quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Top 10: os melhores filmes de 2017

Meu ranking com os dez melhores filmes de 2017 (entre os que entraram em circuito comercial no Brasil ou foram exibidos em streaming ao longo do ano).

1. "Na Praia à Noite Sozinha" (Hong Sang-soo)
2. "Mistério na Costa Chanel" (Bruno Dumont)
3. "A Mulher que se Foi" (Lav Diaz)
4. "Nocturama" (Bertrand Bonello)
5. "Jackie" (Pablo Larraín)
6. "O Outro Lado da Esperança" (Aki Kaurismaki)
7. "A Garota Desconhecida" (Jean-Pierre e Luc Dardenne)
8. "Logan" (James Mangold)
9. "A Vida de uma Mulher" (Stéphane Brizé)
10. "A Qualquer Custo" (David Mackenzie)

Melhor filme nacional: "Era o Hotel Cambridge" (Eliane Caffé)

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Análise: biografia de Pauline Kael

O texto abaixo foi publicado há 6 anos. em 11 de dezembro de 2011, pelo caderno Ilustríssima, da "Folha de S.Paulo". Traz uma análise sobre a biografia de Pauline Kael, "A Life in the Dark", escrita por Brian Kellow. É um texto pelo qual eu tenho especial apreço, pelo prazer que foi a apuração e escrita, mas não apenas: ele acabou sendo incluído em uma prova de Língua Portuguesa de um concurso público (o exame foi polêmico: muitos candidatos à vaga consideraram a prova difícil ao extremo - eu mesmo, autor do texto, confesso que teria dificuldades para solucionar algumas das questões). De qualquer modo, foi um trabalho que me agradou muito fazer e o qual reproduzo abaixo.




O retrato de uma crítica

 

Resumo A primeira biografia de Pauline Kael suscita dúvidas sobre sua honestidade intelectual -ela teria afanado estudos sobre "Cidadão Kane" de um de seus colaboradores-, mas reafirma a norte-americana como a mais célebre crítica de cinema dos Estados Unidos. Dez anos após sua morte, o lançamento desse e de dois outros livros nos EUA provam a permanência de seu prestígio. 

BRUNO GHETTI
Há 40 anos, a mais célebre crítica de cinema dos Estados Unidos, Pauline Kael (1919-2001), publicava seu artigo mais famoso. Era um detalhado estudo sobre "Cidadão Kane" (1941), espertamente intitulado "Raising Kane" (trocadilho com a expressão "to raise Cain", que significa algo como "gerar reações inflamadas").

No texto -que integra a coletânea "Criando Kane e Outros Ensaios", publicada no Brasil em 2000-, Pauline defendia que o roteirista Herman J. Mankiewicz era a força criativa por trás do filme, mais importante até que o diretor, Orson Welles (1915-85). Ela queria fazer justiça a Mankiewicz, que caíra em esquecimento, enquanto Welles entrara para a história com a reputação de gênio maldito, frequentemente reivindicando para si as principais qualidades de "Kane" e a coautoria do roteiro -embora Pauline jurasse que Welles não escrevera nem sequer uma linha do script.

Independente do quanto de justiça e veracidade "Raising Kane" trazia (o artigos foi bastante contestado na época), surgem agora evidências de que a própria Pauline atuou de modo tão pouco ético como ela acusava Welles de ter agido. A crítica teria baseado o seu artigo nos estudos realizados por outra pessoa -Howard Suber, pesquisador da UCLA (Universidade da Califórnia, em Los Angeles), que colaborou com Pauline, mas que, por fim, não foi sequer mencionado no texto final. A revelação surpreendente está em *"Pauline Kael: A Life in the Dark" [Viking, 432 págs., R$ 68,30]*, a primeira biografia da crítica, escrita pelo jornalista Brian Kellow.

"Ela roubou os estudos", diz Kellow, em entrevista à Folha, por telefone, de Nova York. "Howard Suber era um professor-assistente da UCLA que pesquisava sobre 'Kane'. Pauline descobriu e o chamou para colaborar em uma publicação. De posse dos dados da pesquisa dele, nunca mais falou no assunto. Um dia, Suber abriu a [revista] 'New Yorker' e lá estava o trabalho dele, em um artigo assinado só por Pauline. Foi chocante descobrir isso porque, em geral, Pauline era uma pessoa ética", diz.

Por e-mail, Suber confirmou à Folha a versão de Kellow. "As conclusões expostas no artigo são mesmo dela. Mas, de resto, diria que ela não fez pesquisa nenhuma, apenas usou o que eu forneci." Na época, o crítico e cineasta Peter Bogdanovich quis defender Suber. "Mas era muito doloroso para mim falar sobre isso. Só agora resolvi desabafar", diz o pesquisador.

KAELMANIA. A revelação certamente deixa uma mancha na reputação de Kael, mas a crítica dificilmente deixará de ser respeitada -até porque, ao longo da carreira, foi atacada muitas vezes pelos (diversos) detratores e conseguiu sair incólume, seguindo até hoje como a mais influente crítica americana.

Prova de seu prestígio mesmo dez anos após sua morte é a atual "kaelmania" que toma conta do mercado editorial nos EUA -recentemente, além da biografia de Kellow, foram lançadas duas outras publicações relacionadas à crítica. Uma delas é a excelente antologia *"The Age of Movies: Selected Writings of Pauline Kael" [Library of America, 750 págs., R$ 97,70]*, com os textos mais importantes de Pauline (menos o longo artigo sobre "Kane", que ficou de fora por falta de espaço). O livro é organizado pelo crítico e escritor Sanford Schwartz.

A outra é *"Lucking Out" [Doubleday, 272 págs., R$ 60,90]*, livro de memórias do jornalista James Wolcott, da revista "Vanity Fair", em que Pauline, sua amiga pessoal e mentora, surge como uma personagem expressiva -ela domina quase 50 páginas do livro. Como Kellow, ele traça um retrato respeitoso escrito por um admirador, mas sem deixar de mostrar que a crítica nem sempre era uma pessoa fácil. Protegido de Pauline, Wolcott é um caso típico de "Paulette", denominação jocosa dada no meio jornalístico dos EUA aos diversos críticos surgidos nos anos 70 que imitavam o estilo kaeliano.

