quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Festival de Berlim 2018 - críticas: "Touch me Not" / "Museo"

(Touch me Not, de Adina Pintilie)
Laura Benson (à direita) em "Touch me Not"

O filme mais experimental desta Berlinale vem da Romênia. É difícil resumir a trama (existe mesmo uma?) de "Touch me Not", mas vamos lá: o filme é sobre Laura, uma mulher cinquentona em constante busca por aceitação de seu próprio corpo e sua identidade. Ela procura se conhecer e se aceitar melhor a partir da interação com pessoas bastante distintas que, cada uma a seu modo, a fazem ter contato com algum aspecto de si mesma.

O filme é sobre autodescoberta. Laura contrata, por exemplo, os serviços de um garoto de programa e pede para ele se despir diante dela (mas os dois não fazem sexo). Talvez seja para mera satisfação sexual, mas pode ser que ela busque ali observar algo que ela não tenha e/ou não reconheça em si. Laura também tem interações com um homem que se traveste de mulher, que faz uma espécie de terapia de identidade sexual com ela. Aberto a novas experiências sexuais, ele também a ouve e conta um pouco de sua história.

Além disso, a protagonista se encontra com um outro terapeuta, que a estimula a se livrar da fúria que ela tem guardada dentro de si a partir de provocações físicas (e também humilhações de natureza sexual). Interage igualmente com um rapaz que tem problemas também de relação com o próprio corpo (ele, desde a adolescência, apresenta uma doença que o impede de ter pelos). Por fim, se deixa mostrar para a câmera da cineasta Adina Pintilie, diante da qual se desnuda (literalmente); ao mesmo tempo, auxilia a diretora em resolver algumas de suas questões mais íntimas.

Esses personagens se entrecruzam de alguma maneira, sempre se ajudando de alguma forma a ter essa maior compreensão corpórea. "Touch me Not", apesar de dizer no título "não me toque", é um filme de busca por contato. E por ajuda: para dar e receber de quem precisa.

Os personagens são todos párias sociais de alguma maneira, mas com a ajuda dos demais, acabam percebendo que são apenas pessoas que fogem à regra geral, mas não necessariamente são "anormais". Nesse grupo de freaks, a personagem de Laura (Laura Benson) é certamente uma das mais expressivas. Ela tem os traços fortes, masculinizados (várias vezes eu pensei se tratar de uma transexual), um olhar tenso e triste. Tem vigor físico e uma estranha sensualidade; é uma figura hipnótica de olhar. Mas o personagem mais marcante é um deficiente físico franzino (Christian Bayerlein), com o corpo quase totalmente definhado por alguma condição genética. Mas ele tem algumas partes de uma vitalidade sobrecomum, sobretudo o pênis, os olhos e o cérebro. É uma criatura fisicamente repulsiva: seus ressaltados três dentes tortos e imundos e sua incontinência salivar são quase intoleráveis para os padrões de aceitabilidade social, mas ele se revela um ser tão interessante, inteligente, bem-humorado, que nos envergonha; não tarda a deixar de ser repugnante e se tornar "normal" aos nossos olhos. Ele nos joga na cara o quão imbecis nós somos de sermos tão pouco receptivos a pessoas com limitações físicas como as dele.

O filme é longo e tem um fiapo narrativo. Parece ser um documentário com pessoas reais, mas há encenação, também. É terrível ter que recorrer ao clichê, mas ele define bem: "o filme embaralha as fronteiras entre o documentário e a ficção". É às vezes bastante chato em sua "não ação" e em alguns trechos de autoajuda meio discutíveis; como é experimental, muita coisa definitivamente não funciona. Mas algumas ideias dão muitíssimo certo - a utilização da câmera de cinema como meio de desnudar as personagens, embora uma ideia algo manjada, funciona perfeitamente bem.

É um filme que pode perturbar muita gente (tem nudez, sexo, corpos estranhos, comportamentos sexuais e sociais incomuns), mas não é gratuito ou sensacionalista. Mostra apenas que tudo, mesmo o mais esdrúxulo do mundo, pode ser algo legítimo. Se não prejudica os demais, que mal há em se comportar ou parecer diferente dos outros?

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(Museo, de Alonso Ruizpalacios)
Gael García Bernal em "Museo"

"Museo" é uma comédia com trechos de ação sobre dois amigos que planejam um assalto a um importante galeria de arte no México. Eles conseguem penetrar no Museu Nacional de Arquologia da capital mexicana e levam dali uma fortuna inestimável em obras e utensílios da civilização maia. Vão passar o resto do filme tentando vender as peças milionárias e levando sustos de pessoas que poderão denunciá-los (passam por uma engraçada batida policial na estrada, em que os agentes buscam drogas e não se dão conta de que a mercadoria o que trazem é uma relíquia).

É uma comédia com alguns bons momentos - ainda no começo, mostra uma ceia de Natal em que Gael García Bernal encontra uma solução bastante criativa para não precisar mais se vestir de Papai Noel. Mas no geral é um filme sem maior diferencial, que consegue prender a atenção e ter lá seus instantes engraçados, mas que não vai alterar a vida de ninguém.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Festival de Berlim 2018 - críticas: "3 Days in Quiberon"

(3 Tage in Quiberon, de Emily Atef)
Marie Bäumer é Romy Schneider em "3 Days in Quiberon"

Até que ponto a semelhança física entre um ator e o personagem que ele interpreta pode ser decisiva na nossa apreciação daquela performance? A atriz Marie Bäumer traz esse questionamento à tona o tempo todo em "3 Days in Quiberon", da cineasta alemã Emily Atef. Em alguns ângulos ela não é parecida, mas praticamente idêntica à atriz Romy Schneider, que ela interpreta, já em seus últimos anos de vida, quando dominada pelo alcoolismo e pela depressão.

