segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Crítica: "Elis, o Filme"

(idem, 2016), de Hugo Prata

Andreia Horta, em "Elis"

As cinebiografias de ídolos pop são um formato ingrato. Pouquíssimas feitas até hoje foram verdadeiramente memoráveis (sejamos francos: qual outra além de "Touro Indomável"?); a maior parte costuma ser lembrada como veículos para atores que impressionam pela "entrega" aos personagens – ou pelo grande fiasco daqueles que não correspondem às expectativas. Quase sempre recaem no mesmo esquema da narração factual dos trechos mais marcantes da vida do retratado. E muitas vezes se chega ao fim do filme sem a mais parca ideia de quem ele foi: qual era seu drama, o que o moveu.

"Elis, o Filme" tem sido amplamente atacado por ser mais uma dessas biopics pouco imaginativas, e há certa razão nessa reprimenda. O longa de estreia de Hugo Prata evita riscos e tem os dois pés na convencionalidade. No entanto, não é o “TV movie” chapa branca e sem criatividade que muitos críticos têm apontado.

É importante deixar claro que, de fato, o roteiro (de Prata, Luiz Bolognesi e Vera Egito) opera o tempo todo no nível da trivialidade: conta a história de uma gaúcha sonhadora, que chega ao Rio acompanhada do pai, na exata semana do Golpe de 64 – a mesma jovem que, muito em breve, soltaria a voz e faria enorme sucesso no Beco das Garrafas, depois nos festivais e na TV, tornando-se logo um dos expoentes máximos da nossa canção. Após alguns (muitos) altos e (poucos) baixos na curta carreira, a cantora temperamental, mas vulnerável, dá um enorme susto nos fãs, quando, aos 36, morre em seu apartamento, vítima de uma overdose de álcool com cocaína.

(Já é um avanço que o filme fale explicitamente da causa da morte de Elis; em um especial na Globo,  há alguns anos, o motivo foi bizarramente omitido, bem como em uma recente exposição de fotos da cantora no CCSP, em que, na linha biográfica, constava apenas que, do nada, um belo dia Elis Regina morreu – como se morrer aos 36 anos fosse algo totalmente corriqueiro. Felizmente, a família da cantora parece ter desistido da pueril tentativa de reescrever essa parte de sua história).

A gramática é mesmo televisiva, mas o filme tem algo de essencialmente cinematográfico: demanda escala, grandeza, tela grande e som alto para impactar. E, visto nessas condições, consegue causar um arrebatamento totalmente cinematográfico (eu acredito piamente que, na TV, o filme jamais funcionará com a mesma força que na sala escura, com tela grande).

Cena de "Elis, o Filme"

O roteiro, apesar de didático e esquemático, consegue ir ao essencial em muitas cenas – o que, em se tratando de biografias, não é algo a se desprezar. A chave-mestra está em uma discussão em que o músico César Camargo Mariano (Caco Ciocler), segundo marido de Elis, tem com a cantora, definindo seu grande problema: “Você não sabe o que você quer na vida!”. Pronto: está aí aquele que talvez fosse o drama essencial do ser humano Elis Regina – uma pessoa em busca de si, de se encontrar, eternamente displaced e mudando de opiniões, amizades e repertórios. Qualquer filme sobre a cantora que ignorasse isso seria incompleto, incompreensivo, raso. Isso era o essencial de Elis, talvez a principal fonte de suas angústias e de sua insegurança.

“Meu negócio é cantar”, Elis dizia muito recorrentemente, mas isso esconde uma enorme falta de saber quem ela era, o que queria, onde gostaria de chegar. Pois o roteiro acerta na mosca ao trazer isso para o filme. O grande problema (e que também é minha principal ressalva ao filme) é que esse caráter fica, em geral, apenas no nível das falas; não aparece no âmago das cenas propriamente ditas. Quando a questão é mencionada, nunca tem o devido protagonismo; da forma como Prata encena e edita, parece quase sempre que Elis era movida ou por um enorme ego ou pelo simples temperamento explosivo. E só.

Ego inflado e gênio forte: não há dúvida de que Elis tinha as duas coisas – e de sobra. Mas querer atribuir tudo o que a cantora fazia a isso é limitado (e injusto). O roteiro dá a dica em vários momentos: Elis, sobretudo na parte final da vida, reclamava muito dos outros. Estava sempre vociferando contra alguma terceira pessoa do plural (os militares, os jornalistas, as gravadoras), que, muitas vezes, não lhe eram tão hostis como ela gostava de pintar (e, talvez, de achar que fossem). Seu grande inimigo era ela mesma. Mas o filme não consegue encontrar uma solução para essas indicações do script; nas cenas, as reclamações surgem como descrições de situações pontuais, de registros de fatos da vida de Elis – quando, no fundo, deveriam ser a indicação de um estado de espírito. Prata falha lastimavelmente nesse sentido.