A devoção dos "Paulettes" à inspiradora não é tão difícil de entender: os textos ferinos de Pauline demonstravam ampla cultura geral e eram peculiarmente fluidos e divertidos. Ela não seguia nenhuma linha teórica -acreditava que a força de uma crítica vinha de uma sua própria resposta emocional ao que via na tela.

"Bastava ver um filme uma vez para ela reparar em detalhes que outros críticos não notariam nem revendo em diversas ocasiões", ressalta Kellow. O conteúdo de seus textos era polêmico e até podia ser discutível, mas o prazer literário que proporcionavam era inegável. Tanto que seu livro de críticas "Deeper into Movies" (1973) foi o primeiro do gênero a ganhar um National Book Award.

TRAJETÓRIA. Pauline Kael nasceu na pequena Petaluma, Califórnia, em 1919, filha de pais judeus poloneses. Foi criada em um rancho de galinhas, mas em um meio que privilegiava o interesse pelas artes. Mas sua formação cultural se deu mesmo quando se mudou para a região de San Francisco, onde estudou filosofia e conviveu com artistas de vanguarda.

Antes de se tornar uma crítica de sucesso, Pauline penou em profissões diversas: foi costureira, cozinheira, "ghost-writer" e até cobaia de cosméticos. Segundo o biógrafo, "ela também tentou ser roteirista, dramaturga e autora de peças para rádio, mas não era muito boa nisso. Só encontrou sua voz mesmo como crítica".

A tal voz Pauline botou para fora pela primeira vez aos 33, em 1952, com uma análise (negativa) de "Luzes da Ribalta", de Charles Chaplin, na revista "City Lights". Mas sua situação financeira melhorou só dez anos depois, quando ganhou notoriedade nacional com o texto "Circles and squares", em que atacava o crítico Andrew Sarris e sua "teoria do autor" (derivação da "política dos autores", criada pelos franceses, nos anos 50). O artigo trazia características importantes da escrita kaeliana: o estilo coloquial, o gosto pela polêmica e a antipatia ao culto ao cineasta-autor -de certa forma, o texto foi um "esquenta" para a defesa do cinema enquanto arte colaborativa que ela praticaria em "Raising Kane", de 1971.

Sarris levou as críticas pelo lado pessoal e iniciou uma disputa pública com Pauline. "Ela respeitava a inteligência de Sarris, mas não o achava um bom escritor", diz Kellow. "Sarris não gostava dela. Ao entrevistá-lo para meu livro, para poupar seu tempo, sugeri uma conversa de só 15 minutos. Mas Sarris disse: 'Não tem problemas, podemos conversar por mais tempo desde que eu não precise voltar a falar dessa senhora!'".

EXTREMOS. Odiada por muitos, mas já com leitores fiéis, Pauline estreou em 1967 na prestigiada revista " The New Yorker", onde trabalharia até 1991, quando se aposentou ("para não ter mais que ver filmes de Oliver Stone", ela brincou na época, embora o verdadeiro motivo tenha sido o mal de Par-kinson, que a acompanharia até a morte, aos 82). Teve uma relação cordial, mas por vezes tensa, com seu editor, William Shawn, que lhe deu liberdade quase total em suas críticas -embora não gostasse dos seus coloquialismos.

Seus vigorosos textos das décadas de 70 e 80 a consolidaram como grande formadora de opinião. Mesmo escrevendo para uma revista de público refinado, não escondia sua aversão a filmes muito intelectualizados e pretensiosos -dizia, por exemplo, que ver alguns longas de Robert Bresson era "algo assim como ser açoitado, vendo cada lambada se aproximando". Se John Cassavetes, Rainer Werner Fassbinder e Andrei Tarkovski não estavam entre seus preferidos, obras menos ambiciosas de Brian de Palma, Irving Kershner e Paul Mazursky lhe proporcionavam grande prazer.

Mas Pauline sabia reconhecer um grande filme. Ela foi uma das primeiras a falar, por exemplo, da importância de "Uma Rajada de Balas" (1967), de Arthur Penn, e de "Nashville" (1975), de Robert Altman. Sua análise de "O Último Tango em Paris" (1972), de Bernardo Bertolucci, foi um dos seus pontos altos (mesmo que, lida hoje, possa soar exagerada).

"Pauline às vezes tinha tendência à hipérbole, idolatrava um filme na excitação do momento, mas isso vinha do enorme amor que ela tinha pelo que fazia", diz seu biógrafo, salientando que escrever sobre cinema foi a maior paixão da vida da crítica.

A maior, mas não a única: Pauline amou muito, mas não deu sorte em seus relacionamentos -tinha tendência a se apaixonar por homens gays. Com um deles (o cineasta de vanguarda James Broughton), teve sua única filha, Gina, que Pauline criou sozinha, com grande severidade. (Gina foi uma das poucas pessoas que se recusaram a colaborar com a biografia escrita por Kellow.)

O biógrafo descreve Pauline como uma pessoa enérgica, falastrona e em geral agradável, mas competitiva e centrada em si. Era generosa com os "Paulettes", mas exigia idolatria irrestrita dos mesmos. Mas sua maior qualidade talvez fosse o humor. Certa vez, o diretor George Roy Hill, irritado com uma crítica a "Butch Cassidy" (1969), escreveu-lhe uma carta desaforada, chamando-a de "vadia miserável". Pauline se divertia com o bilhete e o mostrava aos amigos que iam à sua casa. Pouco tempo antes de morrer, a crítica encontrou Hill em um restaurante. Ao ver que o cineasta também sofria de Parkinson, Pauline se apressou em lhe dar o contato de sua massagista: "Fará maravilhas por você!".

