quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Top 10: os melhores filmes de 2017

Meu ranking com os dez melhores filmes de 2017 (entre os que entraram em circuito comercial no Brasil ou foram exibidos em streaming ao longo do ano).

1. "Na Praia à Noite Sozinha" (Hong Sang-soo)
2. "Mistério na Costa Chanel" (Bruno Dumont)
3. "A Mulher que se Foi" (Lav Diaz)
4. "Nocturama" (Bertrand Bonello)
5. "Jackie" (Pablo Larraín)
6. "O Outro Lado da Esperança" (Aki Kaurismaki)
7. "A Garota Desconhecida" (Jean-Pierre e Luc Dardenne)
8. "Logan" (James Mangold)
9. "A Vida de uma Mulher" (Stéphane Brizé)
10. "A Qualquer Custo" (David Mackenzie)

Melhor filme nacional: "Era o Hotel Cambridge" (Eliane Caffé)

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Análise: biografia de Pauline Kael

O texto abaixo foi publicado há 6 anos. em 11 de dezembro de 2011, pelo caderno Ilustríssima, da "Folha de S.Paulo". Traz uma análise sobre a biografia de Pauline Kael, "A Life in the Dark", escrita por Brian Kellow. É um texto pelo qual eu tenho especial apreço, pelo prazer que foi a apuração e escrita, mas não apenas: ele acabou sendo incluído em uma prova de Língua Portuguesa de um concurso público (o exame foi polêmico: muitos candidatos à vaga consideraram a prova difícil ao extremo - eu mesmo, autor do texto, confesso que teria dificuldades para solucionar algumas das questões). De qualquer modo, foi um trabalho que me agradou muito fazer e o qual reproduzo abaixo.




O retrato de uma crítica

 

Resumo A primeira biografia de Pauline Kael suscita dúvidas sobre sua honestidade intelectual -ela teria afanado estudos sobre "Cidadão Kane" de um de seus colaboradores-, mas reafirma a norte-americana como a mais célebre crítica de cinema dos Estados Unidos. Dez anos após sua morte, o lançamento desse e de dois outros livros nos EUA provam a permanência de seu prestígio. 

BRUNO GHETTI
Há 40 anos, a mais célebre crítica de cinema dos Estados Unidos, Pauline Kael (1919-2001), publicava seu artigo mais famoso. Era um detalhado estudo sobre "Cidadão Kane" (1941), espertamente intitulado "Raising Kane" (trocadilho com a expressão "to raise Cain", que significa algo como "gerar reações inflamadas").

No texto -que integra a coletânea "Criando Kane e Outros Ensaios", publicada no Brasil em 2000-, Pauline defendia que o roteirista Herman J. Mankiewicz era a força criativa por trás do filme, mais importante até que o diretor, Orson Welles (1915-85). Ela queria fazer justiça a Mankiewicz, que caíra em esquecimento, enquanto Welles entrara para a história com a reputação de gênio maldito, frequentemente reivindicando para si as principais qualidades de "Kane" e a coautoria do roteiro -embora Pauline jurasse que Welles não escrevera nem sequer uma linha do script.

Independente do quanto de justiça e veracidade "Raising Kane" trazia (o artigos foi bastante contestado na época), surgem agora evidências de que a própria Pauline atuou de modo tão pouco ético como ela acusava Welles de ter agido. A crítica teria baseado o seu artigo nos estudos realizados por outra pessoa -Howard Suber, pesquisador da UCLA (Universidade da Califórnia, em Los Angeles), que colaborou com Pauline, mas que, por fim, não foi sequer mencionado no texto final. A revelação surpreendente está em *"Pauline Kael: A Life in the Dark" [Viking, 432 págs., R$ 68,30]*, a primeira biografia da crítica, escrita pelo jornalista Brian Kellow.

"Ela roubou os estudos", diz Kellow, em entrevista à Folha, por telefone, de Nova York. "Howard Suber era um professor-assistente da UCLA que pesquisava sobre 'Kane'. Pauline descobriu e o chamou para colaborar em uma publicação. De posse dos dados da pesquisa dele, nunca mais falou no assunto. Um dia, Suber abriu a [revista] 'New Yorker' e lá estava o trabalho dele, em um artigo assinado só por Pauline. Foi chocante descobrir isso porque, em geral, Pauline era uma pessoa ética", diz.