Uma vida tão cheia de episódios e personagens importantes fatalmente precisa ter muitos deles sacrificados ao ir para o cinema. Não se vê no longa, por exemplo, Milton Nascimento nem Rita Lee, dois de maiores amigos da Pimentinha; Vinícius de Moraes é só citado, e João Bosco e Aldir Blanc, nem isso. O célebre álbum "Elis & Tom" é ignorado, e é como se os grandes shows "Saudade do Brasil" e "Trem Azul" (seu último) nem tivessem existido. Até aí, ok: a necessidade de concisão pode explicar. Mas não há exigência de roteiro que justifique por que seu casamento com o companheiro mais duradouro, César Mariano, seja tratado com tanta superficialidade e desdém pelo script. O personagem é o pior do filme; tem uma única boa cena – muito simples e delicada, por sinal –, quando declara indiretamente seu amor a Elis, quando ambos estão sentados ao piano. Mas no geral, é de uma passividade bocejante – entende-se porque a cantora o abandonou (embora, na vida real, a separação tenha sido muito mais dura e traumática que o filme deixa a entender; ele foi o grande amor da gaúcha, e não Ronaldo Bôscoli, como o filme muitas vezes quer fazer crer).

O mulherengo Bôscoli (Gustavo Machado) tem muito mais destaque no longa, e em termos dramáticos, a escolha funciona. A tensão sexual entre Machado e Horta é faiscante, e se a primeira metade do filme é bem melhor e tão prazerosa é graças à interação dessa dupla passional e impetuosa (Machado está perfeito em seu deboche e malandragem cariocas, como Mateus Solano também esteve foi quando viveu Bôscoli na TV).

Gustavo Machado e Andreia Horta em cena do filme

Outras presenças dignas de nota: Ícaro Silva, que tem uma ginga sensacional em suas poucas cenas como Jair Rodrigues; Zécarlos Machado, como o pai da cantora, Romeu (o único problema é que o sotaque, aqui e ali, parecem mais a fala italiana de novela das oito que de um gaúcho; mas a atuação, em si, é memorável); Julio Andrade, mais uma vez acima da média, como o coreógrafo Lennie Dale.

E há o maior trunfo de todos: Andreia Horta. A atriz faz um trabalho impressionante de mimetismo, mas não se contenta com isso: tem uma raça, uma vontade, um "sangue nos olhos" de fazer a sua Elis "acontecer" que ultrapassa esse objetivo; sua Elis não apenas "acontece" como se torna um "grande acontecimento". O desafio de interpretar um mito como nossa maior cantora não era fácil, mas Horta mergulhou visceralmente em sua caracterização. O jeito de falar e o gargalhar com os dentes arreganhados e o nariz franzido: é difícil pensar em alguém que pudesse imitá-la tão bem (nem Maria Rita, quando canta à la Elis, é capaz de mímese tão perfeita).

Horta tem o tipo de "entrega" (o termo é cafona, mas não há outro para substituir) que faz lembrar as de Diana Ross, como Billie Holiday, em "O Ocaso de uma Estrela", e Bette Midler, como a cantora inspirada em Janis Joplin, de "A Rosa". Ross e Midler cantavam com a própria voz, mas Horta, não – o que foi uma opção extremamente sábia; afinal, quem poderia cantar como Elis Regina se não apenas a própria? No filme, é essencial mostrar por que aquela mulher se distinguia das outras cantoras; e quando ecoam trechos da voz verdadeira de Elis, em momentos estratégicos, a compreensão é imediata.

Há uma excelente cena de explosão sentimental, quando, na frente da boate Bottle's, Elis bate boca com Bôscoli, que lhe pergunta, com a ironia peculiar: "Tá pensando que é quem? A Barbra Streisand?". Ao que Elis responde: "Tô!", dito com tanta convicção que talvez a própria Streisand, se ouvisse, duvidasse por alguns segundos que ela é ela mesma. E Horta alterna os momentos de erupção emocional e de meiguice como só a própria Elis fazia... Se as cenas da cantora mais amargurada da parte final não funcionam tão bem como a mais expansiva do começo, provavelmente é porque o roteiro e o diretor não souberam fazer o crescendo de forma suficientemente eficaz. 

