domingo, 10 de novembro de 2024

Crítica: Megalópolis

O texto abaixo foi publicado em 28.out.2024, na "Folha de S.Paulo", que detém os direitos autorais sobre o mesmo. O link do original é este.

Cena de "Megalópolis", de Francis Ford Coppola

Francis Ford Coppola nunca quis enganar ninguém: é um homem de grandes paixões e ambições. O problema é que em geral tem ideias grandiloquentes demais e condições materiais de menos para realizar projetos que lhe falam ao coração. “Megalópolis”, sonho que ele nutria desde os anos 1980, talvez seja o caso exemplar do quanto ideias que demoram tempo demais para se concretizar podem simplesmente se perder ao longo dos anos.
O projeto nasceu no cérebro de Coppola e logo desceu para o lado esquerdo de seu peito, mas ficou por tantos anos circulando tão unicamente entre essas duas pontas que por ali se fixou e deixou de fazer sentido fora desse circuito; na hora em que finalmente conseguiu ganhar materialidade, já não havia nada a ser materializado.
É decepcionante para os fãs descobrirem que, nesse tempo todo, esse tal projeto de toda uma carreira tinha por pressuposto ideias tão pouco inéditas – e, em certa medida, ingênuas – como a de traçar um paralelo entre o “império americano” atual e o romano de séculos atrás. Em todos os seus vícios, delícias, excessos – e sua inevitável decadência.
Também era uma ideia que fascinava Federico Fellini, e ainda que o italiano não tenha acareado diretamente os Estados Unidos e a Roma antiga, colocou em confronto uma Roma capitalista (e, é claro, americanizada) com a de tempos pré-cristãos.
Em “A Doce Vida”, de 1960, o fez de maneira inesquecivelmente lírica, mas entregou-se ao delírio completo no mais radical “Satyricon”, de 1969. O longa era sobre a Roma pagã e livre de certas amarras moralizantes que só surgiriam em uma era pós-Cristo; ali havia uma liberdade sexual e moral que só entraria em colapso depois que a mitologia romana cedeu espaço à religião – acima de tudo, à religião enquanto modo de dominar. Aquela Roma sem freios tinha os dias contados, e fosse por vontade dos deuses ou por ações humanas, de fato não durou muito tempo.
Mas o filme não era muita coisa além de um magnífico êxtase visual – no fundo, “Satyricon” não trazia nada de tão substancial em seu cotejo da Roma de ontem com a de hoje. Fellini estava lidando antes com uma mitologia sobre sua própria capacidade de criar do que com alguma mensagem real ao seu público.
Coppola faz algo parecido: usa sua própria mitologia para empurrar ao espectador um espetáculo de enorme estilização visual – embora nem de longe do mesmo nível de poder sensório que o de Fellini –, já partindo do princípio de que o público será arrebatado por sua visão. Aposta suas fichas no poder da arte: em sua capacidade de mudar o mundo, como bem acredita o protagonista de "Megalópolis", mas sobretudo na de ela acontecer e brotar de onde menos se espera, como bem acredita Coppola.
A arte, ele nos diz, surge a partir do caos de um artista em crise, talvez em desespero, que cria pela necessidade (ou pelo cacoete) de criar, mesmo sem muito substrato para isso. “Megalópolis” é a profissão de fé de Coppola em que os deuses das artes sempre operam milagres e hão de converter em algo grandioso mesmo o que vier de um artista sem inspiração.
Mas desta vez, os deuses o abandonaram. O filme é uma profusão de ousadias estéticas, mas que resultam invariavelmente estéreis. Existe ali uma louvável abertura ao risco, e Coppola ainda demonstra paixão, brilho nos olhos ao exercer seu ofício. O problema é que nada do que ele faz brilha nessa mesma sintonia: ou reluz com enorme estridência ou é opaco e esquecível. E o filme, ainda que de conteúdo relativamente simples, é de uma incapacidade comunicativa atordoante, em qualquer aspecto.
A grande ideia é mostrar que o mundo precisa urgentemente de uma mudança para que a espécie humana continue a existir. Do jeito que estamos, não iremos muito longe, o que é uma ideia bastante respeitável. O jogo político que Coppola estrutura em “Megalópolis” não tem muito mistério: o César de Adam Driver simboliza o progressismo, enquanto o Cícero de Giancarlo Esposito é o pensamento conservador – e o Clódio de Shia LaBeouf, os neofascismos.
Mas o César de Coppola nunca fornece ao espectador uma dimensão real sobre o que ele defende. Livrar-se de um sistema político que nos destrói? Ok, mas então que tipo de realidade política César está verdadeiramente propondo?
Ele se resume a pregar um mundo mais humano, “em que cada adulto terá direito a um belo jardim privado” – o que é muito bonito e desejável, apesar de um bocado neoliberal para alguém que se pretende um utopista. Mas é acima de tudo um tipo de projeto político por demais inocente, inane – é preciso ter muito amor por Coppola para ver o personagem como uma personificação aceitável do sonho por um futuro melhor. Na verdade, para um filme tão espalhafatoso e de ambições tão elevadas, “Megalópolis” é bem como o entendimento de César sobre política: fundamentalmente simplório.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