Por e-mail, Suber confirmou à Folha a versão de Kellow. "As conclusões expostas no artigo são mesmo dela. Mas, de resto, diria que ela não fez pesquisa nenhuma, apenas usou o que eu forneci." Na época, o crítico e cineasta Peter Bogdanovich quis defender Suber. "Mas era muito doloroso para mim falar sobre isso. Só agora resolvi desabafar", diz o pesquisador.

KAELMANIA. A revelação certamente deixa uma mancha na reputação de Kael, mas a crítica dificilmente deixará de ser respeitada -até porque, ao longo da carreira, foi atacada muitas vezes pelos (diversos) detratores e conseguiu sair incólume, seguindo até hoje como a mais influente crítica americana.

Prova de seu prestígio mesmo dez anos após sua morte é a atual "kaelmania" que toma conta do mercado editorial nos EUA -recentemente, além da biografia de Kellow, foram lançadas duas outras publicações relacionadas à crítica. Uma delas é a excelente antologia *"The Age of Movies: Selected Writings of Pauline Kael" [Library of America, 750 págs., R$ 97,70]*, com os textos mais importantes de Pauline (menos o longo artigo sobre "Kane", que ficou de fora por falta de espaço). O livro é organizado pelo crítico e escritor Sanford Schwartz.

A outra é *"Lucking Out" [Doubleday, 272 págs., R$ 60,90]*, livro de memórias do jornalista James Wolcott, da revista "Vanity Fair", em que Pauline, sua amiga pessoal e mentora, surge como uma personagem expressiva -ela domina quase 50 páginas do livro. Como Kellow, ele traça um retrato respeitoso escrito por um admirador, mas sem deixar de mostrar que a crítica nem sempre era uma pessoa fácil. Protegido de Pauline, Wolcott é um caso típico de "Paulette", denominação jocosa dada no meio jornalístico dos EUA aos diversos críticos surgidos nos anos 70 que imitavam o estilo kaeliano.

A devoção dos "Paulettes" à inspiradora não é tão difícil de entender: os textos ferinos de Pauline demonstravam ampla cultura geral e eram peculiarmente fluidos e divertidos. Ela não seguia nenhuma linha teórica -acreditava que a força de uma crítica vinha de uma sua própria resposta emocional ao que via na tela.

"Bastava ver um filme uma vez para ela reparar em detalhes que outros críticos não notariam nem revendo em diversas ocasiões", ressalta Kellow. O conteúdo de seus textos era polêmico e até podia ser discutível, mas o prazer literário que proporcionavam era inegável. Tanto que seu livro de críticas "Deeper into Movies" (1973) foi o primeiro do gênero a ganhar um National Book Award.

TRAJETÓRIA. Pauline Kael nasceu na pequena Petaluma, Califórnia, em 1919, filha de pais judeus poloneses. Foi criada em um rancho de galinhas, mas em um meio que privilegiava o interesse pelas artes. Mas sua formação cultural se deu mesmo quando se mudou para a região de San Francisco, onde estudou filosofia e conviveu com artistas de vanguarda.

Antes de se tornar uma crítica de sucesso, Pauline penou em profissões diversas: foi costureira, cozinheira, "ghost-writer" e até cobaia de cosméticos. Segundo o biógrafo, "ela também tentou ser roteirista, dramaturga e autora de peças para rádio, mas não era muito boa nisso. Só encontrou sua voz mesmo como crítica".

A tal voz Pauline botou para fora pela primeira vez aos 33, em 1952, com uma análise (negativa) de "Luzes da Ribalta", de Charles Chaplin, na revista "City Lights". Mas sua situação financeira melhorou só dez anos depois, quando ganhou notoriedade nacional com o texto "Circles and squares", em que atacava o crítico Andrew Sarris e sua "teoria do autor" (derivação da "política dos autores", criada pelos franceses, nos anos 50). O artigo trazia características importantes da escrita kaeliana: o estilo coloquial, o gosto pela polêmica e a antipatia ao culto ao cineasta-autor -de certa forma, o texto foi um "esquenta" para a defesa do cinema enquanto arte colaborativa que ela praticaria em "Raising Kane", de 1971.