Mas enquanto o filme prossegue, Bäumer consegue mostrar que não é apenas um rosto semelhante ao de Romy, mas que é capaz de gerar em torno de si um magnetismo e um carisma muito próximos ao da atriz austríaca. Dá à personagem uma enorme intensidade ao viver e ao amar a vida (mas só em alguns momentos, porque em outros, Romy fazia justamente o oposto, sofrendo terrivelmente quando deprimida). A atuação de Bäumer é precisa e atraente em ambos os instantes; sua performance transcende semelhanças físicas.

O longa se estrutura sobre três dias em 1981, quando Romy se isolou em um spa em um balneário francês para descansar e se desintoxicar. Mas ao receber a visita de uma amiga de infância de ao aceitar dar uma entrevista a um jornalista alemão (e posar para fotos para um antigo amigo), Romy abandona a disciplina e bebe como nunca. Fala muita besteira, age como não deveria, mas se abre de tal forma aos repórteres que, mesmo eles tendo uma tendência ao sensacionalismo, preferem alertar à entrevistada dos riscos que ela corre ao ser tão transparente no que fala sobre si.

O roteiro é falho e a direção se perde diversas vezes (perto do fim, o longa parece que vai acabar mais de uma vez, mas a trama é retomada sempre em algum instante onde não deveria; é um script meio mal escrito, na verdade). Mas como retrato de uma pessoa altamente frágil, vulnerável e talvez infantilizada, o filme é bem eficaz. O interesse excessivo com o qual a Romy de Bäumer se arremessa sobre as pessoas que mal acaba de conhecer se revela um desesperado anseio por uma fuga de si. 

Mas a despeito de uma mulher vitimada por uma melancolia extrema, a Romy Schneider que o longa apresenta parece também o fruto sobretudo de um excessivo "paparicamento" de quem a rodeava. As pessoas sempre pegavam leve demais com ela (por pena e por não resistirem ao charme da atriz) e perdoavam seus erros com excessiva rapidez. Se fossem um pouco mais rígidas, talvez Romy tivesse aprendido a se controlar um pouco mais... Ou não: a natureza dela talvez fosse dar a palavra final, de qualquer maneira. Nunca ninguém vai saber ao certo.

Chegou um momento, porém, em que a saúde de Romy não a perdoou – ela morreu muito jovem e ainda muito bela. A ultima imagem do filme é um frame do rosto de Bäumer. Obviamente em um ângulo muito parecido com o da atriz que interpreta. É um fim tocante e triste, que dá a impressão de que o filme é melhor do que de fato é. Eis o charme de Romy, mais uma vez, seduzindo o público a ponto de perdoar deslizes ao seu redor.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Festival de Berlim 2018 - críticas: "Eva" / "Dovlatov" / "Transit"

(Eva, Benoît Jacquot)
Gaspard Ulliel e Isabelle Huppert em cena de "Eva"

"Eva", de Benoit Jacquot,  é inspirado no mesmo livro que, nos anos 60, havia rendido um filme homônimo dirigido por Joseph Losey. Desta vez, sai Jeanne Moreau e entra Isabelle Huppert, no papel de uma prostituta destrutiva, capaz de arruinar a vida de quem se apaixona por ela.

O filme de Losey era tão ruim quanto um filme pode ser, mas Jacquot consegue o inimaginável: supera o antecessor nesse quesito. A nova versão é um thriller com toques cômicos tão cheio de inconsistências e equívocos de base que chega a ser surpreendente que o projeto tenha um dia saído do papel.  

Gaspard Ulliel (em uma atuação singularmente antipática) é um michê que ganha uns trocados fazendo serviços sexuais a velhotes. Quando um de seus clientes, um renomado autor teatral, morre pouco antes de fazer sexo com ele, o rapaz rouba uma de suas peças inéditas e, meses depois, a lança como se fosse de sua autoria. Faz, assim, sucesso com o espetáculo, firmando-se como nome promissor das artes cênicas. Mas quando o jovem tenta escrever uma peça com seus próprios recursos, não consegue nada além de diálogos rasos e situações cheias de platitude; é um embuste que, cedo ou tarde, será descoberto.

Quando um dia ele conhece uma prostituta (Huppert) de comportamento ousado e peculiarmente atrevido, o rapaz acredita que ela poderá servir de inspiração para que ele possa criar um novo texto com mais qualidade. Parece acreditar que uma “trama” interessante é suficiente para uma boa dramaturgia, ignorando conceitos como “conteúdo” ou “forma” (mais ou menos como Jacquot parece pensar sobre seu filme). Contrata a meretriz para usá-la como uma espécie de musa, mas logo terá sentimentos mais fortes por ela.

