(Nocturnal Animals, 2016), de Tom Ford*
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Amy Adams, em "Animais Noturnos" |
Já nos créditos de
abertura de "Animais Noturnos", Tom Ford mostra sua vontade de provocar. A tela
apresenta mulheres nuas, obesas e de meia idade, pulando e dançando com
irreverência, enquanto a câmera lenta prolonga o desajeitado movimento de seus
excessos adiposos. Elas agem como cheerleaders: estão alegres, sorridentes –
são as últimas figuras que alguém imaginaria povoar o imaginário de um cineasta
egresso do mundo fashion (Ford foi estilista antes de virar diretor), onde só os
esbeltos, os jovens e os que fazem "carão" têm algum valor.
As cenas são ambivalentes e geram reações contraditórias no espectador. Há algo de desagradavelmente apelativo no gesto
de explorar o grotesco daquelas mulheres; em alguns instantes, Ford levanta
suspeitas de que talvez seja um daqueles artistas que investem na iconoclastia
como forma rápida e chamativa de se destacar entre os demais. Mas em um outro
nível, as mesmas imagens se revelam genuinamente tocantes; é que aquelas
figuras femininas plus-size se mostram tão livres, tão sem amarras nem
complexos que, por alguns segundos, acredita-se verdadeiramente em seus risos
como sintoma de uma real alegria de viver, mesmo em um mundo que diuturnamente as
rejeita e as oprime.
As mulheres obesas,
logo veremos, são modelos de um ensaio de um artista plástico modernoso e hypado - e algo vazio em sua iconoclastia - que
não aparece no filme. (As moças, aliás, também não ressurgirão no longa).
Surgem dúvidas: estaria Ford tentando fazer uma arte verdadeiramente iconoclasta? Ou será que sua intenção era fazer uma crítica a uma certa arte que só investe na
quebra de paradigmas como modo rápido e publicitário de causar escândalo? Ou ainda: tornar
suas gordinhas, na ficção, modelos de um artista afetado (e não dele próprio) seria um álibi para Ford fazer ele mesmo uma iconoclastia fácil, sem levar a "fama" (e ser poupado de julgamentos mais incisivos)?
Mas logo o espectador verá que as intenções de Ford, felizmente, estão longe de se resumir ao choque gratuito. Até o final, "Animais
Noturnos" vai reiterar seu verdadeiro sentido: ser uma grande defesa do que é
socialmente tido como errado, inadequado. É um libelo contra a
hipocrisia, de maneira geral, e uma denúncia do quão infeliz pode ser uma
pessoa que leva um estilo de vida mentiroso, feito apenas para ceder às
pressões sociais. O alvo de Ford, logo fica claro, não é apenas o mundo fashion
(ou a arte que investe no "choque pelo choque"), mas também toda uma sociedade
cheia de regras e interdições – mais especificamente a dos EUA, que parece cada vez mais
conservadora.
A trama gira em
torno de Susan (Amy Adams), dona de uma galeria de arte que enfrenta uma crise
afetiva e profissional. Ela vive um namoro frustrado e não vê sentido em seu
trabalho. Sua náusea é tanto maior porque abomina o meio frívolo em que vive.
"Mas ninguém gosta realmente do que faz!", lhe diz um afeminado amigo do mundo
das artes/moda, que logo acrescenta: "Aproveite o absurdo do nosso mundo. É
muito menos doloroso que o mundo real".
É por saber como
pode doer o "mundo real" que Susan optou pela proteção da glamourosa bolha
artístico-burguesa em que vive. De família texana conservadora, ela foi
idealista na juventude, mas cedeu aos apelos de uma vida mais confortável. Isso
lhe custou, há alguns anos, o fim de seu primeiro casamento, com um então
aspirante a escritor, Tony (Jake Gyllenhaal), que ela julgava fraco e sem
ambição.
O filme se passa
anos depois, quando o rapaz lhe dedica um livro em que narra uma história
trágica, em que ele próprio, sua mulher e filha são violentadas em uma estrada.
Na busca pelos criminosos, também ele passará por instantes em que sua
verdadeira essência cederá espaço às pressões da vida prática.
Ford se lançou como
cineasta no elogiado "Direito de Amar" (2009), sobre um sisudo professor que se
entrega a um amor gay. Depois disso, ficou sete anos sem filmar, aumentando a
expectativa por seu novo trabalho. Pois ele entrega um produto à altura do
esperado. "Animais Noturnos" segue a mesma linha elegante, visualmente cool e refinada do filme anterior, com trechos ainda mais barrocos e provocativos (como os das gordinhas do início). Mas em termos narrativos é bem mais arrojado; tem constantes idas e
vindas temporais, intercalando presente, passado e o plano fictício do romance.
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Cena do filme |
As cenas fictícias do livro, na estrada, têm por vezes os toques absurdos
de um David Lynch; principalmente quando mostra uma família abordada por estranhos no
meio da estrada, o filme é um empolgante thriller com ares de pesadelo. Mas as cenas de ennui da
Susan atual - deprimida e um poço de culpa burguesa - são tão satisfatórias em sua textura e em termos visuais que é de
se lamentar que a narrativa não se concentre mais nela.
Há um desnível entre a narrativa do plano presente e a do fictício. Ambas renderiam dois (ótimos) filmes distintos; a primeira em uma chave mais contemplativa, intimista, e a segunda em uma linha mais próxima ao cinema de gênero. Mas no filme, o presente é (bem) mais fascinante - em grande parte graças a Adams, atriz que é
sempre competente em cena, mas que, aqui, pela primeira vez está de fato magnética. Por comparação, a outra narrativa perde muito em interesse, apesar da alta qualidade no geral (e Jake Gyllenhaal não consegue se tornar uma presença tão reluzente como Adams; sua atuação é correta, mas aquém do seu potencial).
E há um problema estrutural: as duas partes não formam uma unidade como o roteiro (de Ford e Austin Wright) pretendia. O cineasta tenta ressaltar cinematograficamente (pela montagem, fartamente ancorada em "transições") um espelhamento entre a Susan de hoje e o Tony do livro. Há de fato algumas semelhanças entre os dois personagens (ambos traem sua essência: Susan o faz ao abandonar seus preceitos morais e se entregar à sua dolce vita de burguesa, enquanto Tony é infiel à sua crença em valores humanistas ao se ver forçado a se vingar com violência extrema do homem que destruiu sua família), mas convenhamos: é preciso muita boa vontade por parte do público para ver a reflexão de um personagem no outro como algo orgânico e forte a ponto de valer ao filme a estrutura que possui; essa "forçação" é o maior pecado do longa.
Mas as partes boas o são em um nível tão elevado que o filme chega ao fim (e que fim!) dando a impressão de que não precisa de reparos. O ótimo elenco inclui Aaron Taylor-Johnson, surpreendente como o psicopata da estrada, Michael Shannon, em sua melhor atuação até hoje, como um detetive esquisitão, além de ótimas pontas de Jena Malone e Laura Linney; esta última está tão inspirada em sua breve cena (que não deve chegar a dois minutos de duração) que, sozinha, já valeria o ingresso.
*Filme visto no Festival de Veneza 2016; este texto é uma versão expandida do publicado na Folha de S.Paulo, no dia 3.set.2016 (link: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/09/1809635-tom-ford-faz-criticas-as-pressoes-sociais-em-nocturnal-animals.shtml)