*O meu texto abaixo foi publicado no jornal "Folha de S.Paulo" (a quem pertencem todos os direitos autorais), em versão levemente editada, por razões de espaço, no dia 13 de fevereiro de 2024, neste link


ZONA DE INTERESSE (dir. Jonathan Glazer)


O italiano Gillo Pontecorvo se celebrizou por obras-primas políticas e anticolonialistas, como “A Batalha de Argel”, de 1966, e “Queimada!”, de 1970. Mas em alguns meios cinéfilos, seu nome se tornou associado a uma cena de alguns meros segundos, de um filme menor em sua carreira: “Kapò”, de 1960. 

O diretor mostrava, ali, uma prisioneira de um campo de concentração que se lança sobre uma cerca e morre eletrocutada – a câmera se aproxima de seu rosto logo após sua morte, exibindo-a em detalhes, em sua derradeira pose. Sobre esse movimento de câmera, conhecido como o “travelling de Kapò’’, Jacques Rivette escreveu “Da Abjeção”, texto muito influente em que discutia o que se pode ou não mostrar no cinema, em termos éticos. Uma pessoa que filma a morte com o sensacionalismo de Pontecorvo, dizia Rivette, mereceria “o mais profundo desprezo” do espectador.  

O comentário é de uma desmesura assustadora, mas Rivette apenas se valeu dessa cena para provar seu ponto sobre o quanto fazer escolhas para mostrar algo no cinema pode ter um caráter político, para além de intenções meramente plásticas.

No começo dos anos 1990, o prestigiado crítico francês Serge Daney (mesmo sem nunca ter visto o filme) ressuscitou o texto, atribuindo ao “travelling de Kapò” uma espécie de base moral sobre a qual o seu pensamento cinematográfico se ergueu. Mas já alguns anos antes, em 1985, o francês Claude Lanzmann havia lançado um documentário monumental sobre o Holocausto, “Shoah”, que de certo modo havia empregado na prática a ética rivettiana. Afinal, o longa de mais de 9 horas não trazia uma cena sequer mostrando imagens do perecimento humano em campos de concentração – e menos ainda de reencenações fictícias da tragédia operada por Adolf Hitler e seus seguidores; o foco era no depoimento dos que falavam de suas experiências durante a Guerra, ilustradas por imagens dos campos feitas 40 anos depois do pesadelo encerrado em 1945..  

O inglês Jonathan Glazer parece ter levado bastante a sério a lição rivettiana, a ponto de fazer um filme sobre o Holocausto sem mostrá-lo propriamente. “Zona de Interesse” traz o campo de Auschwitz sem representá-lo; a tragédia humana está literalmente ao lado. A trama tem por foco o comandante Rudolf Höss, que morava com sua grande família em uma mansão bem ao lado do campo de concentração.  

