quinta-feira, 22 de março de 2018

Crítica: "Aniquilação"

(Annihilation, 2018), de Alex Garland
Jennifer Jason Leigh e Natalie Portman em "Aniquilação"
Portentoso ensaio sobre mentes culpadas e instinto autodestrutivo, "Aniquilação" é uma (quase sempre) eficiente ficção científica com pretensões existencialistas. No nome original em inglês, Annihilation, fica um pouco mais fácil perceber que a palavra-título tem o mesmo o radical (‘nihil’) de ‘nihilism’ (niilismo), o que diz muito sobre o cerne deste segundo longa de Alex Garland. Os personagens são todos meio assim, niilistas, sem grandes pretensões ou expectativas e em busca de autoanulação. Embrenham-se em desafios como forma de se punir por algum problema pessoal ("O ser humano está sempre se destruindo", diz a psicóloga do longa, com ares metafísicos que seriam mais apropriados a uma filósofa). Até os seres extraterrestres, embora sejam uma alegoria dos humanos, não têm maiores ambições e estão meio perdidos na Terra, apenas repetindo estruturas e comportamentos ao seu redor.

A trama gira em torno de uma expedição a um local isolado, mantido em segredo por suspeitas de estar dominado por forças sobrenaturais, talvez alienígenas. Mas como o roteiro é muito preocupado em ter alguma substância, para cada percalço fantasioso enfrentado no caminho, são recitadas ao menos umas três metáforas científicas sobre a condição humana – justificadas na trama pelo fato de a protagonista ser uma bióloga. Mas como ela precisa de uma hora para a outra bancar a heroína em perigosos desafios físicos, o script se encarregou também de torná-la também uma ex-soldado do Exército. Os autores (na verdade, apenas Garland é creditado como roteirista), como se percebe, fizeram o dever de casa nos (provavelmente vários) laboratórios de roteiro.


Os roteiristas são tão aplicados que, além de uma questão "profunda" sobre a humanidade, deram todo um ar de "calor do momento" ao filme ao optar por uma trama empoderadora de mulheres. Após repetidos fracassos de decifrar o que se passa no tal local isolado, equipes masculinas foram substituídas por um grupo de cinco mulheres (com representantes de diferentes etnias, idades e preferências sexuais) que, enfim!, conseguem desvendar o mistério.


As exigências identitárias modernas de representatividade são o que de mais revolucionário aconteceu nas artes nos últimos cinco anos, e é uma grande alegria que tenha sido assim. Para além da questão da representação em si, existe um certo frescor em ver um grupo feminino enfrentando monstros e os percalços mais diversos em um ambiente violento, e isso é muito bem-vindo. Mas há um efeito colateral meio desagradável nisso tudo: há sempre uma artificialidade meio constrangedora nos filmes que se dedicam com muito afinco a atender a todas as exigências modernas; como sempre são calculados demais para não incorrerem em equívocos que possam desagradar certos grupos, há uma terrível falta de espontaneidade na maioria dessas produções. E como se "Aniquilação" já não parecesse suficientemente o fruto de várias oficinas de roteiro, as questões empoderantes só agravam essa sensação.

Menos mal, no entanto – ao menos a causa é boa. E é preciso reconhecer que, em certos instantes, as mulheres de "Aniquilação" formam um bom time. Sim: as atrizes menos conhecidas pegaram os papeis piores, como sempre, mas as duas estrelas femininas justificam sua falas mais trabalhadas. Natalie Portman (a bióloga/soldada - e praticamente uma superheroína) tem a habilidade de se sair com a mesma desenvoltura tanto em cenas intimistas quanto nas que envolvem dinamismo; ela se mostra a atriz ideal para o papel. E Jennifer Jason Leigh, como a psicóloga amalucada (mas sempre seríssima) do bando, é muito engraçada quando, na expedição, pontua os resmungos das colegas com observações inusitadamente pragmáticas; ditas com sua voz elástica e característica, as falas dão uma comicidade (provavelmente involuntária) saudável ao filme, quando este começa a ficar depressivo demais em meio a tanto "niilismo" imposto pelos script doctors.  

Entre os homens, Oscar Isaac, como o marido de Portman dado como morto que reaparece subitamente, surge poucas vezes na tela. Melhor assim: o filme quase hiberna quando ele entra em cena. É um ator de recursos, mas que precisa de um tipo específico de personagem para mostrar do que é capaz. Ele sempre se sai bem em papeis ativos, dinâmicos, até próximos do histriônico, que é quando pode usar sua energia e os olhos vivazes de uma maneira proveitosa, eficiente. Mas quando precisa interpretar um sujeito retraído ou moribundo (como no filme), o resultado pode beirar o desastre. (O olhar "intenso" se converte em canastrice). Também nesse ponto, a opção do filme por protagonistas mulheres foi um acerto.

Por fim, vale dizer que, em termos visuais, o longa custa um pouco a se impor, mas termina bastante satisfatório. Enquanto as moças desbravam a área tomada por ETs, a imaginação dos desenhistas de produção parece meio tímida, sem ousadia. Só bem mais perto do fim, eles liberam realmente a criatividade (embora a única parte de fato visualmente deslumbrante sejam os créditos finais). Os efeitos especiais, ao contrário, são desde o início impecáveis, mas talvez seja porque o filme só poderá ser visto em telas reduzidas. E "Aniquilação", se apesar do esforço não traz exatamente nenhum recado que vai a mudar a vida de ninguém, ao menos nos apresenta uma verdade positiva sobre os filmes nascidos especificamente para o streaming: na tela reduzida de computador, jamais vamos reparar nas falhas de efeitos especiais que tantas vezes são gritantes quando assistimos a um filme na tela grande.





quarta-feira, 14 de março de 2018

Sylvio Back, ruptura com a História

O texto a seguir faz parte de "Documentário Brasileiro: 100 Filmes Essenciais" (2017, ed. Letramento), livro da Abraccine com ensaios de vários críticos sobre nossos maiores filmes documentais e diretores da área. Dois são de minha autoria: uma crítica ao filme "Cinema Novo", de Eryk Rocha, e uma análise da obra de Sylvio Back, esta última reproduzida abaixo.