Isabelle Huppert é uma atriz capaz de fazer quase tudo o que quiser em cena, mas está completamente inadequada como a prostituta de luxo (e que cobra 300 euros por programa) que dá nome ao filme. Não é tão mais jovem e não tem o tipo de sensualidade carnal e óbvia que em geral costuma ser pré-requisito às garotas de programa que faturam alto. Seu charme é frio e cerebral demais; ela poderia até fazer fortuna como prostituta, mas apenas se explorasse o tipo de sexualidade que lhe é tão particular: a do campo do mistério ou do fetiche. Mas sua Eva está longe de ser esse tipo de mulher: não tem um lado obscuro que gere fascinação.

É, sim, uma mulher fascinante, mas por outros motivos. Se Huppert não convence como “mulher fatal”, funciona perfeitamente bem, sim, como musa para o teatrólogo. É sempre delicioso observá-la em cena; quando ela janta pela primeira vez com Ulliel, com os lábios vermelhíssimos, dando risadinhas inesperadas, mostra que de fato o rapaz tem razão ao achar que ela pode fazer algum milagre e inspirar um maravilhoso espetáculo.  Mas não tem relação alguma com sexo: o fascínio que ela causa é de outra natureza. Nessas cenas "não sexuais", a personagem sobrevive bem, e o filme consegue seus melhores momentos. Mas quando Eva quer passar por sedutora, o filme não decola de jeito nenhum. (Mas pior ainda é quando Isabelle não está em cena: aí simplesmente rola ladeira abaixo). Jacquot, Ulliel e sobretudo Huppert já tiveram momentos bem mais felizes em suas carreiras. Não precisavam (nem mereciam) passar por esse constrangimento.
  
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Dovlatov (Dovlatov, Alexey German Jr)

Milan Maric é o personagem-título de "Dovlatov"

"Dovlatov" conta a história de um talentoso poeta russo que passou a vida tentando se destacar como escritor, mas que só conseguiu o sucesso depois de morto. Foi vítima da censura e sobretudo da burocracia soviética, que na década de 1970 (quando Dovlatov surgiu na cena literária de seu país) estava mais acirrada do que nunca.

O filme do russo Alexey German Jr. é uma revisita crítica à União Soviética daquele período, mas não investe apenas naquele tipo de denúncia amarga de tantos outros filmes russos, que visam apenas a desconstruir qualquer noção positiva sobre a experiência socialista no leste europeu. Parece antes uma forma de alertar para o fato de que muitos talentos são constantemente desperdiçados, muitas vezes por razões muito imediatistas e pouco inteligentes; a sociedade só tem a perder com isso.

O filme é longo, mas muito bem feito, com diversos planos-sequência de festas e saraus em que se fala muito sobre política e literatura russa. Nota-se o fascínio de German pela cultura de seu país. Pessoas entram e saem do campo o tempo inteiro, e o cineasta demonstra um invejável controle do que coloca em cena; é um encenador extraordinário (há algo de felliniano na entranha do longa e mesmo na mise en scène proposta pelo diretor). E o filme, embora por vezes reiterativo demais (algumas ideias são repetidas em excesso), consegue driblar uma certa tendência ao sufocamento, ao "peso", que o roteiro traz. Termina lírico, comovente.

O público lamenta a dor do escritor talentoso que não teve a chances que merecia. Para além do caso específico de Sergei Dovlatov, este belo filme nos faz pensar também no quanto milhões de outras pessoas também têm seus talentos e paixões abafados porque esses não servem ao mundo tal como ele é estruturado hoje em dia. Por pura falta de oportunidade, muita gente que poderia ter uma existência tão cheia de realizações pessoais e que poderiam prestar grandes serviços à sociedade, passam a vida subaproveitadas em atividades pelas quais não se interessam. Vivem frustradas, e essa, infelizmente, parece ser a regra. "Dovlatov" é um filme tristíssimo, no fundo.

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(Transit, Christian Petzold)
Paula Beer e Franz Rogowski em "Transit"

O badalado Christian Petzold trouxe à Berlinale o filme que, até o momento, talvez mais tenha tido aplausos na sessão de imprensa. "Transit" é um thriller agitado, de fundo político e que se passa em uma França de época indeterminada – no filme, o país se encontra sob ocupação alemã. Mas não se trata da Ocupação pela qual os franceses passaram na Segunda Guerra; seria como que um retorno da França às mãos de forças nazistas (embora não se saiba exatamente quando a trama se passa, provavelmente é em um futuro próximo).

A mensagem geral é óbvia: corremos o risco de voltar a viver em um mundo dominado por forças reacionárias e desumanas, que quase se impuseram no mundo durante a Segunda Guerra. Mas isso não é abordado frontalmente, servindo antes como pano de fundo para uma trama mais complexa, que envolve um homem que assume a identidade de um escritor para conseguir fugir para um país livre da ameaça alemã.

O filme é protagonizado por Franz Rogowski, que lembra muito Joaquin Phoenix, só que em versão com bem menos recursos dramáticos (ele é o que restaria de Phoenix se, além do talento, também lhe retirassem o sex appeal). Petzold parece acreditar demais na capacidade do ator, mas seu estilo minimalista nem sempre funciona; ele não consegue carregar o filme consigo. Mas felizmente, Petzold pode contar com Paula Beer, que engrandece as cenas em que aparece e injeta um pouco de vigor e charme no longa.

"Transit" é um filme dinâmico e, ao que parece, capaz de prender a atenção de muitos espectadores. Não foi o meu caso: eu confesso que em vários instantes me peguei pensando na vida do lado de fora da sala (e às vezes quase cochilando); o compasso do filme e a maneira de Petzold abordar seus temas tendem a me deixar mais exaurido do que propriamente interessado.Reconheço que o filme tenha qualidades, mas para mim nenhuma delas foi o suficiente para manter meu interesse até o fim.


