sucesso na França com o frescor de seus filmes no começo dos anos 90, como "La
Discrète" – ele fez parte do que alguns teóricos franceses chamam de Jeune Cinéma Français. Seu novo
filme, embora intencionalmente busque poesia na simplicidade desde o roteiro
(que também foi premiado em Veneza), não o faz de maneira forçada, ostensiva. Tudo
parece acidental; as coisas simplesmente (não) acontecem e é como se tivessem sido incluídas no filme porque, por sorte, alguém estava lá para filmar. O romance não concretizado entre o juiz e uma das juradas (a dinamarquesa Sidse Babett Knudsen, magnética em sua beleza discreta) é o
que a obra tem de mais próximo a um frisson – mas mesmo isso não é imposto pelo
diretor como algo que mereça mais atenção ou simpatia do que as outras cosias da vida. Também
aquilo, no fundo, não é tão especial assim. Nada é importante e tudo é
importante: talvez essa seja a grande moral – ou talvez lição – deste pequeno milagre chamado "A Corte".