Sarris levou as críticas pelo lado pessoal e iniciou uma disputa pública com Pauline. "Ela respeitava a inteligência de Sarris, mas não o achava um bom escritor", diz Kellow. "Sarris não gostava dela. Ao entrevistá-lo para meu livro, para poupar seu tempo, sugeri uma conversa de só 15 minutos. Mas Sarris disse: 'Não tem problemas, podemos conversar por mais tempo desde que eu não precise voltar a falar dessa senhora!'".

EXTREMOS. Odiada por muitos, mas já com leitores fiéis, Pauline estreou em 1967 na prestigiada revista " The New Yorker", onde trabalharia até 1991, quando se aposentou ("para não ter mais que ver filmes de Oliver Stone", ela brincou na época, embora o verdadeiro motivo tenha sido o mal de Par-kinson, que a acompanharia até a morte, aos 82). Teve uma relação cordial, mas por vezes tensa, com seu editor, William Shawn, que lhe deu liberdade quase total em suas críticas -embora não gostasse dos seus coloquialismos.

Seus vigorosos textos das décadas de 70 e 80 a consolidaram como grande formadora de opinião. Mesmo escrevendo para uma revista de público refinado, não escondia sua aversão a filmes muito intelectualizados e pretensiosos -dizia, por exemplo, que ver alguns longas de Robert Bresson era "algo assim como ser açoitado, vendo cada lambada se aproximando". Se John Cassavetes, Rainer Werner Fassbinder e Andrei Tarkovski não estavam entre seus preferidos, obras menos ambiciosas de Brian de Palma, Irving Kershner e Paul Mazursky lhe proporcionavam grande prazer.

Mas Pauline sabia reconhecer um grande filme. Ela foi uma das primeiras a falar, por exemplo, da importância de "Uma Rajada de Balas" (1967), de Arthur Penn, e de "Nashville" (1975), de Robert Altman. Sua análise de "O Último Tango em Paris" (1972), de Bernardo Bertolucci, foi um dos seus pontos altos (mesmo que, lida hoje, possa soar exagerada).

"Pauline às vezes tinha tendência à hipérbole, idolatrava um filme na excitação do momento, mas isso vinha do enorme amor que ela tinha pelo que fazia", diz seu biógrafo, salientando que escrever sobre cinema foi a maior paixão da vida da crítica.

A maior, mas não a única: Pauline amou muito, mas não deu sorte em seus relacionamentos -tinha tendência a se apaixonar por homens gays. Com um deles (o cineasta de vanguarda James Broughton), teve sua única filha, Gina, que Pauline criou sozinha, com grande severidade. (Gina foi uma das poucas pessoas que se recusaram a colaborar com a biografia escrita por Kellow.)

O biógrafo descreve Pauline como uma pessoa enérgica, falastrona e em geral agradável, mas competitiva e centrada em si. Era generosa com os "Paulettes", mas exigia idolatria irrestrita dos mesmos. Mas sua maior qualidade talvez fosse o humor. Certa vez, o diretor George Roy Hill, irritado com uma crítica a "Butch Cassidy" (1969), escreveu-lhe uma carta desaforada, chamando-a de "vadia miserável". Pauline se divertia com o bilhete e o mostrava aos amigos que iam à sua casa. Pouco tempo antes de morrer, a crítica encontrou Hill em um restaurante. Ao ver que o cineasta também sofria de Parkinson, Pauline se apressou em lhe dar o contato de sua massagista: "Fará maravilhas por você!".

Kellow entrevistou cerca de 160 pessoas para a biografia e teve acesso total aos arquivos pessoais da crítica. "Fiquei impressionado: ela guardou quase todas as cartas que recebeu em vida" (entre os documentos, Kellow achou os estudos de Howard Suber, mas nenhuma pesquisa da própria Pauline sobre "Cidadão Kane"). A biografia reproduz vários trechos de textos de Pauline. Uma das principais qualidades dos seus artigos é o poder de análise do que estava acontecendo no mundo e como isso influía nos filmes. Seus textos falavam sobre a época em que foram escritos, além de mostrarem quem era Pauline Kael. Certa vez, disse que nunca escreveria uma biografia: "Fiz isso ao longo dos anos". De certa forma, ela tinha razão.