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Festival de Berlim 2018: críticas - "Damsel" / "Aeroporto Central" / "Las Herederas"

(Damsel, de David e Nathan Zellner)
Mia Wasikowska e Robert Pattinson em "Damsel"

"Damsel" é uma paródia aos filmes sobre o Velho Oeste que se propõe a ressignificar uma série de cânones típicos dos westerns clássicos. O herói é desajeitado, sofre de úlceras e não aguenta sequer beber um gole de uísque; a moça nada tem de frágil e é empoderada e destemida; o índio não é mocinho nem bandido; o pároco não tem fé, é manhoso e carente de afeto.

Pela descrição, parece um material promissor para uma divertida comédia. Mas o humor nonsense propositadamente de mão pesada e sem sutileza proposto pelos irmãos David e Nathan Zellner é quase sempre tão pouco engraçado que os risos surgem antes por constrangimento que por qualquer outro motivo. Mas o que isso importa? Afinal, ri-se, achando ou não graça; o que conta é que o filme, mesmo em sua grosseria, consegue se impor sobre o público, então a aposta da dupla de irmãos de humor duvidoso é vencida por eles, no fim das contas.

A ideia de inserir uma personagem feminina empoderada não é nada nova, como certamente parte dos jornalistas há de alardear ("Johnny Guitar", não nos esqueçamos, é de 1954, e "Viva Maria!" é de 1965). Não é aí que está a novidade de "Damsel": está na maneira como um filme tão mal compassado, que não dosa bem as cenas de violência e drama com as de humor, consiga chegar até o fim segurando o espectador pelo cabresto. Os irmãos Zellner subvertem os parâmetros clássicos de narrativa e, da sua maneira peculiarmente esdrúxula, conseguem que, com o tempo, a estranheza de seu filme passe a ser vista como normalidade; o espectador até começa a se divertir em algum nível com toda aquela bobagem que está na tela. 

(Há, no entanto, ao menos uma cena que arranca risadas por ser verdadeiramente divertida: quando Robert Pattinson entoa uma cançoneta de melodia primária e versos mais pobres ainda, que compôs para sua amada. O ator, aliás, se mostra mais competente a cada novo filme.)

Os diretores, ao que parece, sabem muito mais o que estão fazendo do que deixam transparecer. Por menos que se goste do filme (que recebeu algumas vaias ao fim da sessão para a imprensa), é preciso reconhecer que é um trabalho original de duas mentes ousadas – além de assustadoramente autoconfiantes. Ter a pachorra de fazer um filme como "Damsel" é algo digno de admiração. Pode ser uma das comédias menos genuinamente engraçadas já feitas, mas conseguir que um filme desses dê as cartas da maneira como ele o faz, a despeito de suas fraquezas, é algo que merece respeito.

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(Zentralflughafen THF, Karim Aïnouz)

Cena de "Aeroporto Central"
"Aeroporto Central" é o nome do documentário que marca a volta do cearense Karim Aïnouz à Berlinale (a última vez em que ele apresentou um longa no evento foi em 2014, quando disputou o Urso de Ouro com "Praia do Futuro"). Seu novo filme, exibido fora de competição, mostra o aeroporto de Tempelhof, em Berlim, concebido por Hitler para ser o maior do mundo, mas que acabou se tornando um grande elefante branco depois da Segunda Guerra Mundial. Virou um lugar sem uma função específica, nas últimas décadas servindo como área de lazer e práticas esportivas. De uns anos para cá, acumulou uma nova funcionalidade: tornou-se centro de acolhimento de refugiados de conflitos pelo mundo, sobretudo o da Síria; é em Tempelhof que grande parte dos sírios que conseguiram permanecer em solo alemão estão ainda hoje.

O foco do filme é em alguns desses personagens que tentam começar uma nova vida em um país de cultura completamente distinta, muitas vezes sozinhos e sem conhecer a língua alemã. Refugiados de guerra são sempre um material humano riquíssimo; filmar trechos de suas vidas resulta inevitavelmente em um registro de enorme importância tanto histórica e quanto sócio-antropológica. Mas o filme de Aïnouz nunca vai além desse registro; é uma plataforma exibidora de um bom tema, sem dúvida, mas nunca é verdadeiramente um bom filme.

Sua direção é convencional, acomodada, e o filme consegue a proeza de ser cansativo e bem menos interessante que deveria, dado o material com o qual trabalha. A opção por uma câmera e uma montagem discretas pode até ser louvável, no sentido em que prioriza os personagens e não chama atenção para si. Por outro lado, há uma certa indolência nessa postura de deixar o filme todo nas costas dos personagens, não fazendo nada além de mero artesanato rotineiro ao redor. "Aeroporto Central" é um filme um bocado frustrante, para dizer o mínimo.

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(Las Herederas, Marcelo Martinessi)
Ana Brun em "Las Herederas"

Vem do Paraguai a melhor surpresa da Berlinale até o momento. "Las Herederas", de Marcelo Martinessi, mostra a história de uma mulher que se reencontra consigo mesma já na terceira idade, depois de anos de uma vida rotineira cuja falta de novidades a levou à depressão e a uma vida quase vegetativa.