Paulo Leminski em cena de "Vida e Sangue de Polaco", de Sylvio Back

Segundo o teórico Marc Ferro, os filmes, enquanto contribuição para as narrativas históricas, muitas vezes têm o poder de funcionar antes como elementos formadores de uma "contra-história" do que propriamente de peças complementares para aquela tida como "oficial". É sempre possível, na tela, apresentar versões novas, inéditas – ou antes impensáveis –, sobre fatos que já dávamos como incontestes, de tão cristalizados que estavam em nosso imaginário pelo poder impositivo das narrativas escritas ou mesmo orais.

Em seu cinema, Sylvio Back usa a propensão natural do cinema à transgressão histórica e procura ir além: seus filmes costumam trazer um conteúdo expressamente de ruptura com a História com "h" maiúsculo.

É assim em sua obra ficcional, que tem dois casos icônicos: "A Guerra dos Pelados" (1971), que traz nova luz ao episódio do Contestado, e "Aleluia, Gretchen" (1976), sobre imigrantes nazistas no Sul do Brasil (tema de grande interesse cinematográfico, mas para o qual os cineastas sulistas até então preferiam fazer vistas grossas).

Em seus documentários, essa marca se mostra com ainda mais vigor. Prolífico e inquieto, o cineasta catarinense já havia filmado muito nos anos 1960 e 1970 – entre curtas, médias, vídeos comerciais e especiais de TV –, até estrear no documentário de longa-metragem em 1980. "Revolução de 30" revisitava o período histórico que dá nome ao filme, a partir de uma colagem de um imponente material de arquivo, mostrando um painel sobre o Brasil pré-Getulista até então ignorado ou pouco conhecido pelos brasileiros. Especialmente inventivo no contraste entre o que se fala e o que se mostra, o longa muitas vezes convida à reflexão pela via do estranhamento.

Se o filme perdeu impacto desde o lançamento, o longa que o sucedeu ainda hoje mantém grande força: "República Guarani" (1982), sobre as Missões na América do Sul. Desde o desconcertante início, com um triste canto indígena que remete à dor que foi o processo de aculturação ao qual os nativos do continente foram submetidos após a chegada europeia, o longa revela detalhes sobre a vida nas missões que muitos livros de História da época optavam por ocultar.

Seu longa seguinte, "Guerra do Brasil" (1987), já trazia no título o espírito contestador: atribuía ao nosso país parte expressiva da culpa do evento que, por estas terras, temos a bazófia de chamar de Guerra do Paraguai. A narrativa é envolvente, rica em detalhes e no humor subversivo; está entre os pontos altos do cineasta. Mesmo que estudos posteriores tenham trazido algumas "revisões" à revisão histórica proposta por Back, o longa permanece importante. Aliás, convém recorrer a outro conceito de Marc Ferro: um filme fala muito da época em que foi feito; Guerra do Brasil traz na entranha a essência da produção nacional dos anos pós-Abertura – a sede por desconstruir tudo o que por décadas havia sido imposto (pelos militares) como verdade absoluta. É um rico documento tanto sobre a Guerra do Paraguai quanto sobre o Brasil de meados dos anos 1980.

A comicidade cáustica, porém, é usada de forma desmedida em "Rádio Auriverde" (1990), que vai longe demais na ressignificação da campanha brasileira na Segunda Guerra. Ninguém duvida do exagero de certas narrativas heroicas dos pracinhas no conflito, mas a insistência do filme na zombaria excessiva o torna cansativo – e, às vezes, descortês. Mas, felizmente, Back readquiriu o controle sobre o uso do próprio humor corrosivo em seus documentários posteriores – como "Yndio do Brasil" (1995), que retoma a questão indígena de modo ao mesmo tempo divertido e comovente.

Um belo filme sobre Graciliano Ramos – "O Universo Graciliano" (2013) – lembra que a obra de Back é extensa demais para ficar relegada ao aspecto "histórico". Seu cinema também tem, por exemplo, grande importância como registro de uma cultura regional: quem como ele falou tanto – com paixão e virulência – sobre o Sul do país? Em meio à sua profícua produção de curtas e médias, reluz um filme essencial: "Vida e Sangue de Polaco" (1982), saborosa visão sobre a imigração polonesa ao Brasil. E o tema de "Guerra dos Pelados" retorna décadas depois em forma de documentário, em Contestado: restos mortais (2010), que traz como novidade médiuns ajudando a narrar o conflito catarinense – ou nem tão novidade assim: em 1984, ele já havia usado o mesmo procedimento em "O Auto-Retrato de Bakun", sobre o pintor paranaense Miguel Bakun.

O curta ecológico "Sete Quedas" (1980) merece um estudo de como a música (de Domenico Zipoli) pode ampliar o lirismo de belas imagens – e do quanto a água é algo cinematográfico. Por fim, cabe destacar um curta de uma assombrosa (falsa) simplicidade: "A Babel da Luz" (1992), sobre a escritora Helena Kolody, que é também sobre performance, sobre poesia, sobre luz, sobre montagem. O cenário é basicamente um fundo neutro: há só Helena recitando – às vezes, atrás da melhor forma de dizer seus versos, o que Back sabiamente mantém no filme. Conseguir tanto com tão pouco não é para qualquer um.
Capa do livro "Documentário Brasileiro..."