segunda-feira, 31 de outubro de 2016

MOSTRA 2016: Lançamento do livro "100 Melhores Filmes Brasileiros"


Na última sexta (dia 28), ocorreu o lançamento oficial em São Paulo, na livraria Blooks, do shopping Frei Caneca, o livro "100 Melhores Filmes Brasileiros" (editora Letramento). A publicação é uma parceria entre a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e do Canal Brasil e traz o resultado de uma eleição ocorrida em 2015 entre os membros da entidade sobre os maiores filmes já feitos no Brasil.

Cada crítico associado fez uma lista com seus 25 nacionais preferidos. Os que tiveram melhor pontuação entraram no livro – cada um foi resenhado por algum membro da Abraccine ou por um crítico convidado. "Limite", de Mário Peixoto, foi o número um (a lista inteira está neste link).

Eu participei da eleição e contribuí com um artigo sobre o filme "Mar de Rosas" (1978), da cineasta Ana Carolina. É um dos poucos longas da lista dirigidos por uma mulher. É também uma obra hoje meio esquecida, mas que merece – e muito! – ser redescoberta. Ainda hoje é atual e surpreendente; um filme especialíssimo.

Norma Bengell, Cristina Pereira e Hugo Carvana, em
cena de "Mar de Rosas" (dir. Ana Carolina)

(Uma curiosidade: todos os filmes dirigidos por mulheres tiveram no livro críticas escritas também por mulheres... Eu fui a única exceção.)

Não tive tempo de ler os demais artigos ainda, mas o farei em breve. Por ora, deixo aqui lista com os 25 filmes nacionais preferidos que eu submeti à Abraccine na época da eleição (essa lista muda sempre – aliás, já não seria a mesma se eu a elaborasse agora; mas é bem representativa do meu pensamento cinematográfico do jeito que está!).

1- Noite Vazia (1964)

2- Sem Essa, Aranha (1970)

3- Terra em Transe (1967)

4- Matou a Família e Foi ao Cinema (1969)

5- Lúcia McCartney, uma Garota de Programa (1971)

6- Pixote, a Lei do Mais Fraco (1981)

7- As Amorosas (1969)

8- São Paulo S/A (1965)

9- Cabra Marcado para Morrer (1984)

10- Cuidado, Madame (1970)

11- Limite (1931)

12- A Intrusa (1979)

13- Um Céu de Estrelas (1996)

14- Lavoura Arcaica (2001)

15- Febre do Rato (2011)

16- Di (1977)

17- Guerra Conjugal (1974)

18- Um Anjo Mau (1971)

19- As Deusas (1972)

20- O Amuleto de Ogum (1974)

21- Mar de Rosas (1978)

22- A Mulher de Todos (1969)

23- Bye Bye Brasil (1980)

24- Ganga Bruta (1933)


25- Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977)
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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

MOSTRA 2016: Crítica: "Era o Hotel Cambridge"

(idem, 2016), de Eliane Caffé


Cena de "Era o Hotel Cambridge"

Os tempos atuais não estão muito para moderação, e nesse sentido é essencial que apareçam filmes como "Era o Hotel Cambridge". O longa de Eliane Caffé resgata um tipo de cinema abertamente partidário, combativo – quase "de tese". No caso, a tese de que pessoas a quem a sociedade nega possibilidades de moradia têm o direito de habitar espaços abandonados. É uma questão de humanidade e de dignidade – de respeito mínimo ao que de mais basilar existe na nossa Constituição ou mesmo em documentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Pouca coisa me interessa menos no cinema recente quanto a já exauridíssima mescla de "realidade com ficção", que tem sido recorrentemente utilizada como forma de se compensar as partes falhas que um filme teria se fosse só ficção ou só documentário. (O que já permitiu excelentes experimentações formais no cinema se tornou com o tempo uma muleta para cineastas indolentes, em busca de aprovação crítica fácil). Mas no caso de "Era o Hotel Cambridge", o procedimento de misturar cenas reais com encenadas compõe um estranhíssimo amálgama que o enriquecem. Caffé e sua equipe entraram em um prédio ocupado por grupos sem teto e imigrantes e filmaram muito do que viram. Mas ficcionalizaram a maior parte das cenas, com um elenco que mescla profissionais (como José Dumont e Suely Franco) com não atores, estes ocupantes de verdade (que incluem líderes de movimentos de ocupação e imigrantes africanos, latino-americanos e palestinos).