O espectador não vê nada de atroz: Glazer ocupa-se de mostrar o dia a dia da família Höss, em suas preocupações pequeno-burguesas – enquanto, do outro lado da muralha, subia dos crematórios uma fumaça densa, e gritos de pavor podiam ser entreouvidos no lar daquela família de quase um comercial de margarina. Em sua extrema cautela em não representar o sofrimento humano, é como se o longa reivindicasse para si ser um anti-“travelling de Kapò”.  

Representar o Holocausto na arte sempre foi um desafio, e no cinema a questão parece ainda mais complicada. O hoje antiquado ensaio “Noite e Neblina”, de Alain Resnais, de 1956, ainda é tido por muitos como a mais bem-sucedida obra sobre a shoah, mas a verdade é que apenas três anos após o fim de Auschwitz já havia sido feito tanto o primeiro como talvez o filme definitivo sobre o tema.

“A Última Etapa”, de 1948, da polonesa Wanda Jakubowska, mostra prisioneiras que tentam resistir, com base na própria experiência da cineasta. Vários dos atores também tinham acabado de sair vivos no campo polonês – e as barracas de Auschwitz, ainda cheirando a atrocidade, serviram de cenário para o longa. Ter sido feito com conhecimento de causa o eleva de modo espantoso; é um caso em que o “lugar de fala” de fato emprega um selo de excelência a uma obra de arte. 

Mas se até os anos 1990 a abordagem do Holocausto causava amor e ódio, fosse na solenidade de um “A Lista de Schindler”, de Steven Spielberg, de 1993, ou na tentativa de algo “leve” sobre os campos, como “A Vida É Bela”, de Roberto Benigni, de 1997, dos anos 2010 para cá algo mudou. Talvez porque cada vez menos sobreviventes dos campos estejam por aqui para narrar sua história – ou se incomodar com a representação do irrepresentável. Um ensaio no jornal “Libération”, em 2015, reclamava da falta de empenho da intelectualidade francesa para discutir o húngaro “O Filho de Saul”, de László Nemes: os críticos escreviam em seus textos que o longa causaria “choque” e “controvérsia”, mas a aceitação generalizada do filme beirava a reverência – resultava em uma estranha e então inédita situação em que o mais acalorado dos temas era aceito com relativa facilidade.  

“Zona de Interesse”, em sua quase unânime aceitação e aclamação crítica, tem reiterado essa insólita tendência.  

O filme deixa evidente – e Glazer disse isso em entrevistas – que sua ideia é evocar a noção de “banalidade do mal”, que Hannah Arendt usou em seu livro “Eichmann em Jerusalém”, de 1963. Mas é aflitivo ver o quanto o emprego estabanado dessa ideia por Glazer tem sido tão facilmente aceito: ao que parece, o cineasta utilizou o termo arendtiano de orelhada – ou então o compreendeu da forma que mais lhe foi conveniente. Na melhor das hipóteses, usou em seu filme o personagem mais inadequado possível para ilustrá-lo. 

Adolf Eichmann foi o principal responsável pelo transporte de judeus aos campos de extermínio onde seriam mortos das maneiras mais cruéis imagináveis. Mas era sobretudo, segundo Arendt, um sujeito medíocre – um burocrata enfiado na gigantesca engrenagem genocida nazista, mas que não trabalhava diretamente com as mortes. O nível de alienação que ele tinha sobre seu ganha-pão (planejar o extermínio alheio) era tão alto que, por fim, o número de pessoas que ele enviava ao massacre era nada mais do que isso: um número em uma planilha.  

O que é um caso muito diferente do de Höss, que, se não era um facínora sem a menor capacidade de empatia (o psiquiatra que o avaliou antes de ele ir para a forca, em 1947, o descreveu como “psicopata amoral”), no mínimo era uma personalidade perversa – para usar o termo que lhe aplicou a psicanalista Élisabeth Roudinesco. O mal, em Höss, nunca foi banal, mas tanto consciente quanto visceral.  