Kellow entrevistou cerca de 160 pessoas para a biografia e teve acesso total aos arquivos pessoais da crítica. "Fiquei impressionado: ela guardou quase todas as cartas que recebeu em vida" (entre os documentos, Kellow achou os estudos de Howard Suber, mas nenhuma pesquisa da própria Pauline sobre "Cidadão Kane"). A biografia reproduz vários trechos de textos de Pauline. Uma das principais qualidades dos seus artigos é o poder de análise do que estava acontecendo no mundo e como isso influía nos filmes. Seus textos falavam sobre a época em que foram escritos, além de mostrarem quem era Pauline Kael. Certa vez, disse que nunca escreveria uma biografia: "Fiz isso ao longo dos anos". De certa forma, ela tinha razão.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Crítica: "Assassinato no Expresso do Oriente"

(Murder on the Orient Express, 2017), de Kenneth Branagh
O elenco estelar do longa de Kenneth Branagh

[[[Este texto contém SPOILERS]]]
A rigor, o grande crime de "Assassinato no Expresso do Oriente" é o misterioso homicídio de um passageiro de um célebre trem europeu. Mas no filme de Kenneth Branagh, há um delito ainda pior: a opção por adaptar uma obra de Agatha Christie quase sem humor e nem um pingo de leveza; o longa é espantosamente pesado e sisudo.

Branagh injeta análise social e existencialismo onde, no material original, prevalecia a futilidade e o prazer descompromissado. Quis trazer "densidade" e um elo com o mundo de 2017 ao que era expressamente datado e destinado ao prazer frívolo.

A intenção do diretor pode até ter sido boa, mas não o resultado. Porque o "Expresso do Oriente" de Branagh não é nem fútil para promover o tipo de excitação que os livros de Agatha Christie (e filmes que se baseiam neles) oferecem como poucos, mas também nem denso a ponto de o público tomar realmente o longa como uma obra ancorada na realidade moderna, com temas importantes devidamente desenvolvidos. Ao fim, parece apenas um drama exaustivo e um tanto deprimente, que tenta inserir questões atuais (e inexplicáveis cenas de ação e violência) para ganhar adesão dos espectadores de hoje, que não toleram mais filmes com valores e mesmo um ritmo da era pré-internet.

Agatha Christie era uma mestra do entretenimento, mas não era uma artista que esmiuçava grandes temas; o sucesso de sua literatura se deve ao prazer mais imediato, leve e simples da leitura sem maiores responsabilidades estéticas ou temáticas. De maneira indireta, porém, suas obras teciam, sim, comentários sociais, alguns até bastante refinados. Com uma ajudinha da psicologia deliciosamente botequinesca usada pelo detetive Hercule Poirot, Christie falava muito da natureza humana. Mas era sempre uma abordagem tangencial – e arejada, cheia de bom humor. Mesmo as intrigas bem arquitetadas e as soluções algo mirabolantes de alguns crimes jamais eram criadas para serem levadas tão a sério; os próprios métodos "infalíveis" de Poirot são um produto claramente restrito ao mundo da ficção. Assim, querer tornar alguma obra de Christie em uma denúncia social solene e politizada é basicamente não compreender nada do sentido de sua literatura. Como, parece, foi o caso de Branagh.

A graça de adaptar Christie para o cinema – especialmente uma trama que se passa em um trem altamente luxuoso, na década de 30 – é explorar as possibilidades que isso permite, sobretudo em termos de abusar do saudosismo e de recorrer sem amarras a um charme antiquado, fora de moda. Em 1974, Sidney Lumet adaptou a mesma trama e investiu todas as fichas nisso. Foi um acerto apenas parcial: talvez o livro não fosse tão cinematográfico quanto se pensava. Seu "Expresso do Oriente" não era em hipótese alguma um bom filme (é um dos mais fracos de sua carreira – o que não quer dizer que não tenha qualidades, já que Lumet foi um diretor de excepcional talento). Tinha, sim, várias boas cenas isoladas, todas de uma elegância pomposa à moda antiga, com algumas falas bem divertidas ditas por atores extraordinários. No todo, porém, o filme nunca funcionava muito bem – era estranhamente cansativo, quase tão emperrado quanto o trem do título em meio à neve balcânica , apesar de ter nomes como Ingrid Bergman, Vanessa Redgrave, Lauren Bacall, Rachel Roberts, Wendy Hiller, John Gielgud, Sean Connery, Albert Finney  e muitos outros (o elenco era um nocaute!).

Ok: Branagh também tem à disposição alguns astros, como Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz, Johnny Depp e Judi Dench, mas ao contrário de Lumet, ele subutiliza seu elenco estelar. As melhores cenas, Branagh malandramente reserva a si mesmo. Como grande ator que é, ele consegue segurar a atenção, mas surge a questão: qual o sentido de ter tantos astros em um filme se sequer uma grande cena é ofertada a qualquer um deles? Michelle Pfeiffer tem um pouquinho mais do que o resto e por isso ela é a melhor do elenco (é mais bem-sucedida, inclusive, que Lauren Bacall na primeira versão, que era apenas uma presença visual e uma alusão viva ao cinema de outra era, mas nunca conseguia fazer sua falastrona senhora Hubbard "acontecer" de fato). Mas, no todo, o "Assassinato no Expresso do Oriente" de Branagh é um assombroso desperdício de altos cachês.


Michelle Pfeiffer em cena do filme
O filme de Lumet era pura perfumaria; reservava algumas big scenes aos grandes atores e trazia alguns momentos saborosos de alto glamour. A entrada de cada personagem em cena, como a chegada deles ao trem, por exemplo, era um espetáculo por si só (Branagh quase não perde tempo com isso, e se seu filme é por vezes tão pouco sedutor é por conta de incompreensíveis negligências como essa). Mas bem no final, o longa de 1974 trazia um elemento curioso de análise social: em meio às plumas e paetês, havia uma certa denúncia do quanto as classes dominantes sempre acabam triunfando. Ok, o mais atroz dos vilões era punido, mas o crime coletivo era mostrado antes como uma série de pecadilhos burgueses, graves mas ocorridos "por uma boa causa", para corrigir um mal maior; não valeriam a pena ser sacrificados em nome da revelação da "verdade". Todos eram absolvidos, como tantas vezes equívocos menores o são, quando feitos com um motivo "compreensível". (Nesse desfecho, não havia um sentido de linchamento de um indivíduo que um diretor de mão mais pesada poderia fazer surgir.)