A trama se passa na confortável casa de duas lésbicas, Chela e Chiquita, que há anos vivem juntas, mas sem "dar bandeira" de que são amantes. Afundadas em dívidas, as duas colocam os móveis e louças da mansão à venda. O amor entre elas ainda existe, mas não o fogo sexual; Chela parece o tempo todo incomodada com a presença e as insistências de afeto de Chiquita. Quando esta vai parar na prisão por conta de dívidas no banco, é ao mesmo tempo um choque e um alívio para Chela, que vê ali uma chance de voltar a se empolgar com a vida.

O filme, estreia do diretor em longas, é lento e contido, mas acertadamente delicado ao falar dos temas que se propõe debater. É um filme bonito sobre voltar a si após muitos anos devotados a um relacionamento. Talvez pudesse, também, trazer à personagem um certo despertar político, que fizesse Chela dar mais atenção ao mundo fora do ambiente burguês ao qual ela se habituou ao longo da vida. Mas é o tipo de exigência que não se pode fazer a um filme que não se propõe a esse tipo de questão. A jornada de Chela, afinal de contas, é antes voltada para uma redescoberta íntima, pessoal, que para o mundo que a rodeia.

A lamentar apenas que o roteiro tenha algumas soluções que soam "fáceis" demais – o envolvimento de Chela com uma moça mais jovem, por exemplo, podia ficar em um campo do sugestivo ou imaginário, mas Martinessi torna a situação palpável demais, sem necessidade nenhuma (parece o tipo de situação "corrigida" em alguma oficina de roteiro, essa praga que empobrece tão frequentemente filmes que poderiam ser bem melhores caso seguissem os instintos originais dos roteiristas). Mas isso não é tão sério; em sua lentidão e seus leves tropeços, Martinessi consegue criar uma personagem cativante e um filme respeitável, sobre o quanto situações adversas por vezes podem ser grandes lições. 

Ana Brun, no papel de Chela, tem uma atuação exemplarmente introspectiva, em total consonância com o estado de espírito pós-depressivo da personagem; outras atrizes talvez incorressem no erro de enfatizar demais suas expressões e reações (segundo o site IMDB, é sua primeira experiência como atriz). É uma bela performance, que tem tudo para deixar Berlim merecidamente premiada.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Festival de Berlim 2018 - crítica: "Grass"

(Grass, Hong Sangsoo)


Kim Minhee, sempre excelente, em cena de "Grass"

Hong Sansoo é como um Fassbinder dos anos 2010: ninguém faz tantos filmes por ano quanto ele – mas, principalmente, ninguém faz filmes tão novos e cheios de frescor. Não há um projeto do sul-coreano (por mais irregular que seja) que não traga alguma coisa absolutamente nova, mesmo que o diretor repita sempre uma encenação muito parecida: conversas de personagens sentados à mesa, não raro bêbados, em que se fala muito sobre a vida e as dificuldades do amor.

Mas talvez ele tenha chegado a um ponto em sua carreira em que devesse se demorar um pouco mais sobre um projeto, em vez de filmar rápido para se livrar logo e seguir com o seguinte. Seu novo longa, "Grass", exibido fora de competição em Berlim, é quase sempre tão instigante, vivo – por vezes é mesmo extraordinário – que deixa sempre a sensação de perda quando as situações são interrompidas, não ganhando um prolongamento que poderiam receber em uma dramaturgia mais tradicional. As pequenas cenas dos vários "núcleos" do longa são como uma degustação de um filme que Hong talvez tenha pensado em realizar, mas que por fim optou por não tocar adiante (provavelmente já pensando no projeto seguinte). Pela primeira vez, mais que a ansiedade por um "novo Hong Sangsoo", fica com o espectador a ansiedade por ter um pouco mais "deste Hong Sangsoo".

A estrutura que ele nos apresenta desta vez é mais complexa do que de hábito. O centro é uma jovem solitária (a sempre sensacional Kim Minhee), que escreve em seu laptop notas sobre o cotidiano enquanto observa os frequentadores de um café. Ao seu redor, vê casais que falam sobre o amor, sobre álcool (aqui, conversa-se muito sobre bebedeira, mas bebe-se menos que de costume) e sobre a morte – principalmente o suicídio (talvez seja o filme mais existencialista de Hong). 

Nunca fica muito claro se a personagem de Kim inventa as histórias que presencia, se o que ela vê são as tramas que ela mesma está recriando ou se apenas se inspira no que está a observar para criar a espécie de diário que está escrevendo. De qualquer maneira, a mensagem é clara: o filme é uma observação sobre a vida, sobre ver pessoas simplesmente vivendo e falando sobre o amor (o "tema dos temas", como dizia Truffaut). Enquanto ouve um rapaz e uma moça falando de uma jovem que se matou, Kim pensa consigo: "Aqueles dois ali, como são ridículos! Falando da morte dos outros, enquanto a deles próprios pode chegar a qualquer hora". Talvez seja a fala-chave sobre o sentido deste belo filme. 

Que, no entanto, é incompleto e por vezes falho (a própria personagem de Kim Minhee tem uma subtrama envolvendo um irmão que não se encaixa muito bem no resto do filme; parece querer dizer sobre as frustrações amorosas da própria personagem, mas é o tipo de situação que exigia mais desenvolvimento por parte do diretor-roteirista. Parece estranhamente deslocada).