A noção de banalidade é complicada demais para ser só despejada em um filme como Glazer faz. E mesmo se aceitamos o pressuposto do longa de que, também em Höss (fosse um anticristo ou um homem medíocre), a crueldade em algum momento se banalizou, “Zona de Interesse” nunca se preocupa em dar indícios de como isso foi possível. É óbvio que mesmo as pessoas mais monstruosas são capazes de afeto e momentos rotineiros – não há novidade nisso. Mas apresentar seres humanos cruéis enquanto “gente como a gente” exige, no mínimo, alguma contextualização, sob o risco de se estar meramente humanizando o que não é humanizável. 

Sim: tampouco Arendt se aprofundou especificamente na questão da “banalidade do mal” em seu relato, mas o fez de maneira mais ou menos indireta ao analisar em pormenores o histórico de Eichmann: entende-se o processo pelo qual ele passou até se tornar quem se tornou. Mas, no filme de Glazer, não há a menor preocupação em indicar um caminho que dê uma noção ao espectador sobre como foi possível que seres humanos chegassem àquele nível de desumanidade. E sem alguma tese nesse sentido, qual a razão para fazer um filme sobre Auschwitz com foco na normalidade de quem morava ali ao lado e pouco se importava com o que acontecia ao redor? O projeto deixa de se justificar. 

Sem contextualizar quem era Höss e simplesmente apresentá-lo tendo atitudes corriqueiras, o filme perde seu potencial de crítica àquela família e se torna, de uma hora para a outra, uma esdrúxula defesa de uma pretensa normalidade de um monstro nazista. O que, além de uma imprecisão histórica, é uma ofensa às vítimas do Holocausto. 

Glazer veio da publicidade e dos videoclipes. É inegavelmente talentoso: seu “Sob a Pele”, de 2013, é um dos melhores filmes dos anos 2010. Mas é justamente essa habilidade para o arrebatamento que o torna um cineasta perigosamente sedutor.  

Não é um ingênuo: ao mostrar a família Höss, o faz de maneira controladamente fria, com a câmera distanciada – evita a identificação sentimental do público com aquelas pessoas. Por outro lado, também nunca as condena com a ênfase que se esperaria. Tenta fazer com que ninguém se emocione, mas, também, não odeie por completo aquela gente.  

Provavelmente a ideia era jogar na cara do espectador que também ele, de alguma forma, está ignorando um mundo tenebroso do lado de fora da própria bolha – e de cuja engrenagem ele faz parte. Mas é difícil de fato nos vermos ali, justamente pela aplicação brechtiana do dispositivo de cortar nossa identificação. E usar Auschwitz como metáfora para qualquer outra situação humana degradante é, no mínimo, um desrespeito com os que foram submetidos àquele inferno – assim como também é ofensivo a todos nós que, apesar de não sermos anjos, tampouco somos monstros como Höss.   

Glazer estetiza seu “não mostrar” Auschwitz de modo propositalmente incômodo, mas essa opção se revela sobretudo infame. Mostra o que não é Auschwitz com tamanha veemência estética que chama a atenção para o seu gesto artístico em si – ainda que tente reiterar o tempo todo sua “benevolência” com o espectador, como se o longa nos gritasse sem pausa: “agradeça-me por não mostrar Auschwitz!”. E, nessa postura estética, o filme se revela tanto autocongratulatório quanto chocantemente exibicionista (Glazer parece estar tão consciente da própria grandeza moral que dá para imaginar ele próprio na saída do cinema, esperando ser parabenizado por cada espectador pela sua grande contribuição humanitária.) 