No contexto mais socialmente inquieto do filme de Branagh, a revelação final do crime praticado por vários personagens ganha um significado completamente distinto – talvez a contragosto do diretor. Embora haja ali a tomada de consciência por Poirot de que nem tudo é completamente "bom" ou "mau", a moral da história vai no sentido inverso: subentende-se que há, sim, um Mal, e que ele precisa ser combatido, nem que usando as mesmas táticas que ele utiliza. Poirot compreende que, ao fazê-lo, as pessoas tidas como "do Bem" de certo modo se assemelham ao inimigo, passando a integrar algum lugar entre os dois extremos. Mas algumas vezes é preciso dar de ombros: certas situações simplesmente não podem ser resolvidas de outra maneira. 

Do que Branagh está falando exatamente quando inclui um personagem que personifica o Mal? Provavelmente seja uma alegoria a Trump, aos extremismos, ao pensamento de direita que renasce hoje com força. Mas se for isso mesmo, será que ele de fato defende que todos nós nos unamos e façamos uso das táticas baixas desses mesmos inimigos para combatê-los? (ou seja: sugere uma justiça com as próprias mãos, quando as leis não se encarregam de punir quem deveria?). Se for isso, é uma conclusão perigosa – não estaria tão longe da apologia ao linchamento que a versão de Lumet tão elegantemente soube evitar. Não era o filme mais adequado para sugestões tão graves, que demandariam mais desenvolvimento.  

Ou será que leituras como essa são apenas fruto de um descontrole do filme, que tomou vias tão austeras que inserem o espectador em um clima pesado e nebuloso, a ponto de não ver possibilidades de interpretação em um nível mais prosaico, como o da versão de 1974? Fica realmente difícil ter certeza; talvez o filme de Branagh, no fundo, nem tivesse tantas pretensões; os rumos que tomou, no entanto, fazem crer que sim.

Todo o filme de Branagh se ancora em questões impactantes de 2017; usa as várias nacionalidades dos passageiros para refletir sobre xenofobia e intolerância. O diretor até muda alguns personagens, optando por incluir, por exemplo, um negro (os que exigem a tão falada "representatividade" no cinema vão adorar, mas é uma aberração em termos de verossimilhança histórica; um ambiente elitista como o Orient Express dificilmente comportaria afrodescendentes). Há também um professor alemão de tendências nazistas (Willem Dafoe, cujo imenso talento é jogado fora em cenas decepcionantes) e a troca de nacionalidade da missionária religiosa, que no primeiro filme era sueca e agora se tornou espanhola (a não ser pelo fato de justificar o sotaque de Penélope Cruz, a mudança não leva a lugar nenhum).

O Poirot de Branagh começa o filme algo clownesco – seu bigode exagerado é um adereço quase circense. Ele é um sujeito altamente perfeccionista, cujos TOCs o fazem sofrer em todos os campos da vida, menos na hora de solucionar crimes imperfeitos; aliás, a atenção para as falhas é o que o torna tão hábil em sua área de atuação. Mas depois de embarcar no trem, se torna um homem  circunspecto, socialmente consciente (ele só aceita investigar o crime para que um negro ou um latino não sejam injustamente condenados só por sua etnia) e atormentado por fantasmas relativos ao próprio passado. Torna-se um personagem angustiado; parece desvendar mistérios por um amor elevado à Justiça e à Verdade, e não pelo simples e exibicionista prazer de solucionar enigmas que ninguém mais conseguiria (que é o que motivava o Poirot dos livros). O detetive de Branagh torna-se mais sisudo ainda que todo o resto do filme. É uma performance bastante sólida, mas não é de modo algum Hercule Poirot, o homenzinho belga intrometido que Albert Finney soube criar com ironia e enorme talento na versão de 1974. Tornar Poirot um homem honrado e "moralmente superior" é aniquilá-lo enquanto personagem. Seria mais honesto se o detetive interpretado por Branagh tivesse sido rebatizado com outro nome.

O "Assassinato no Expresso do Oriente" de 2017 é um filme mal formatado e com um discutível senso de estilo. Há computação gráfica demais, cortes e cenas mais ligeiros que o desejado, atuações "anos 2010" em excesso. Tudo isso só o desprende ainda mais do mergulho no passado que a adaptação poderia ser. Branagh se preocupou mais com o poder envolvente da trama (que era uma falha na versão de Lumet, onde ninguém dava a mínima à intriga) e com o fundo dos personagens, mas em termos formais seu filme carece de imaginação. O máximo de ousadia estética se dá em uma dispensável alusão à Última Ceia na cena da revelação final ou quando a câmera filma por cima, em plongée, as cenas passadas na cabine do cadáver (a não ser por uma questão de maneirismo puro e simples, não faço ideia de que motivos teriam levado o cineasta a essa opção de enquadramento). 

Se o trem de Lumet não chegava ao destino final porque, de tão leve, flutuava e saía dos trilhos antes do meio do caminho, o de Branagh atravessa o trajeto todo com avidez demais, em um passeio funcional, mas saculejante e sem grandes paisagens pela janela. Se é para viajar assim, não seria melhor pegar um avião?

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Crítica: "Mar de Rosas" (livro '100 Melhores Filmes Brasileiros')

A crítica abaixo foi publicada no livro "100 Melhores Filmes Brasileiros", lançado em 2016 pela editora Letramento (coordenação de Paulo Henrique Silva). A edição traz críticas sobre os nossos filmes mais importantes, de acordo com ranking promovido por críticos da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Eu fui encarregado de escrever sobre o ótimo "Mar de Rosas" (1978), da cineasta paulista Ana Carolina. Segue o texto abaixo.

Norma Bengell no início de "Mar de Rosas"

Tudo é ironia em "Mar de Rosas", a começar pelo título. A promessa de um estado de coisas ideal, alegre e perfeito não poderia estar mais distante do que o longa de Ana Carolina oferece. A primeira cena após os créditos já introduz o espírito anárquico que se imporá por todo o filme: vê-se um líquido farto e espumoso invadir a tela. Mas nada do "mar" sugerido no título; é um fluido bem menos nobre – uma poça de urina, caudalosa e amarelada, jorrada por uma adolescente (e respingando em sua sandália). A jovem, Betinha, se alivia em uma parada na viagem que faz com os pais na via Dutra, uma pausa que também atenua seu tédio mortal diante das discussões conjugais nos bancos dianteiros.

