terça-feira, 6 de novembro de 2018

Crítica: "A Casa que Jack Construiu"

O texto abaixo foi publicado no UOL, em 15 de maio de 2018, logo após a sessão para a imprensa no Festival de Cannes 2018.

Riley Keough (a "Simple") e MattDillon (Jack)

O Festival de Cannes de 2018 tinha tudo para propiciar a entrevista coletiva de imprensa mais polêmica de sua história, mas ela acabou não acontecendo. Exibido em sessão especial (fora de competição),o longa “The House that Jack Built” marca a volta do cineasta dinamarquês Lars von Trier ao evento após sete anos, desde que se tornou persona non grata por dizer a jornalistas do mundo todo que “entende Adolf Hitler”, em conversa com repórteres em 2011.

A julgar pelo conteúdo de seu novo filme, uma entrevista coletiva poderia gerar frases ainda mais controversas. Não é exagero dizer que o longa exibido na manhã desta terça à imprensa é o mais perverso e sádico de sua carreira – e quando se fala de uma filmografia que inclui pérolas do sofrimento humano, como “Dogville” (2003), “Anticristo” (2009) e “Ninfomaníaca” (2013), essa informação não é algo a ser menosprezado.

“The House that Jack Built” (A casa que Jack construiu, em tradução livre) são duas horas e meia acompanhando um serial killer metódico, que comete assassinatos violentos, mas sobretudo repletos de maldade, com casos em que as vítimas são expostas a humilhações extremas antes de morrerem. A trama se passa em uma cidadezinha americana nos anos 1970 (apesar de filmado na Suécia), e o assassino em série fica conhecido como Mr. Sophistication (Senhor Sofisticação), exatamente pelo requinte de seus crimes.

O longa é dividido em cinco partes e um epílogo, tentando decifrar a cabeça de Jack (Matt Dillon, em extraordinária performance), um sujeito de inteligência brilhante, mas cheio de distúrbios mentais, como TOC, bipolaridade e crises de sadismo. Ele tem uma longa conversa com um interlocutor indefinido (Bruno Ganz, que não por acaso interpretou Hitler no filme “A Queda”) – que talvez seja sua própria consciência, ou a Morte.

Pouco importa: nesse longo diálogo, que pontua diversos trechos do filme, ambos discutem freudianamente as intenções e métodos de homicídio de Jack. No geral, o assassino expõe um grande sentimento de culpa pelo que faz, mas jamais deixa de revelar o imenso prazer que tem com o sofrimento alheio. Não consegue se desvencilhar dessa fonte de prazer e dor.

Fica claro que, com esse protagonista, Lars von Trier está falando diretamente sobre si mesmo e sua opção estética e ética que utiliza em seus filmes, não raro acusados de misoginia e um grande desprezo pela humanidade. No material distribuído para a imprensa, o cineasta se limita a descrever seu filme com poucas palavras. “Por muitos anos, realizei filmes sobre mulheres boas. Mas agora fiz um filme sobre um homem mau”, diz na apresentação.

A descrição é perfeita: seu Jack é uma criatura abominável, como o Lars von Trier artista tantas vezes já se mostrou em seus filmes. Desta vez, o cardápio de brutalidades inclui mutilação de animais e violência física contra crianças, além da já conhecida truculência contra o corpo feminino – muitas vezes usado, inclusive, de maneira discutivelmente cômica. E inclui desta vez ainda um elemento xenofóbico.

Embora não atribua nada disso a si próprio enquanto ser humano, reivindica para si todos esses elementos enquanto artista. A prova maior disso está no próprio filme: a certa altura, quando o protagonista fala sobre criação artística e instintos malignos, o longa inclui diversos trechos de filmes anteriores de Trier. Sob este aspecto, “The House That Jack Built” é um dos filmes mais confessionalmente corajosos já feitos.

Obviamente que o longa já nasceu polêmico, e muita gente deixou a sala antes do final, tanto na sessão de gala (na noite da última segunda) quanto na de imprensa (na manhã desta terça). Nesta última, inclusive, ouviram-se algumas vaias no fim, mas o que prevaleceu foram mesmo os aplausos. A imprensa estrangeira teve reações de amor e ódio. O site IndieWire resumiu muito bem a ambivalência que o filme gera: "É horrorizante, sádico, e provavelmente brilhante". De fato: apesar de repulsivo em diversos aspectos morais, enquanto obra de arte, “The House that Jack Built” é um filme inegavelmente grandioso – um dos trabalhos mais coesos e profundos do diretor. Um trabalho que leva ao extremo as intermináveis discussões entre os limites entre a arte e a ética humana.

Um dos aspectos mais incômodos de “The House that Jack Built” é o uso do humor: o filme tem vários trechos bastante engraçados. Alguns em um nível mais leve – como quando, por exemplo, o assassino de Matt Dillon precisa voltar diversas vezes à cena de um crime por conta de seu indomável TOC de limpeza; quase é pego pela polícia por conta dessa sua mania. Mas em outros momentos, o riso surge de maneira bem mais embaraçosa, como em cenas em que usa a rigidez de um cadáver congelado para algumas piadas visuais.

E há ainda cenas de um humor desesperadamente doentio, nada engraçado, sobretudo quando envolve crianças. Trier certamente sabe que aquilo não tem graça alguma, mas enquanto criador artístico se vê na obrigação de apresentar ao público aquilo tudo assim mesmo, por mais condenável que sejam as suas ideias. Afinal, elas existem, e são explicitadas, inclusive, em uma tentativa pessoal algo desesperada por parte do diretor de compartilhar esse seu lado desumano. Como se seus filmes fossem uma grande terapia.

Talvez nas profundezas de sua mente, Trier seja uma pessoa tão perversa quanto Hitler, mas o diretor encontrou o cinema para usar como válvula de escape para seu conteúdo mais sombrio. Muita gente, compreensivelmente, ainda o considera um homem maligno, mesmo exercendo seu sadismo por meio de sua câmera. Mas apesar de toda a negatividade que seu cinema traz nas entranhas, enquanto expressão artística, ainda é um pouco daquilo que de melhor a arte cinematográfica tem sido capaz de produzir nas últimas décadas. Amando ou rejeitando-o, ele segue como um nome altamente relevante.
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