O filme decai no fim, até por uma certa perda de alegria e vitalidade da protagonista. A cena dos instantes finais são convencionais, mas só o fato de não ser um fim piegas e hagiográfico já é algo a festejar. Ao contrário: termina onde e na hora que tinha que terminar (e há um certo alívio do peso do fim com cenas musicais durante os créditos). Saímos da sala tocados e orgulhosos de termos tido em nossa música uma voz tão poderosa. E felizes de que, no cinema, agora temos uma atriz capaz de defender uma personagem com tamanho empenho.

domingo, 27 de novembro de 2016

Crítica: "Sangue do Meu Sangue"

(Sangue del mio Sangue, 2015), de Marco Bellocchio

Cena de "Sangue do Meu Sangue"

Foi fácil ouvir os aplausos ao fim da sessão de imprensa no Festival de Veneza 2015 a "Sangue do Meu Sangue", filme de Marco Bellocchio, que só agora, com bom atraso, estreia por aqui. Mas se a sala não estivesse tão barulhenta com as palmas, talvez fosse possível ouvir algo mais: o barulho dos cérebros dos jornalistas, trabalhando duro em busca de compreender o que exatamente o cineasta italiano quis dizer com sua história – e seu misterioso final, principalmente.

O título do longa é uma piada extrafílmica: é que dois dos filhos do diretor (Pier Giorgio e Elena Bellocchio, ambos figuras de fotogenia e charme inesperados) têm papeis de destaque na trama. A história é dividida em duas partes. Ambas se passam em Bobbio, Emilia Romagna (terra natal do cineasta), mas em dois períodos históricos distintos. 

A primeira parte se desenrola no século 17, quando uma religiosa seduz um padre, que, por isso mesmo, comete suicídio. Como punição, a moça é condenada pela rígida Igreja Católica da época a passar o resto de seus dias aprisionada em um cubículo, atrás de um muro de tijolos. A segunda metade se passa nos nossos dias: um vampiro milionário, cuja fortuna foi acumulada após décadas sugando dinheiro (além do sangue) de outras pessoas, chegou a uma idade tão avançada que seu fim está próximo – mesmo que ele já seja, a rigor, um morto-vivo.

O longa apresenta as duas histórias em estilos bem diferentes: a primeira é mais sóbria, lírica, algo soturna; a segunda é bem mais leve e satírica, quase histriônica em sua comicidade. As duas se equivalem em qualidade, mas poderiam facilmente ser partes de dois filmes distintos.

Mas não apenas são parte do mesmo filme como também possuem fortes (embora nem sempre fáceis de notar) conexões. As duas lidam com a questão do poder (o religioso na primeira, o econômico na segunda), e talvez seja exatamente isso o que Bellocchio busque dizer com o seu filme: o tempo passa, muita coisa muda, mas os poderosos continuam dando um jeito de se reinventar, de modo que sempre há grupos (às vezes os mesmos, mas rearranjados) explorando os demais. Mas isso é apenas um ponto de partida para investigações mais profundas sobre o significado e as conexões entre a trama sobre a bruxa do passado e o vampiro do presente.

Bellochio não tem o menor interesse de tornar as coisas fáceis para seu público: inicia alguns caminhos, mas logo abandona a plateia sozinha, no meio da floresta – cabe a nós cortarmos o mato diante de nós e chegar ao ponto final do trajeto (ou morrer, exaustos e perdidos, no meio do matagal). 

Talvez a segunda opção tenha sido mais comum: embora seja um filme extraordinário, não parece ter tido muita adesão da crítica (sobretudo a nacional), que o têm injustamente considerado um filme "menor" de Bellocchio. Eu vejo ao contrário: para mim, é um dos mais instigantes e inspirados longas desse grande diretor italiano.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

"Curumim": entrevista com o diretor

(idem, 2016), de Marcos Prado*

Marco Archer, o Curumim, em cena do filme

No final da sessão da sessão de estreia do documentário “Curumim”, na Berlinale 2016, o diretor carioca Marcos Prado recebeu cumprimentos de uma plateia comovida. “Obrigada! Seu filme me tocou muito”, disse uma mulher com os olhos vermelhos e lacrimosos (quando o filme acabou, podia-se ouvir facilmente seus soluços na sala). Pouco depois, o diretor de um festival indonésio fez um convite: “Queremos muito passar seu filme lá. Toma o meu cartão!”. Prado agradeceu e guardou o papel. “Será que eu vou ter coragem de levar meu filme pra Indonésia?”, perguntou a si mesmo, com um sorriso tenso.

Compreende-se a indagação: “Curumim” certamente não será visto com bons olhos pelas autoridades daquele país. O documentário conta a história de Marco “Curumim” Archer, brasileiro condenado à morte na Indonésia por tráfico de drogas – ele morreu fuzilado em janeiro de 2015, após um penoso período de 11 anos em um presídio de segurança máxima isolado em uma ilha.