Na primeira parte do filme, a real protagonista parece ser a mãe da garota, Felicidade (outra ironia), uma quarentona em crise já cheia de aturar o marido machista e insensível. Em um hotel no Rio, onde o casal tenta se acertar, o convívio é impossível; em um rompante de ódio (e os personagens têm vários, a todo instante), Felicidade tenta matá-lo e volta à estrada, levando consigo a filha (já não tão entediada assim).

O filme tinha tudo para se tornar, a partir daí, um drama libertário, de inspiração e motivações feministas, bem ao gosto de um certo cinema “no feminino” praticado nos anos 70. Mas Ana Carolina mostra um louvável desapego a qualquer modismo – e parece menos ainda interessada em permitir que seu longa se torne o que o público espera dele; quem dá as cartas é ela, e não há qualquer possibilidade de negociação. A essa altura, "Mar de Rosas" já virou um road movie absurdista, com mãe e filha tentando voltar a São Paulo em uma viagem marcada por toques de suspense, mas sobretudo por um humor desconcertante, ora buñueliano ora à moda de Ionesco.

No caminho, Betinha constantemente faz sabotagens contra a mãe, com graus variadíssimos de crueldade. É divertidamente pueril ao desenhar fios de barba no queixo de Felicidade, atrapalhando-a no trânsito, mas atinge níveis de assombrosa truculência ao atear fogo no vestido e nas pernas da própria mãe em um posto de gasolina (chegará ao ápice da brutalidade mais adiante, ao despejar um caminhão de terra sobre o corpo materno). Curiosamente, porém, o longa não parece vitimizar Felicidade e nem condenar Betinha; ao fim de cada "travessura" da menina, a diretora toca o filme adiante, como se nada daquilo tivesse lá tanta importância. Como em um cartoon, em que bombas explodem na cara dos personagens, na cena seguinte já está tudo certo – e segue-se em frente.

O circo de personagens excêntricos se completa quando mãe e filha conhecem Orlando, um sujeito rude que lhes dá carona na estrada, e um histriônico casal de classe média interiorano, Nióbi e Dirceu, que eles encontram em um vilarejo no caminho. Em breve, o inusitado grupo estará confinado no huis clos de uma sala de estar pequeno-burguesa, com todos falando ao mesmo tempo chavões e frases de efeito – e ninguém prestando atenção a nada dito pelos demais.
Ali, de repente o público passa a notar que Felicidade não é o centro do filme, mas sim Betinha, a espectadora enfastiada dos fatos grotescos e surreais (dos quais, é bem verdade, ela também participa) naquele universo de loucos. Todo o nonsense que surge na tela é a percepção daquela adolescente sobre uma realidade que, para ela, não faz o menor sentido.

"Mar de Rosas" estreou em circuito em 1978, e não se pode ignorar o contexto sócio-político em que o longa foi concebido e lançado. Ana Carolina já contou que o filme é bem pessoal, inclusive no sentido freudiano de que toda garota, alguma vez, já quis a morte da própria genitora (a mãe da cineasta, aliás, é creditada como uma das roteiristas – o script traz trechos de cartas escritas por ela). Mas no filme, o ódio incontido de Betinha em relação à figura materna ganha significação (e ressonância) para além das explicações meramente psicanalíticas. Em um nível mais simbólico, a ira da menina pode ser apreendida como parte de um movimento bem mais amplo, geracional, de um grupo de jovens que, entre meados e fins dos anos 70, estavam sedentos por um novo mundo.

Para aqueles jovens, as gerações anteriores sugeriam a ideia de decrepitude. Não se identificavam em nada com os "velhos" de tendência mais conservadora, que simbolizavam a caretice comportamental e a repressão (apoiando, inclusive, a terrível ditadura que dominava o país). Mas tampouco os "velhos" libertários, os que resistiram e lutaram diretamente contra a opressão, eram um exemplo para esses jovens; àquela altura, as revoluções sessentistas e o flower power cheiravam a mofo e derrota – os combatentes de 1968 foram ineficazes ao articular seu próprio discurso, deixando seus herdeiros sem compreender em quase nada o sentido de sua luta. No contexto mundial mais materialista e menos idealista da segunda metade dos anos 70, a juventude desejava ruptura total.
Não é à toa que, no fim, Betinha empurra de um trem em movimento os dois representantes dessa "velharia" a ser superada: Orlando e Felicidade, os dois símbolos opostos de um mundo "arcaico". Tal gesto – seguido de uma bem dada "banana" ao espectador – prenuncia a geração que estava por vir a partir dos anos 80: jovens individualistas, hedonistas, avessos à “chatice” dos discursos politizados.

Mas "Mar de Rosas" é, ao seu modo, um filme engajado – sua ação "política" está em sua anarquia, no seu deboche. E é prodigiosa a inteligência com que a diretora constrói (e filma) grande parte das situações dramáticas, de cunho metafórico. Mesmo as cenas que parecem mais caóticas são, no fundo, bastante estruturadas, sobretudo as na casa de Nióbi e Dirceu. Ali, o filme parece perder de vez qualquer conexão com a lógica, mas em cada gargalhada aparentemente fora de hora, em cada frase repetida pelo que parece ser mero cacoete, em cada divagação pretensamente descontextualizada, há uma intenção de mordacidade, de sátira por trás. 

Os grandes Ary Fontoura e Myriam Muniz em "Mar de Rosas"

E há cenas de fato memoráveis: como esquecer quando Myriam Muniz, sentada sobre o monte de terra em sua sala, é tomada por uma epifania religiosa e faz seu sermão da montanha particular, esfregando poeira no rosto e bradando sobre a necessidade de "o iníquo ficar inócuo, o histérico ficar histórico"? Ironicamente, porém, é também naquele ambiente que o longa traz suas maiores fraquezas; a certa altura, o excesso de ruídos, ideias e alegorias começa a se tornar um peso que a estrutura criada por Ana Carolina nem sempre consegue segurar – o ritmo decai.