Ainda assim, "Grass" vale por vários momentos de sensacional inventividade: o melhor deles é quando uma das personagens, enciumada, fica indecisa sobre tomar uma determinada atitude ou não, ficando por minutos subindo e descendo uma mesma escada. (O tipo de cena simples que um cinéfilo agradece aos céus por ter a oportunidade de conferir no cinema de vez em quando).

Outro ponto excepcional: a maneira como o diretor usa a música. São trechos de músicas clássicas, diegéticas (o dono do café é um entusiasta desse estilo musical, então as canções estariam de fato "tocando" naquele bar), mas que são utilizadas durante diálogos principalmente para ilustrar o fluxo emocional das pessoas enquanto têm uma conversa. Não é sempre que há exatamente uma consonância entre o que os personagens sentem e o tom da melodia que escutam. Essa inadequação entre melodia e o conteúdo específico da conversa quando surgem juntos reforça uma ideia curiosa: a do quanto os nossos sentimentos não são uma coisa pura, mas surgem sempre misturados, confusos e fora do timing esperado; surgem em turbilhões, de maneira desordenada e junto a outros sentimentos. 

Talvez não fosse nada disso que Hong buscasse com as cenas, mas é um efeito que ele consegue assim mesmo – e quando um artista ainda tem a capacidade de causar reflexões tão ricas a partir de artifícios tão simples, como exigir dele qualquer coisa a mais que isso? Eu não exijo.

Festival de Berlim 2018 - crítica: "Isle of Dogs"

(Isle of Dogs, Wes Anderson)
Cena da animação que abriu a Berlinale 2018

Wes Anderson abriu a Berlinale 2018 com "Isle of Dogs", animação em stop motion sobre um garoto que vai a uma ilha atrás de seu cãozinho de estimação. O pano de fundo é a fictícia cidade de Megasaki, em um Japão futurista, quando cachorros são isolados da sociedade -- são vistos como uma ameaça à saúde pública (na verdade, interesses políticos criam uma situação para apartar os bichinhos do mundo humano).

A técnica de animação é impressionante: as imagens sugerem por vezes teatros de fantoches; por outras, animações orientais. Alguns detalhes são surpreendentemente realistas -- a textura da pele de alguns personagens, por exemplo, ou as expressões faciais 'humanas' de alguns cães (se bem que, neste caso, não se pode falar exatamente em "realismo"). E o filme é muito feliz na escolha e composição das cores, sóbrias e em tons terrosos; visualmente, é um trabalho de magnífica sofisticação e bom gosto.

Embora seja "para toda a família", é claramente um filme pensado no público adulto. Mas uma animação que se pretenda para pessoas maiores de idade precisaria trazer algum comentário sobre o mundo humano (na verdade, mesmo aquelas feitas especificamente para as crianças deveriam ser assim); oferecer alguma alegoria por meio da fabulação animada. Mas Anderson, como de praxe, parece antenado unicamente aos aspectos visuais e narrativos de seu longa; a verdade é que o filme é quase oco de significado. 

É claro que deve ter havido alguma intenção mais ou menos política na opção por mostrar cachorros forçados a viver separados da sociedade, como se fossem ameaças ou seres de uma categoria inferior. Talvez seja um aceno à questão dos imigrantes e refugiados, ou é possível que seja uma forma de falar de minorias ou párias sociais. Mas é preciso ser sincero: qualquer que seja a associação, ela seria fruto da mais pura boa vontade do espectador; o que o filme oferece não tem estofo o suficiente para nenhuma leitura de fundo mais social. Anderson não desenvolve personagens e nem situações o suficiente para o filme ter qualquer amplitude em um nível político; está bem mais preocupado com aspectos formais e, sobretudo, narrativos.

Uma das enormes preocupações é em como narrar ao grande público (e fazê-lo especificamente em inglês) uma história em que a maior parte dos personagens se comunica ou latindo ou falando em japonês. As boas e velhas legendas resolveriam o problema às mil maravilhas – ou então usar da "licença poética" de convencionar o inglês como língua corrente. Mas o roteiro tem por meta resolver isso com na base da verossimilhança (uma tolice sem tamanho: desde quando cachorros que pensam e falam como humanos são minimamente verossímeis?). Então perde tempo tempo com atitudes como introduzir uma intérprete de palestras e programas de TV traduzindo os grandes discursos governamentais (e tendo tiradas engraçadinhas) ou incluir uma estudante americana de intercâmbio no Japão como uma das personagens principais. (A ideia é um erro colossal: como ela é a única personagem de fato politizada, que toma atitudes, soa racista por parte do roteiro optar justamente pela estrangeira da história como a única que toma algum posicionamento firme diante do governo corrupto de Megasaki; a ideia é de uma inabilidade assustadora).

Anderson disse na coletiva de imprensa que sua inspiração foi sobretudo o cinema mais contemplativo de alguns diretores japoneses. Pode ser, porque de fato sua narrativa é arrastada demais para os parâmetros ocidentais, mas o roteiro quer o tempo todo compensar isso com uma profusão de idas e vindas temporais didáticas e sem a menor necessidade, que mais emperram a narrativa que a dinamizam. As digressões só atrapalham: são tropeços que impedem que o espectador se conecte aos personagens. 

Os cachorros ao menos são inofensivos, e de vez em quando são até simpáticos, mas nenhum deles tem carisma o suficiente para dar algum vigor ao filme ou aproximá-lo do coração do público (e quando um diretor não consegue fazer um filme repleto de cãezinhos fofos conquistar a paixão do espectador, é sinal de que alguma coisa saiu muito errada).

