quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Crítica: "A Corte"

(L'Hermine, 2015), de Christian Vincent

Fabrice Luchini e Sidse Babett Knudsen em "A Corte"

Não é preciso ser religioso ou místico para saber que milagres – às vezes – acontecem. Na vida e na arte. O novo filme do (já algo veterano) cineasta francês Christian Vincent, "A Corte", é um exemplo de milagre artístico – ou, mais especificamente, de milagre cinematográfico.

O filme começa com um personagem estilo homem comum (Fabrice Luchini, melhor ator no Festival de Veneza 2015), que percebe que pegou um forte resfriado. Ele morde uma maçã e repara que ela está bichada – mas dá de ombros, joga a parte podre fora, e engole o resto. Um pouco mais tarde, ele chega ao trabalho e entreouve pessoas falando mal dele pelas costas. Descobrimos, enfim, que ele é um juiz e que naquele dia julgará um caso de um rapaz inconsequente, acusado de matar seu próprio bebê.

Depois de mais de 15 minutos diante de coisas sem importância, finalmente o espectador se vê perante o que parece ser o real "tema" do filme: o assassinato da criança. Mas só alguns minutinhos depois, o caso é surpreendentemente abandonado, e o filme volta à pasmaceira da vida comum, acompanhando os membros do júri em uma refeição, ao redor de uma mesa. Cada um se apresenta e fala um pouco de si – nenhum deles tem nada de excepcional. E a história segue adiante, com a câmera dando atenção a detalhes que, tradicionalmente, ignoraria (como o bicho da maçã). Apenas eventualmente retorna à corte, ao caso do bebê assassinado, mas o centro do longa definitivamente não é esse.

O filme lida com cada uma dessas informações com o mesmo grau de interesse – ou deveria eu dizer de "indiferença"? Afinal, no filme, coisas irrelevantes, pequenas, cotidianas, têm o mesmo peso dos "grandes temas", aqueles capazes de levar pessoas ao tribunal. Tudo e qualquer coisa é importante para a câmera de Vincent – mas nada é tão importante assim, no fim das contas...

O milagre está bem aí: como Vincent consegue a proeza de fazer o espectador acompanhar a tudo isso (esse naco enorme de vida cotidiana na tela), prestando atenção quase encantatória e com o mesmo nível e interesse a tudo o que ele quer mostrar? Porque o diretor meio que hipnotiza o público desde o começo: apenas seguimos, absortos, o filme aonde quer que ele nos leve. E mesmo as partes "entediantes", os aspectos sem interesse da vida, parecem ter algum fascínio cinemático ali. Talvez pelo simples fato de Vincent não tratar nada com muita reverência – ele parece escolher o que filmar com o mesmo princípio que um espectador indolente zapeia uma TV no domingo; vai de canal em canal, com algum interesse (mas não muito) por qualquer coisa que apareça pela frente – ao menos até se cansar e clicar novamente no controle remoto.

Vincent transita entre as partes tradicionalmente "relevantes" e as dispensáveis com tanta desenvoltura que, ao fim do filme, percebemos que talvez nós nos importemos mais com as coisas pequenas e "sem graça" do que com as mais solenes. A questão é: como ele conseguiu isso? É ainda mais enigmático porque o estilo de Vincent não tem nada de especificamente interessante ou especial; o filme não é esteticamente bonito ou sequer expressivo. É um nada de um filme, mas estranhamente prazeroso, facilmente assistível. Chega-se ao fim de "A Corte" achando que ele poderia ter durado mais horas e horas; é possível que nosso interesse se mantivesse o mesmo. Se isso não é um milagre artístico, então eu não sei o que é.

Vincent fez algum sucesso na França com o frescor de seus filmes no começo dos anos 90, como "La Discrète" – ele fez parte do que alguns teóricos franceses chamam de Jeune Cinéma Français. Seu novo filme, embora intencionalmente busque poesia na simplicidade desde o roteiro (que também foi premiado em Veneza), não o faz de maneira forçada, ostensiva. Tudo parece acidental; as coisas simplesmente (não) acontecem e é como se tivessem sido incluídas no filme porque, por sorte, alguém estava lá para filmar. O romance não concretizado entre o juiz e uma das juradas (a dinamarquesa Sidse Babett Knudsen, magnética em sua beleza discreta) é o que a obra tem de mais próximo a um frisson – mas mesmo isso não é imposto pelo diretor como algo que mereça mais atenção ou simpatia do que as outras cosias da vida. Também aquilo, no fundo, não é tão especial assim. Nada é importante e tudo é importante: talvez essa seja a grande moral – ou talvez lição – deste pequeno milagre chamado "A Corte".