Os atores, porém, sustentam o espetáculo com brio. A grande Myriam Muniz recebe em Nióbi uma personagem sob medida para seu talento expansivo (ela não fala: berra). Ary Fontoura, como Dirceu, consegue a proeza de não se deixar eclipsar, assim como Otávio Augusto, eficiente como o truculento Orlando. E o que dizer de Cristina Pereira, como Betinha? Ela não estava longe dos 30 anos quando o filme foi feito, mas está tão perfeita em cada detalhe, nos gestos juvenis e nas expressões de escárnio, que ninguém percebe que ela não é uma adolescente. E é notável a entrega de Norma Bengell à personagem Felicidade, sobretudo se pensarmos que ela talvez fosse uma escolha duvidosa para o papel (às vezes passivo demais para a persona que a atriz criou ao longo da carreira). Mas Norma alterna com sabedoria seus instantes de vulnerabilidade e de força; é um de seus grandes momentos.

Olhando hoje, à distância, soa quase heroico que uma mulher cineasta (ainda raras no Brasil dos anos 70), em seu primeiro longa de ficção, demonstrasse tamanha autoconfiança em sua capacidade como realizadora. Ana Carolina não era uma iniciante: já tinha no currículo dezenas de documentários, como "Getúlio Vargas". Mas segurou firme sua primeira chance ficcional, sem abrir mão de suas intenções iniciais nem de sua visão de "autora" – algo que, aliás, ela manteria ao longo de toda sua admirável carreira. Dirigiria, inclusive, mais dois filmes nos anos 80 ("Das Tripas Coração" e "Sonho de Valsa") que comporiam com "Mar de Rosas" uma trilogia personalista. Mas jamais outra vez ela conseguiria resultados tão satisfatórios como em sua ficção de estreia (embora anos mais tarde, com “Amélia”, ela chegasse bem perto disso).

Em "Mar de Rosas", Ana Carolina não nega sua identificação com Betinha: prega peças o tempo todo no espectador, também com níveis variados de violência. O filme parece aqueles sonhos (pesadelos?) que começam com alguma lógica, mas que escapam com tamanha desenvoltura ao nosso "controle", tomando rumos tão inusitados e cedendo espaço a tantas digressões, que, por fim, já mal nos lembramos de como tudo começou. Mas é um "pesadelo" que temos com prazer – meio masoquista, meio sádico, mas definitivamente um prazer. O longa não tem antecessores diretos (ao menos facilmente identificáveis) e não parece ter deixado descendentes, sequer entre os da trilogia; é ímpar. E aos que tentam incluí-lo em rótulos ou categorizações fáceis, ele repete o gesto final de sua protagonista: dá uma "banana" e ri, com deboche.

domingo, 15 de outubro de 2017

Ensaio: Isabelle Huppert e "O que Está por Vir"

Este ensaio, que traz uma crítica ao filme "O que Está por Vir", de Mia Hansen-Løve, e uma análise do estilo da atriz Isabelle Huppert, foi escrito especialmente para a Revista Teorema. Foi publicado na edição número 28 (junho-2017). Achei interessante abordar a questão da importância de um ator (mais especificamente 'uma atriz') nos filmes em que participa e em como pode moldar esses projetos. No Brasil, há poucos trabalhos sobre os 'star studies' ou sobre o papel dos atores nos filmes, o que é uma pena. Segue aqui a transcrição do ensaio.


Atriz-autora


Em 'O que Está por Vir' Isabelle Huppert entrega ao público mais uma interpretação memorável e novamente se impõe como peça fundamental na criação dos filmes que protagoniza


Um tradutor mais propenso a títulos pomposos talvez não resistisse à tentação de batizar "L’Avenir", o novo longa de Mia Hansen-Løve, como "O Porvir". Felizmente não foi o caso – o filme ganhou no Brasil (e em Portugal) o nome de "que Está Por Vir", título que soa bem mais fluido, corriqueiro, sem no entanto deixar de ter certo lirismo. Uma escolha acertada, já que bem mais em consonância com o tom geral da obra em questão. 

No longaIsabelle Huppert interpreta Nathalie, uma professora de filosofia bem-sucedida e bem casada, que leva uma vida sem grandes dramas. Até que vários começam a pulular, de uma hora para a outra: seu marido a abandona, sua mãe depressiva é internada, sua editora não quer renovar o contrato de sua coleção de livros. A mulher que no começo do filme se percebia como uma estrutura sólida e inabalável passa a notar o quão movediça a vida pode ser. 

Em grande parte, culpa do mundo moderno, em que uma capa chamativa de um livro conta mais que seu conteúdo – ou em que um website sobre filosofia criado por estudantes talvez tenha mais leitores que toda a coleção de uma intelectual renomada. Mas que também é a época das chamadas “desconstruções”, que faz uma mulher que se orgulhava das pequenas mudanças que trazia aos seus alunos (ao ensiná-los a “pensar”) de repente ter jogada em sua cara que talvez não seja lá muito mais que uma burguesa conformista... No fundo, o longa é sobre se dar conta repentinamente da própria situação instável no momento presente – sobretudo nos dias atuais, em que ninguém tem a menor ideia “do que está por vir”.  

Parece ser também sobre a repentina “derrocada de uma mulher”. Até é, mas nenhum dos eventos negativos é dramático em excesso nem vitimiza a protagonista, tornando-a uma mártir. Ao contrário: Nathalie é humana, demasiado humana, e tudo, das cenas mais graves às mais banais, recebe praticamente o mesmo tratamento cinematográfico pela câmera de Hansen-Løve. Tudo faz parte da vida, a diretora nos diz – e quando se tem uma boa equipe, tudo pode render bom cinema: da emoção do nascimento de um neto ao ridículo de tentar captar sinal de celular longe da zona urbana... Vida é isso, e a câmera pode captá-la; eis um dos ensinamentos da cineasta. 