O Holocausto deixa de ser o verdadeiro tema do filme; em Glazer, sob a desculpa de uma pretensa irrepresentabilidade da shoah, o que passa a importar é a grandeza do próprio artista. Auschwitz some atrás do muro, e o cineasta é quem surge como o que de fato tem relevância.  

A questão continua a mesma: como falar sobre o indizível, de que modo abordar o inabordável? O cinema da autoglorificação praticado por Glazer é bastante vistoso, mas traz nas entranhas algo de fundamentalmente abjeto, como diria Rivette. No fim das contas, o “travelling de ‘Kapò’” é de uma pureza e inocência comoventes diante do enfático não mostrar Auschwitz de Glazer. 

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sábado, 27 de maio de 2023

Cannes 2023: La Passion de Dodin Bouffant / Il Sole dell'Avenire / L'Été Dernier / Perfect Days

 LA PASSION DE DODIN BOUFFANT (dir. Tran Anh Hung)

Benoît Magimel parece ter se tornado a Fênix do cinema francês atual. Após um invejável início de carreira, em que ganhou o prêmio de melhor ator em Cannes por “A Professora de Piano”, em 2001, deu uma escorregada e passou um bom tempo sem papeis à altura de seu talento. Na vida pessoal, se envolveu com drogas, ganhou muito peso e rapidamente perdeu o porte de jovem galã que tinha lá no começo.

Mas nos últimos anos, deu a volta por cima. Ganhou dois prêmios César consecutivos e está em três filmes em Cannes. Um deles, aliás, pode lhe render um segundo prêmio de interpretação masculina.

Trata-se de “La Passion de Dodin Bouffant”, filme do vietnamita Tran Anh Hung rodado na França. É a história de um mestre da gastronomia francês do século 19 (vivido por Magimel), que levava a vida a preparar delícias ao lado de sua cozinheira e companheira Eugenie (Juliette Binoche). Para ambos, a culinária não era apenas um mero preparar de alimentos: era uma maneira de se comunicar – e de declarar amor e afeto um para o outro.

O longa é um “food film” que leva ao extremo a atenção com o filmar o preparo de iguarias. Porque, no filme, isso é a maneira como os personagens de Magimel e de Binoche entram em contato com o mundo – não são tão bons com a palavra como são com o cozinhar de refeições.

Hung também não parece muito hábil com as palavras desta vez; o filme é sempre mais agradável e fluente nas cenas em que os personagens estão cozinhando alguma coisa. Nas cenas em que conversam, porém, parece faltar alguma coisa.

É um filme tanto estranho quanto fascinante – há algo de canhestramente antiquado e deslocado da realidade ali, mas essa desconexão tem lá seu apelo. Os preparos gastronômicos roubam mais da metade do longa, então muita gente há de se irritar um bocado. Mas é uma obra de corajosa originalidade – e, com o perdão do trocadilho, uma iguaria fina e a ser degustada com atenção especial.

 

IL SOLE DELL’AVENIRE (dir. Nanni Moretti)

A pior coisa para um cineasta italiano é tentar ser Federico Fellini (embora Paolo Sorrentino, nas suas investidas fellinianas, tenha em geral tido algum êxito). Nanni Moretti tenta fazer em “Il Sole dell’Avenire” uma espécie de “Oito e Meio” à sua própria moda – ou, se não chega ao mesmo nível de complexidade do longa de Fellini, ao menos a um “A Noite Americana”, de Truffaut, seu filme parece pretender chegar. Conta a história de um cineasta (vivido pelo próprio Moretti) em pleno processo de criação fílmica – passando por problemas de inspiração, crises pessoais, dramas existenciais.

Moretti aposta em um audacioso tudo ou nada: faz um filme um bocado relapso em sua construção – talvez por autoconfiança excessiva, ou por simplesmente não se interessar por como o espectador há de recebe-lo. Quem quiser que aceite – ou deteste o filme e o deixe em paz em sua (enorme) imperfeição.

Como resultado, o longa é absurdamente desigual, com alguns momentos constrangedores, mas aqui e ali o cineasta acaba ganhando a aposta: realiza de fato algumas cenas comoventea.