O material bruto seria precioso o suficiente para um documentário "puro" – talvez o filme fosse até melhor se a diretora fizesse essa opção. Mas a criação ficcional que ela desenvolve suaviza a parte documental e permite que o espectador tenha um contato com um aspecto mais leve, de cotidiano, da vida daquelas pessoas. O filme se torna mais arejado.

A dramaturgia proposta por Caffé é bastante simples – simplória, até. E esquemática. Mas querer criar situações elaboradas ou ambíguas demais envolvendo aquelas vidas seria um erro. Se a dramaturgia do filme é composta de fiapos de história, isso não é à toa: afinal, o que podem levar essas pessoas marginalizadas que não apenas fiapos de vida?

O que não quer dizer que essas vidas não sejam complexas, muito pelo contrário: o são até demais – além de trágicas. Mas as situações pelas quais passam no dia a dia da ocupação, as lutas que enfrentam e os objetivos de vida que passam a ater não podem ser outra coisa que não "simples", já que são as mais básicas; são pessoas que querem um lar. E algum mínimo de conforto, de comida, de carinho, de diversão. São vidas de pessoas que não se podem se dar ao luxo de ter as "complicações" que o lifestyle burguês nos permite poder levar.

Exigir equilíbrio ou ponderação de um filme como "Era o Hotel Cambridge" é não compreender em nada seu sentido. Sua beleza está em suas falhas e na sua luta - na vontade de fazer justiça com pessoas que pagam um preço altíssimo por motivos pelos quais não têm culpa direta.

O filme começa com imagens de edifícios abandonados, pichados, decadentes, do centro de São Paulo. Termina com os mesmos prédios, porém com bandeiras de movimentos sociais estampados nas fachadas. São como flâmulas de confecção barata, mas que naquele contexto surgem gloriosas, imponentes, dando nova vida a locais antes esquecidos. Para quem acha absurda e criminosa a situação social do país de hoje em dia, é um final não só poético: é também catártico. Quem não se comove ao menos minimamente com um filme como este ou é um direitista incorrigível ou não tem um coração no peito (o que, em grande parte dos casos, é um belo de um pleonasmo).


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

MOSTRA 2016 - Crítica: "Animais Noturnos"

(Nocturnal Animals, 2016), de Tom Ford*

Amy Adams, em "Animais Noturnos"

Já nos créditos de abertura de "Animais Noturnos", Tom Ford mostra sua vontade de provocar. A tela apresenta mulheres nuas, obesas e de meia idade, pulando e dançando com irreverência, enquanto a câmera lenta prolonga o desajeitado movimento de seus excessos adiposos. Elas agem como cheerleaders: estão alegres, sorridentes – são as últimas figuras que alguém imaginaria povoar o imaginário de um cineasta egresso do mundo fashion (Ford foi estilista antes de virar diretor), onde só os esbeltos, os jovens e os que fazem "carão" têm algum valor.

As cenas são ambivalentes e geram reações contraditórias no espectador. Há algo de desagradavelmente apelativo no gesto de explorar o grotesco daquelas mulheres; em alguns instantes, Ford levanta suspeitas de que talvez seja um daqueles artistas que investem na iconoclastia como forma rápida e chamativa de se destacar entre os demais. Mas em um outro nível, as mesmas imagens se revelam genuinamente tocantes; é que aquelas figuras femininas plus-size se mostram tão livres, tão sem amarras nem complexos que, por alguns segundos, acredita-se verdadeiramente em seus risos como sintoma de uma real alegria de viver, mesmo em um mundo que diuturnamente as rejeita e as oprime.

As mulheres obesas, logo veremos, são modelos de um ensaio de um artista plástico modernoso e hypado e algo vazio em sua iconoclastia que não aparece no filme. (As moças, aliás, também não ressurgirão no longa). Surgem dúvidas: estaria Ford tentando fazer uma arte verdadeiramente iconoclasta? Ou será que sua intenção era fazer uma crítica a uma certa arte que só investe na quebra de paradigmas como modo rápido e publicitário de causar escândalo? Ou ainda: tornar suas gordinhas, na ficção, modelos de um artista afetado (e não dele próprio) seria um álibi para Ford fazer ele mesmo uma iconoclastia fácil, sem levar a "fama" (e ser poupado de julgamentos mais incisivos)?