E essa lição não vem de hoje: já desde o longa de estreia, o notável "Tout Est Pardonné" (2007), a diretora explora com habilidade fatos do dia a dia – uma de suas principais marcas autorais é saber trazer aos seus filmes um sabor de “retrato do cotidiano”. Como etodos os longas precedentes, O que Está por Vir também tem uma estrutura dividida basicamente em duas partes, e em ambas o “corriqueiro” tem importânciaO filme todo é um apanhado de cenas curtas, mostrando a protagonista tocando a vida adiante da melhor forma que pode, à espera do futuro (ou o “porvir”, sabiamente evitado pela tradução). 

Talvez o longa fosse uma chatice com uma atriz errada como protagonista, mas Hansen-Løve tem o maior trunfo imaginável: Isabelle Huppert. O filme, no fim das contas, é sobre ela: como Huppert reage a cada situação, das sérias às triviais. É inacreditável como a atriz nunca exagera ou atua fora do seu próprio padrão. Ela é o tempo todo Isabelle Huppert, talvez mais até do que nunca, mas milagrosamente sua Nathalie nos parece uma personagem nova, distinta de todas as outras que a atriz já interpretou. 

Isabelle Huppert em "O que Está por Vir"

Decifrando Huppert 
Seria ainda preciso repetir que Isabelle Huppert é a maior atriz em atividade no cinema? Só Meryl Streep rivaliza com ela em termos de reverência e prestígio, mas são carreiras e estilos tão distintos que não cabem comparações entre os talentos das duas (mas se o quesito for a qualidade dos longas de cada uma ou seu empenho pessoal em contribuir de alguma forma ao cinema enquanto arte, aí a francesa vence por nocaute – e sua única possível rival passa a ser a compatriota Juliette Binoche). 

Streep é uma grande estrela, e Huppert, embora agora seja mundialmente conhecida (sobretudo após a indicação ao Oscar por "Elle"), é uma figura mais restrita ao mundo cinéfilo. Se é quase uma unanimidade diante desse público, isso se explica em parte pela escolha dos diretores com quem ela trabalha: de Godard a Pialat, passando por Bellocchio, os TavianiCimino, Chabrol, HanekeDenis, Ozon e Mendoza, a francesa sempre mostrou preferência por um cinema mais autoral e de risco. 

Mas parte do fascínio que ela exerce sobre um público mais intelectualizado reside sobretudo no desafio que ela constantemente impõe ao espectador: em seus silêncios acompanhados de um olhar vago, distante, ela exige um estimulante trabalho de decifração. Há alguns atores que fazem tudo para expressar com o máximo de clareza os sentimentos de seu personagem, mas o modus operandi habitual de Huppert consiste justamente no oposto; sua especialidade é turvar o quanto pode a percepção do espectador sobre o que exatamente suas personagens estão sentindo. Acentua, assim, sua complexidade. 

E no entanto, ainda que nem sempre se saiba “o que” os olhos da atriz dizem, eles dizem coisas o tempo inteiro (sua grandeza em "A Professora de Piano" [2001] está quase toda nos olhares). Mas também podem ser tão evasivos, ausentes, que sugerem que o espectador não esteja exatamente diante de uma personagem, mas de uma abstração (exemplo icônico: "Um Amor tão Frágil" [1977]).

Huppert tem os traços delicados e a pele alva, cheia de sardas. É franzina e aparenta fragilidade. Seus lábios finos nas laterais se tornam inesperadamente estufados no centro (ela tem famoso “biquinho” gaulês); dependo de como torce a boca, forja um semblante de ironia – ou talvez tédio. E quando ri, raramente abre os lábios, o que lhe dá um aspecto dúbio: está de fato achando graça ou apenas sendo sarcástica? Nunca é possível ter certeza – aliás, desde o início de sua carreira, a questão segue a mesma: o que se passa em sua cabeça? 

Pela própria natureza dos filmes em que atua, isso em geral é um ponto a favor de Huppert. Mas às vezes é uma armadilha – se sua apagada Madame Bovary, no filme homônimo de Chabrol, de 1991, é uma decepção é porque a atriz foi incapaz de aproximar a personagem do público: foi gélida e impessoal, quando deveria cativar o espectador; um erro que se converteu no desperdício do que poderia ter sido um dos seus grandes momentos (Chabrol, um de seus melhores diretores, não pôde fazer muito por ela daquela vez: também ele fazia ali um de seus filmes menos memoráveis). 

Em "O que Está por Vir", Huppert está bem menos “ausente” que nos filmes que fizeram sua reputação. E está mais solar, engraçada. Continua afiada nos olhares, mas mostra que também é uma mestra do trabalho gestual. Ao longo da carreira, a francesa foi desenvolvendo uma segurança tão grande nos próprios gestos e na expressão corporal que, hoje em dia, quando ela se movimenta, muitas vezes o faz de modo meio pantomímicoquase estilizado (influência do trabalho de corpo que fez nos palcos com Bob Wilson?). Basta observá-la em "A Visitante Francesa" (2012), de Hong Sang-Soo: seu controle sobre seus movimentos é esplêndido, algo meyerholdiano – ela é capaz de inclinar o corpo com um autodomínio que só as atrizes de um teatro mais acrobático possuem. Em Huppert, minimalismo e biomecânica coexistem em um prodigioso amálgama. 

No filme de Hansen-Løve, Huppert se move bastante – anda pra lá e pra cá, dá corridinhas, chega e sai de casa, pega trens e ônibus, não para quieta. Historicamente, as perambulações do cinema indicam uma busca por algo – em geral, por si mesmo – e pode ser por este motivo que Hansen-Løve aplica esse princípio antonioniano a sua protagonista. Mas há também ali um inegável elemento voyeurístico, o mesmo que costuma dominar os diretores com quem a atriz trabalha. E convenhamos: é mesmo um prazer ver Huppert se movimentar, reagir ao que a rodeia e ao que lhe acontece. 

De certo modo, todo filme estrelado por Huppert tem algo em comum, muito próprio, que é a atriz que traz consigo. Nos anos 70, o biógrafo Patrick McGilligan, ao estudar a obra de James Cagney, cunhou a expressão do “ator como autor”, em uma espécie de teoria que defende que certos intérpretes (como o próprio Cagney) levam uma contribuição tão forte aos longas em que atuam que mereceriam os louros da “autoria” de seus próprios filmes. (Luc Moullet retomou a ideia de McGilligan nos anos 90 ao estudar o que chamou de “política dos atores”, mas a não ser por obras esparsas pelos franceses na década seguinte, poucos outros retomaram tal curiosa – embora contestável – vertente teórica). 