O filme dentro do filme mostra membros do Partido Comunista Italiano em crise, depois das rebeliões na Hungria, em 1956; a resposta soviética, de truculência extrema, mostra que Stális não era nem de longe a figura a ser seguida como grande parte da intelectualidade de esquerda mundial acreditava que fosse.

Não há muita explicação para que a trama dentro da trama se dê com esse contexto – talvez essa opção seja uma maneira de Moretti falar de si e da sua própria inadequação ao mundo moderno, da mesma forma que grande parte dos membros dos “partidões” comunistas mundo afora se perderam após descobrirem as atrocidades stalinistas.

No caso do Moretti do filme, o cerne é a desilusão com os caminhos em que o cinema seguiu – em uma das melhores cenas, ele se reúne com produtores da Netflix, que mostram a sua real filosofia sobre o cinema, para desespero do diretor.

Não é um filme à altura de obras muito mais buriladas e efetivas do diretor, mas tem um sentimento genuíno de crença no poder do cinema e do sonho de um mundo melhor tão fortes que, apesar das inúmeras fraquezas, o filme consegue impor alguma simpatia a quem se abrir à proposta do diretor. Quem se mantiver avesso ao que ele atabalhoadamente apresenta, certamente há de odiar o que vê na tela.

 

L’ÉTÉ DERNIER (dir. Catherine Breillat)

É bem provável que Catherine Breillat tivesse um interesse especial em adaptar o longa “Rainha de Copas” (2019), da dinamarquesa May el-Thouky, para uma nova versão, desta vez passada na França. Após ver seu filme, no entanto, é difícil concluir que interesse ela tinha. Porque a versão francesa não traz praticamente nada de diferente em relação ao filme que lhe serviu de inspiração – há, sim, um pouco mais de calor nas cenas e na protagonista, mas o longa de Breillat tem exatamente a mesma mensagem e incorre nos mesmos erros narrativos da obra el-Thouky. É um remake até mais problemático, aliás.

Mostra a história de uma advogada cinquentona que se envolve com o filho adolescente que seu marido teve no primeiro casamento. Fundamentalmente, é um filme sobre uma mulher se entregar aos desejos corpóreos, mas é acima de tudo uma obra que mostra as instituições burguesas da família e do casamento como algo que se sobrepõe a qualquer tipo de subversão.

A questão que fica, tanto no filme dinamarquês como no francês, é: trata-se de uma crítica ou de uma defesa dessas instituições? Os dois filmes são decepcionantemente evasivos em relação a isso; optam pelo caminho mais fácil, deixando ao espectador o trabalho sujo que as cineastas optaram por não fazer. Não há a menor justificativa para a existência da versão de Breillat – a não ser facilitar a vida do público francês que tem preguiça de ler as legendas da versão nórdica.  

 

PERFECT DAYS (dir. Wim Wenders)

O cineasta alemão Wim Wenders é o tipo de cineasta que desperta na crítica uma paciência com seus filmes que talvez ele não merecesse. Há anos – décadas – que ele não dirige um longa verdadeiramente efetivo (“Pina” talvez seja a exceção), e ainda assim continua sendo elogiado por filmes bastante frágeis e convidado para grandes festivais.

“Perfect Days”, por um momento, parece ser o grande filme que ele anda devendo. Mostra um limpador de banheiros públicos japonês em sua rotina sem graça, de poucos momentos interessantes, mas cuja inusitada poesia ele próprio consegue enxergar. É um sujeito que quase não fala – e que quase não reage ao mundo que o cerca. É passivo e acomodado – e talvez seja melhor assim, já que não teria condições de ser feliz caso tivesse uma alma um pouco mais rebelde.