Mas logo o espectador verá que as intenções de Ford, felizmente, estão longe de se resumir ao choque gratuito. Até o final, "Animais Noturnos" vai reiterar seu verdadeiro sentido: ser uma grande defesa do que é socialmente tido como errado, inadequado. É um libelo contra a hipocrisia, de maneira geral, e uma denúncia do quão infeliz pode ser uma pessoa que leva um estilo de vida mentiroso, feito apenas para ceder às pressões sociais. O alvo de Ford, logo fica claro, não é apenas o mundo fashion (ou a arte que investe no "choque pelo choque"), mas também toda uma sociedade cheia de regras e interdições – mais especificamente a dos EUA, que parece cada vez mais conservadora.

A trama gira em torno de Susan (Amy Adams), dona de uma galeria de arte que enfrenta uma crise afetiva e profissional. Ela vive um namoro frustrado e não vê sentido em seu trabalho. Sua náusea é tanto maior porque abomina o meio frívolo em que vive. "Mas ninguém gosta realmente do que faz!", lhe diz um afeminado amigo do mundo das artes/moda, que logo acrescenta: "Aproveite o absurdo do nosso mundo. É muito menos doloroso que o mundo real".

É por saber como pode doer o "mundo real" que Susan optou pela proteção da glamourosa bolha artístico-burguesa em que vive. De família texana conservadora, ela foi idealista na juventude, mas cedeu aos apelos de uma vida mais confortável. Isso lhe custou, há alguns anos, o fim de seu primeiro casamento, com um então aspirante a escritor, Tony (Jake Gyllenhaal), que ela julgava fraco e sem ambição.

O filme se passa anos depois, quando o rapaz lhe dedica um livro em que narra uma história trágica, em que ele próprio, sua mulher e filha são violentadas em uma estrada. Na busca pelos criminosos, também ele passará por instantes em que sua verdadeira essência cederá espaço às pressões da vida prática.

Ford se lançou como cineasta no elogiado "Direito de Amar" (2009), sobre um sisudo professor que se entrega a um amor gay. Depois disso, ficou sete anos sem filmar, aumentando a expectativa por seu novo trabalho. Pois ele entrega um produto à altura do esperado. "Animais Noturnos" segue a mesma linha elegante, visualmente cool e refinada do filme anterior, com trechos ainda mais barrocos e provocativos (como os das gordinhas do início). Mas em termos narrativos é bem mais arrojado; tem constantes idas e vindas temporais, intercalando presente, passado e o plano fictício do romance.

Cena do filme

As cenas fictícias do livro, na estrada, têm por vezes os toques absurdos de um David Lynch; principalmente quando mostra uma família abordada por estranhos no meio da estrada, o filme é um empolgante thriller com ares de pesadelo. Mas as cenas de ennui da Susan atual - deprimida e um poço de culpa burguesa - são tão satisfatórias em sua textura e em termos visuais que é de se lamentar que a narrativa não se concentre mais nela.

Há um desnível entre a narrativa do plano presente e a do fictício. Ambas renderiam dois (ótimos) filmes distintos; a primeira em uma chave mais contemplativa, intimista, e a segunda em uma linha mais próxima ao cinema de gênero. Mas no filme, o presente é (bem) mais fascinante - em grande parte graças a Adams, atriz que é sempre competente em cena, mas que, aqui, pela primeira vez está de fato magnética. Por comparação, a outra narrativa perde muito em interesse, apesar da alta qualidade no geral (e Jake Gyllenhaal não consegue se tornar uma presença tão reluzente como Adams; sua atuação é correta, mas aquém do seu potencial).

E há um problema estrutural: as duas partes não formam uma unidade como o roteiro (de Ford e Austin Wright) pretendia. O cineasta tenta ressaltar cinematograficamente (pela montagem, fartamente ancorada em "transições") um espelhamento entre a Susan de hoje e o Tony do livro. Há de fato algumas semelhanças entre os dois personagens (ambos traem sua essência: Susan o faz ao abandonar seus preceitos morais e se entregar à sua dolce vita de burguesa, enquanto Tony é infiel à sua crença em valores humanistas ao se ver forçado a se vingar com violência extrema do homem que destruiu sua família), mas convenhamos: é preciso muita boa vontade por parte do público para ver a reflexão de um personagem no outro como algo orgânico e forte a ponto de valer ao filme a estrutura que possui; essa "forçação" é o maior pecado do longa.    

Mas as partes boas o são em um nível tão elevado que o filme chega ao fim (e que fim!) dando a impressão de que não precisa de reparos. O ótimo elenco inclui Aaron Taylor-Johnson, surpreendente como o psicopata da estrada, Michael Shannon, em sua melhor atuação até hoje, como um detetive esquisitão, além de ótimas pontas de Jena Malone e Laura Linney; esta última está tão inspirada em sua breve cena (que não deve chegar a dois minutos de duração) que, sozinha, já valeria o ingresso.