Huppert talvez não contribua tanto com os filmes em que atua em termos de trazer sugestões ou de palpitar no roteiro. Mas é inegável o quanto ela define os filmes em que aparece. Se os atores costumam ser objeto da câmera de seus diretores, sob o olhar do diretor-autor, Huppert também o é, mas acumula função dupla: é também sujeito de grande parte dos seus longas. No sentido em que, protagonizados por outra atriz, esses filmes seriam completamente distintos – em muitos casos, simplesmente não existiriam. A presença de Huppert formata os filmes em que aparece. Como imaginar "O que Está por Vir" sem Huppert? (Ou mesmo "Elle"?). Seria outro filme, sem dúvida... Ou talvez o projeto se inviabilizasse. "O que Está por Vir" é um filme “de Mia Hansen-Løve”, mas talvez seja mais ainda um filme “com Isabelle Huppert”. 

Huppert e Roman Kolinka
A força do instinto 
Isso não quer dizer de modo algum que a diretora não faça um belo trabalho ou que não tenha merecido o prêmio de direção que levou na Berlinale 2016. Ao contrário: soube moldar seu filme com enorme precisão ao material formidável que tinha em mãos, isso sem perder seus traços autorais. 

A jovem diretora (tem 36 anos) está  em seu quinto longa e já conta com uma carreira excepcional. Seus três primeiros filmes são quase irretocáveis. São histórias de adolescentes que precisam, ainda muito cedo, amadurecer e lidar com questões mais sériasse agora Hansen-Løve explora a segurança em cena de uma veterana, antes era especialista em captar o frescor de atrizes inexperientes, como Constance Rousseau, Alice de Lencquesaing e Lola Créton. 

Seu quarto longa, "Éden" (2014), marcou uma mudança de ares, ambicionando um retrato geracional dosclubbers dos anos 90 (um equívoco: a não ser que sua intenção fosse traçar aquela geração como um bando de jovens autocomplacentes e tediosos, o filme fracassou). Em "O que Está por Vir", ela retoma o caminho de seus três primeiros filmes, mas inova ao trazer a questão do “lidar com o novo” e da tomada de rédeas do próprio destino para uma personagem cinquentona. 

Nathalie busca seu novo lugar no mundo – não só uma “desconstrução”, mas uma reinvenção, talvez. Mas ela não se faz cobranças rígidas, “pesadas”; vai tateando, tentando achar seu novo posicionamento. O forte da câmera de Hansen-Løve não é o “peso”, embora ela nunca o evite; mas trata-o sempre com delicadeza e até humor – quando Nathalie vê o ex com uma moça bem mais jovem, seu choro logo cede lugar ao riso: o escárnio da situação grotesca é mais irresistível que o drama.  

O êxito da leveza dos filmes de Hansen-Løve deve muito à encenação, mas a montagem tem papel decisivo. A cena em que Nathalie ouve do marido que está sendo traída dura um mísero minuto; há perplexidade, mas não um vale de lágrimas.  a da internação de sua mãe em um asilo “com cheiro de morte” é astutamente sucedida por outra em tom cômico, com Nathalie tentando atrair uma gata (que ela, a contragosto, terá de herdar) escondida atrás do aquecedor de ambiente. Hansen-Løve tem um sadio senso de equilíbrio.  

A francesa já disse que uma de suas maiores influências é Truffaut, e embora na aparência haja um tanto mais de Rohmer (talvez Sautet?) em seus filmes, ela tem razão: o humanismo de seu cinema tem mais parentesco com o do pai de Antoine Doinel. Mas há uma diferença na forma como os personagens lidam com as negativas da vida: se em Truffaut eles não raro se entregam à danação, em Hansen-Løve, apesar de sofrerem, eles dão de ombros – e seguem em frente. 

"O que Está por Vir" é todo calcado nesse princípio do ir adiante, que está no âmago do cinema da diretora. O que já se observava na aberta cena final de "Tout Est Pardonné". Ou no fim de "O Pai dos Meus Filhos" (2009) ao som de “Que Sera?” – aliás, escolha musical que muitos evitariampor ser um tanto óbvia. (Desta vez, porém, disso não se pode acusar Hansen-Løve: ela até extrapola no inusitado ao optar por selar seu novo filme com “Unchained Melody”, propondo uma ressignificação à balada que Hollywood havia tornado um ícone do amor romântico – o que não é o caso aqui. É uma escolha para fim de filme discutível, mas ao menos ousada.)

Hansen-Løve dedica grande parte do longa à relação entre Nathalie e um ex-aluno bonitão e brilhante, Fabien (Roman Kolinka), que já a idolatrou no passado e hoje a considera “aburguesada”. A diretora brinca com a nossa malícia: não há nada que indique os dois personagens vão ter um romance – há alguma propensão ao flerte por parte da Nathalie, talvez, mas nada além disso; e no entanto, é provável que boa parte do público contasse os minutos para isso ocorrer. Mas Hansen-Løve joga limpo – seu cinema não é de aplicar truques no espectador. É de sinceridade, de coração aberto. 

E é um cinema sobre personagens cerebrais, mas que precisam agir de maneira instintiva. Já na segunda metade do filme, Nathalie finalmente herda a gata urbana que foi da mãe, Pandora (ou Pandorrááá), com a qual só desenvolve algum apego com o passar do tempo. Em certa cena, a bichana foge para o mato. “Não vai sobreviver nem um minuto”, Nathalie diz a Fabien, que lhe retruca: “Mas e o instinto?”. No dia seguinte, a gata volta sã e salva (com um rato morto de “presente” para a dona). De fato: o instinto de sobrevivência é capaz de milagres. E o ser humano, mesmo os que se acham presos exclusivamente ao domínio do intelecto, o utiliza muito mais que imagina. Mais que qualquer elaboração mental: é sobretudo ele o que nos move adiante.