O filme é ao mesmo tempo a curiosa história pessoal de Curumim e um registro de sua rotina no “corredor da morte”. Por tabela, ataca dois outros temas espinhosos: mostra a corrupção no sistema carcerário e judicial indonésio e faz uma grande crítica à pena capital. “Sou contra a pena de morte em todos os casos”, disse o cineasta, logo após a aplaudida sessão.

“Os crimes hediondos têm de ser punidos com prisão longa ou perpétua. Mas quando se executa uma pessoa, primeiro você dá poder para um Estado de te eliminar da sociedade, colocando pistas falsas, etc. Segundo: você pode provar o contrário – quantos condenados já não conseguiram comprovar sua inocência antes da morte?”

O projeto do longa surgiu quando o próprio Curumim convidou Prado para contar sua história. Os dois já se conheciam desde a juventude, nos anos 80, quando ambos praticavam surfe e frequentavam os principais “points” das praias cariocas. Nascido em uma família de classe média alta, Curumim sempre gostou de levar uma vida aventureira. Na adolescência, foi expulso 14 vezes do colégio. Como ele mesmo diz, sempre foi um “fio desencapado” por ser filho de um alcoólatra e uma mãe ausente.

Sua personalidade expansiva e seu senso de humor o tornaram um jovem carismático, que gostava de curtir a vida com amigos, no melhor estilo playboy. Para bancar seus luxos, começou a ganhar dinheiro com pequenos tráficos nos anos 80. “No Brasil, uma geração inteira comprou skank com ele”, relembra o cineasta. Curumim foi parar na Indonésia quando tentava conseguir dinheiro para (segundo ele mesmo) pagar dívidas que havia contraído em um hospital em Cingapura, onde ficou internado por meses, após um acidente de paraglide. Aceitou traficar 15 quilos de cocaína, mas levantou suspeitas no aeroporto de Jacarta. Conseguiu fugir dali e passou dias como foragido – até ser finalmente preso pela polícia indonésia e levado para a prisão, onde seu drama começou. Uma trajetória tão cinematográfica, é claro, tinha que acabar nas telas.

“A ideia original era para ser um filme de ficção. Ele próprio queria isso, sempre dizia: ‘Minha história pode virar um filme incrível!’ ”, conta Prado. Depois de optar pelo formato documentário, o diretor pretendia dividir a história em três partes: a vida de Curumim antes de ser preso, a rotina no presídio e o recomeço após ganhar liberdade. “Ia ser uma coisa mais biográfica, mas não consegui nem uma entrevista formal com ele”, diz o diretor, que, no entanto, chegou a ir ao presídio para visitar o amigo (conseguiu entrar se passando por um pastor evangélico).

Cena do documentário

A maior parte das imagens em que o condenado aparece encarcerado foram feitas com uma câmera clandestina, comprada no mercado negro da prisão, captadas por um colega de cela italiano (hoje já em liberdade; ele, aliás, estava presente na première do longa). Segundo o italiano, é relativamente fácil conseguir nesse “mercado” regalias diversas, inclusive... drogas. O ex-presidiário reconhece que só obteve a própria liberdade à base de muito suborno. O filme conta com imagens de Curumim na cadeia, depoimentos de quem o conhecia e algumas reconstituições de cenas – uma delas traz uma estilização de como teria sido o fuzilamento.

O personagem não é mostrado como um “mártir”, mas uma pessoa sem limites e algo “destrambelhada” que pagou um preço alto demais pela própria irresponsabilidade. O longa humaniza, mas evita “sacralizar” o personagem. “Tudo da história dele está ali, ele mesmo fala o que já fez pelas cartas [mostradas no filme]. Não tem como santificar”, diz o cineasta. “Mas se eu consegui humanizar ele ao longo dessa uma hora e 40 minutos, já estou satisfeito.”

Prado foi muito elogiado em seu primeiro longa, o documentário “Estamira” (2004), sobre uma catadora de lixo, mas o sucesso passou longe do filme seguinte, a ficção “Paraísos Artificiais” (2012). Ele também é conhecido como produtor de “Tropa de Elite” (2007) – que, aliás, ganhou o Urso de Ouro em Berlim há nove anos. Desta vez, Prado não concorre ao prêmio máximo (“Curumim” está na mostra paralela Panorama), mas o frio na barriga seja ainda maior que em 2007. “São emoções diferentes vir como produtor e como diretor. Apesar de o cinema ser uma arte coletiva, na direção, se o filme ficou bom, a ‘culpa’ é sua e de todo mundo. Agora se fica horrível, a culpa é só sua”, diz.

*Filme visto no Festival de Berlim 2016; este texto é uma versão expandida do publicado no UOL, no dia 17.fev.2016 (link: http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2016/02/17/saga-de-brasileiro-condenado-a-morte-na-indonesia-comove-plateia-em-berlim.htm).