Os fãs de Wes Anderson talvez até gostem do filme, porque vão reconhecer o mesmo estilo de humor e de narração de seus trabalhos com atores. Mas tirando o aspecto de citação a seus filmes pregressos e a sempre grande boa vontade de seu fã-clube, talvez nem mesmo o ser mais apaixonado por cães se importe minimamente com este filme – que, no fim das contas, tem pelo menos uma inquestionável qualidade: é curto.


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Crítica: "Eu, Tonya"

(I, Tonya, 2018), de Craig Gillespie


Margot Robbie em cena de "Eu, Tonya" 

Parte do público não aceita mais determinados tipos de cena de violência no cinema – especialmente se quem é agredido faz parte de algum grupo minoritário. Argumenta-se que, muitas vezes, existe um forte elemento fetichista quando se mostra, por exemplo, uma mulher apanhando de um homem; é como se o diretor (em geral do sexo masculino, não por acaso) estivesse de certa forma tendo um prazer perverso com aquilo que filma. Além disso, são cenas que reforçam uma situação que, em um mundo civilizado, não deveria acontecer; o cinema, aliás, até estimularia comportamentos violentos.

É claro que isso não é de todo absurdo, mas o cinema é uma arte da representação tão cheia de possibilidades que mesmo as situações mais perversas (ou ao menos grande parte delas) podem fazer sentido, sim, quando reproduzidas em um filme. Dependendo do contexto, da forma como é encenada e da intenção do projeto, a violência pode ser legitimamente justificada; muitas vezes, aliás, é até essencial.

"Eu, Tonya" não seria nem de longe o filme vibrante e poderoso que é se o diretor Craig Gillespie evitasse a violência ou a tratasse de maneira por demais respeitosa. Ela existe em todo o filme – e, muitas vezes, acompanhada de uma desconcertante carga de humor. Se o longa tem sido tão mal recebido por grande parte dos espectadores (a outra metade, ao contrário, o tem exaltado) é por uma incompreensão generalizada de que a violência – e mais importante: a violência vista com certa naturalidade, talvez até desprezo – está na entranha da história que é narrada. Os detratores caem no simplismo de tomar por deboche da personagem o que, no fundo, é uma atitude que denota total compreensão do drama dela e da forma como ela conseguiu superar seus obstáculos.

O filme conta a história de Tony Harding, campeã americana de patinação artística na década de 90, mas que virou notícia mesmo ao se envolver em um escândalo, quando sua maior rival, a compatriota Nancy Kerrigan, foi fisicamente atacada às vésperas de uma Olimpíada. Na época, por uma série de fatores, Tonya levou a fama de agressora, mesmo não tendo sequer cogitado atacar a oponente.

Desbocada, mal vestida, explosiva: Tonya era a encarnação de uma América perdedora que conseguiu superar sua sina e vencer na vida. Ao mesmo tempo, porém, seu comportamento de bad girl era prato cheio para críticas e condenações. E como a mesma sociedade que precisa de heróis também adora um linchamento, a opinião pública logo abraçou a demonização da patinadora e, da mais sofrida heroína, ela se tornou vilã nacional.

O filme não tem um pingo de compromisso com a verdade ou o "factual" da história de Harding. É uma recriação de algo próximo ao que deve ter sido sua vida, dando a entender que aqui, ali (e provavelmente também acolá) as coisas não foram exatamente daquele jeito.

O roteiro se estrutura com cenas de um material que serviria a um documentário (televisivo e banal, além de certamente não muito bom) sobre a trajetória da patinadora. Vemos pessoas que a conheceram bem comentando sua vida: a mãe, o ex-marido, a antiga treinadora – além da própria Tonya. O tom das atuações nesses trechos é farsesco e levemente jocoso; é a dica para a maneira como devemos encarar o que vem pela frente: sem tanta seriedade. Essa falsa estrutura logo se dissolve: os pontos de vista muitas vezes não são respeitados, e se o título "Eu, Tonya" sugere que o filme seja a versão da atleta sobre sua história, isso não passa de uma peça que o longa prega no público. Diversas versões sobre fatos da vida de Tonya se misturam, sendo que nenhuma provavelmente corresponda ao que de fato ocorreu. Há uma constante confluência (ou contaminação) de versões sobre os fatos, e o diretor parece ter a sabedoria de escolher sempre o mais divertido para mostrar.

É notável a habilidade do roteiro em debater o que é verdade, o que é mentira e em o quanto as diferenças entre narrativas podem formatar um conceito ou o outro. (A própria maneira como a mídia usou e abusou desses três elementos é uma das matérias-primas do filme.) No fim da trama, a própria Tonya resume: "Cada um tem sua verdade", uma frase que, de tão repetida por aí, hoje soa como conversa de botequim, mas cujo sentido se adequa ao filme com perfeição. Logo em seguida, após esse instante de lucidez e de compreensão de que tudo é relativo, ela volta aos termos do ponto de vista dela mesma: "Essa [que o público viu] é a porra da verdade!". E de fato é, mesmo: cheia de furos, contradições, trechos ilusórios; mesmo a verdade pura, quando relatada, é antes de tudo uma narrativa.