O longa consegue nos mostrar esse personagem com alguma habilidade por mais ou menos uma hora, mas chega um ponto em que o filme (e o personagem) se tornam sum bocado irritantes em sua domesticação. Mais do que um gesto de afeto diante de pessoas em situações sociais difíceis, mas que conseguem ser felizes ainda assim, o filme parece fazer uma ode à docilidade.

 

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Cannes 2023: Asteroid City / Club Zero / Il Rapito

ASTEROID CITY (dir. Wes Anderson)

Muita gente gosta de chamar de “autor” aquele cineasta que se repete invariavelmente, sendo incapaz de sair da roda viva de padrões estéticos e temáticos que ele próprio criou para si – e da qual se tornou refém. Há quem prefira, no entanto, chamar isso de incapacidade de renovação (ou preguiça de sair da zona de conforto).

“Asteroid City” é Wes Anderson no mais puro estado de indolência. A não ser pelos aspectos relativos ao desenho de produção, que apesar de repetir o universo de casa de bonecas habitual do cineasta, desta vez é de fato mais impressionante, mesclando maquetes a cenários de verdade. De resto, é a mesma tolice habitual – com o agravante de ser menos engraçado que o diretor provavelmente pensa. E de ter uma narrativa que apenas comprova a perda de fluência de Anderson com o passar dos anos. O filme é uma chatice colossal.

 

CLUB ZERO (dir. Jessica Hausner)

A austríaca Jessica Hausner apresentou na Croisette aquele que talvez seja o filme mais destoante do que em geral tem sido apresentado na competição – muito embora, é preciso dizer, o programa deste ano tenha contado com obras extremamente distintas entre si.

É a história de um grupo de adolescentes que se inscrevem em um curso de “Alimentação Consciente”, ministrado por uma professora metida a guru nutricional. Cada um tem uma motivação para cursar aquela disciplina: um dos estudantes o faz por achar que a produção de alimentos feita hoje em dia é antiecológica; outro diz que deseja reduzir sua alimentação para ter mais autocontrole; um colega diz que quer mesmo é ter uma silhueta mais esbelta, e por aí vai.

Vivida por Mia Wasikowska, a professora diz aos seus alunos que o ser humano come muito mais do que deveria, por pressões sociais e capitalistas, e explica que o nosso corpo precisa se desintoxicar de alimentos por meio de dietas rigorosas. No começo, parte de suas falas até faz sentido, e os estudantes começam a vê-la como um ídolo a ser seguido. Mas, com o tempo, ela começa a pregar dietas bastante extremas, e os alunos a acompanham nessa progressão rumo ao radicalismo. Chegam a um ponto em que aceitam fazer parte do Clube Zero – seletíssimo agrupamento de pessoas que simplesmente não comem nada e, segundo os próprios membros dizem, são mais saudáveis e fortes assim.

O filme se pretende uma comédia de humor sombrio, cuja intenção parece ser uma crítica ao messianismo de alguns líderes que acham que têm a resposta milagrosa para superar de uma hora para a outra problemas humanos que, há milênios, seguem nos atormentando. Mas Hausner constrói essa sua metáfora em cima de um tema sério: algumas pessoas de fato têm transtornos alimentares, e o fato de ela apresentar logo no início do filme uma cartela alertando que seu filme pode ser um bocado pesado para quem tem esse tipo de problema não reduz em nada o tom desrespeitoso do filme. “Club Zero” é, além de desmedido em sua acidez, um filme bastante frágil em sua pretensão alegórica.


RAPITO (dir. Marco Bellocchio)

O octogenário Marco Bellocchio continua a fazer filmes com praticamente a mesma energia e a mesma paixão por narrar uma história que tinha no início de sua majestosa carreira. Desta vez ele se volta para a Itália pré-unificação, quando a Igreja Católica era inacreditavelmente poderosa em toda a península itálica, capaz de interferir na vida familiar de qualquer cidadão, sem que se pudesse oferecer resistência.