*Filme visto no Festival de Veneza 2016; este texto é uma versão expandida do publicado na Folha de S.Paulo, no dia 3.set.2016 (link: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/09/1809635-tom-ford-faz-criticas-as-pressoes-sociais-em-nocturnal-animals.shtml)

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Crítica: "A Espera"

(L'Attesa, 2015), de Piero Messina

Lou de Laâge e Juliette Binoche, em cena de "A Espera"

Dois amigos meus viram "A Espera" em duas sessões distintas no Festival de Veneza de 2015. Um deles disse que o filme recebeu vaias no fim; já o outro relatou que o longa foi efusivamente aplaudido. Eu assisti em uma terceira sessão (aberta para o grande público), e a reação ao final foi diferente das outras duas: de indiferença. Quer dizer, houve algumas palmas bem fraquinhas, mais desvanecidas do que os aplausos protocolares habituais em eventos como Veneza, mas dava para perceber facilmente que os espectadores estavam apenas tentando ser educados (mas, ao menos, não se ouviu uma mísera vaia na minha sessão).

"A Espera" não é um filme muito agradável, principalmente por causa do próprio tema que aborda: é sobre uma mulher que perde o filho e começa a inventar mentiras para a sua nora para preservá-la da novidade trágica. Mesmo que tenhamos pena da garota, o tempo todo sabemos com clareza que ocultar a morte do namorado é inaceitável, então é um tanto quando enervante ver a mãe o tempo todo contando mentiras atrás de mentiras.

O filme pode até não ser "agradável", mas é inquestionavelmente tocante; podemos discordar do procedimento da mãe, mas compreendemos a necessidade daquela mulher de ficar próxima de sua nora. Se ela a engana tanto, por fim não é mais para evitar que a jovem sofra ao saber da morte do namorado. Afinal, ela vê ali a única conexão viva com a memória do próprio filho.

A mãe é interpretada por Juliette Binoche, e é um papel bem mais difícil do que pode parecer. É incrível como a atriz parece não envelhecer – ela tem o mesmo rosto, as mesmas rugas, de há uns 15 anos. É ainda hoje uma das mulheres mais bonitas do planeta, mas agora não apenas isso: com os anos, também se tornou uma das maiores atrizes da Terra. Aqui ela tem uma performance comovente, matizada ao extremo; não é só uma mulher em luto pelo filho, mas é sobretudo alguém que se vê o tempo todo forçada a mentir.

Interpretar alguém mentindo não é algo simples – é preciso que o ator deixe claro para o espectador que não está falando a verdade, mas a forma de dizer a mentira precisa ser convincente aos olhos do personagem vivido pelo parceiro de cena. Qualquer excesso ou carência na hora da fala, qualquer erro gestual, qualquer movimento fora de instante pode arruinar a verossimilhança da cena. Mas a atuação de Binoche é de primeiríssima categoria; algo próximo ao perfeito. A lastimar apenas que sua colega, Lou de Laâge, não esteja no mesmo nível (ela não está exatamente mal; é apenas passável).

"A Espera" é o longa de estreia de Piero Messina, que trabalhou como assistente de direção de Paolo Sorrentino em filmes como "A Grande Beleza". Messina provavelmente aprendeu bastante com o conterrâneo, mas pelo filme não dá para dizer quais exatamente foram as lições: os dois têm sensibilidades e estilos bem distintos. Mas assim como Sorrentino, Messina tem o dom de criar imagens expressivas, ainda que seu talento visual se manifeste de maneira diferente – é uma beleza elegante, clássica.

Mas o diretor de primeira viagem ainda tem muito o que aprender em termos de ritmo – "A Espera" é bem lento e deixa o espectador entediado de quando em quando. Eu não tenho a menor ideia de que outra forma um filme como esse poderia ser conduzido, mas eu estou certo de que deve haver possibilidades mais dinâmicas de direção.

Para um primeiro filme, porém, é um trabalho notável – ainda que não o suficiente para que eu compreenda os aplausos fortes que um dos meus amigos diz ter ouvido em Veneza. E, menos ainda, as vaias que o outro jura ter escutado. Nesse caso, acredito que vou ter que concordar com os espectadores que viram o filme na mesma sessão que eu no Festival: respeitosos, porém não muito empolgados.