Mas há uma cena bem anterior em que esse jogo entre narrativas é ilustrado ainda mais perfeitamente. Com a voz em off, o namorado da jovem descreve um fato do passado, quando Tonya teria apontado uma carabina contra ele e atirado. De repente, a própria personagem suspende a cena e, brechtianamente, diz para a câmera: “Papo furado: eu nunca fiz isso!”. Ela diz de forma não muito convincente (e hilária) e, ainda por cima, continua a cena logo depois, ajeitando a arma, como se não se empenhasse muito em se recusar a fazer parte da reconstituição; deixa ao espectador a tarefa de intuir qual das versões corresponderia à verdadeira: a dela ou a dele (na verdade, provavelmente nenhuma das duas).

Mas saber se aquilo ocorreu ou não, não tem relevância alguma; para além das possibilidades de o rapaz querer se fazer de vítima e da moça tentar não ficar mal na história, há outro ponto em questão: o que importa é que poderia muito bem ter acontecido. Esse tipo de reação explosiva e violenta dá uma ideia do tipo de comportamento que uma vida como a de Tonya abarcava. É a isso que a cena se presta.

Sebastian Stan e Margot Robbie em cena do filme

Tonya Harding nasceu e foi criada em meio a uma terrível escassez – material e de afeto; era representante legítima do mais puro white trash americano. Sofreu todo tipo de humilhações e foi criada em um ambiente em que atos e palavras agressivas aconteciam com tanta frequência quanto faltava dinheiro para pagar as contas. Comeu o pão que o diabo amassou, especialmente nas mãos da mãe e do namorado, ambos capazes de rompantes absurdamente violentos.

Logo, sua vida renderia uma lacrimosa tragédia. Ou um filme humanista que poderia se escorar em certo "coitadismo" para promover a empatia do público. No entanto, o material é convertido em um filme nem tanto sobre uma vítima, mas acima de tudo sobre uma sobrevivente. Esse é o cerne da história: se manter viva em um ambiente hostil. É óbvio que a trajetória trágica de Tonya tem relação direta com ela ter sido submetida a diversas situações de um submundo desigual, truculento, machista, que relega quem não é um winner à marginalidade. Mas o foco de "Eu, Tonya" é outro: mostrar como essa vítima não se deixou abater e, por uma questão de  se manter viva, lutou o quanto pôde.

E Tonya precisou usar as únicas armas que conhecia e que estavam ao alcance dela para seguir adiante. Ou seja: pela gritaria, pela porrada, pelos truques. É aí que a violência naturalizada do filme se justifica: simplesmente porque é um retrato de um estrato social em que a violência é naturalizada no dia a dia. Só que a Tonya não pode se dar ao luxo de levar toda a tragédia cotidiana muito a sério e nem de se fazer de pobrezinha; levou porrada, devolve na hora, com a mesma brutalidade. Se o filme naturaliza e até torna "engraçada" a violência, é nesse mesmo espírito – inclusive com a saudável preocupação de não "santificar" a personagem (que de santa não tinha nada).

Há uma cena em que a mãe de Tonya, furiosa, arremessa uma faca no braço da filha. Pouco depois, rememorando o ocorrido, comenta para a câmera: "Bem... Toda família tem seus altos e baixos". Há quem julgue um comentário desses de tamanha imoralidade que simplesmente não consegue achar graça daquilo. Mas o jogo que "Eu, Tonya" propõe é o de justamente tentar colocar o espectador um pouco na situação da personagem e tentar levar as coisas com menos solenidade, mais leveza – e, se possível, algum humor. Assim como fazia Tonya para seguir em frente (na cena, ela não faz nenhum dramalhão: simplesmente arranca a faca do braço e a coloca na mesa, com inabalável firmeza diante da mãe agressora).

Craig Gillespie veio da publicidade e, como qualquer outro cineasta com essa origem, sabe como vender suas ideias. Talvez a facilidade com que consiga os efeitos que procura (mesmo suas estratégias estando tão aparentes) contribua para fazer o filme tão rejeitado. Ele às vezes abusa de uma certa pirotecnia visual, mas nada que comprometa o resultado – ao contrário: dá até um bom dinamismo à história. O filme se apropria de alguns procedimentos de certos filmes de Martin Scorsese, especialmente "Cassino" (quando Tonya tem cabelos curtos, lembra tanto a Ginger de Sharon Stone, na segunda parte do filme de 1995, que é quase uma citação).

A Tonya de Margot Robbie é o que muitas pessoas costumam chamar de "força da natureza"; é uma atuação digna de antologia. Poucos têm comentado a performance de Sebastian Stan, mas ele está impecável na pele do ex-marido violento e atrapalhado da protagonista. Mais elogios tem recebido Allison Janney, como a mãe; ela é sempre uma ótima atriz, mas sua personagem talvez seja um pouco mais caricata (ainda) do que deveria. É uma performance admirável, no entanto.

No belíssimo plano final, vemos o título do filme surgir ao lado de uma poça de sangue (saída do rosto de Tonya, após levar uma surra em um decadente ringue de luta). O ringue é uma analogia à própria vida da personagem, e seu sangue no chão é o rastro vistoso, mas dolorido, de uma parte que sempre perdemos no caminho e que nunca mais vai reaveremos – e que vai ficar ali, pisoteado. Ainda assim, segue a luta. "Eu, Tonya" é sobre alguém que, mais do que vencer, teve uma pantagruélica vontade de viver.