O foco é na história da família judia Mortara, de Bolonha, que teve um de seus filhos simplesmente tomado pela Igreja depois que uma serviçal, por conta própria, decidiu batizar o garoto (ela achava que o menino, que estava doente, poderia ir parar no “limbo” caso não passasse pelo ritual do batismo antes de morrer). A cúpula católica da região ficou sabendo e alertou o Papa Pio 9, que exigiu que o garoto fosse "confiscado" de sua família e levado a força a Roma, para receber uma educação religiosa cristã.

Apesar de a história ter se tornado um escândalo midiático, a imprensa da época ainda não tinha tanto poder, então os Mortara nada puderam fazer para impedir que o rapaz fosse levado a Roma.

Bellocchio revisita essa história com intenções de criticar a Igreja Católica, sim, mas existe ali uma observação sobre qualquer tipo de religião que promove lavagem cerebral em seus fieis. Estilisticamente, ainda existe aquela admirável grandiloquência no cinema do diretor: o encontro final do garoto raptado com a sua mãe é um dos momentos mais marcantes de todo o festival. “Rapito” mostra o quanto Bellocchio continua um mestre, e em plena capacidade artística.


segunda-feira, 22 de maio de 2023

Cannes 2023: Firebrand / Anatomie d'Une Chute / Les Feuilles Mortes

FIREBRAND (dir. Karim Aïnouz)

O cearense Karim Aïnouz estreou sua primeira produção internacional de alto orçamento na disputa pela Palma de Ouro em Cannes. “Firebrand” se passa na Inglaterra do século 16, durante os últimos instantes do reinado de Henrique 8º. O foco, porém, é em sua última esposa, Catarina Parr, mulher de extrema inteligência e esperteza, que tenta burlar o conservadorismo do marido às escondidas, financiando vozes religiosas alinhadas ao seu pensamento – ela era protestante fervorosa.

Parr escreveu livros e lutou para que a Bíblia fosse disseminada pela Inglaterra em língua inglesa, e não mais em latim – ela acreditava que isso tornaria o povo mais próximo aos ensinamentos religiosos. Mas Henrique não tinha a mesma visão e, traumatizado pelo que chamava de “traições” de suas sete esposas anteriores, suspeitava de que Catarina também estivesse lhe passando a perna, tanto em termos de ideias quanto em termos sexuais.

O filme mostra Catarina como uma feminista avant la lettre; ela, inclusive, é auxiliada pelo que hoje chamaríamos de sororidade de várias de suas aias e mesmo de uma filha de Henrique com outra de suas esposas, a jovem Elizabeth (a futura “Rainha Virgem”, que, na vida real, era rival de Catarina no campo afetivo: disputavam a preferência do mesmo nobre, Thomas Seymour). A união feminina, em “Firebrand”, faz a força, ainda que na Inglaterra daquela época as mulheres tivessem um papel social reduzidíssimo, servindo basicamente como procriadoras e objetos sexuais e afetivos de seus maridos.

Alicia Vikander tem uma atuação extremamente controlada e quase irretocável no papel de Catarina. Aïnouz conseguiu transformá-la fisicamente em uma figura que faz lembrar os retratos renascentistas de figuras reais inglesas; o trabalho de desenho de produção e de maquiagem, aliás, é bastante bem-sucedido. Jude Law surge irreconhecível como um Henrique 8º roliço e manco, de índole irritadiça – está muito bem no papel de uma criatura abominável, cheia de caprichos e ciúmes.

No longa, Henrique personifica o homem branco poderoso enquanto monstro, e Catarina é a mulher libertária das fantasias feministas dos anos 2020 (faltou apenas pertencer a alguma “minoria” étnica e sexual). O filme é quase que um monumento a Catarina Parr – ou, ao menos, um culto a sua personalidade; o roteiro trabalha abertamente com maniqueísmos.

A direção de Aïnouz, no entanto, consegue tornar o filme um produto com alguma distinção. No longa, ele obviamente não tem margem para injetar uma marca mais autoral como pode fazer em seus projetos brasileiros, mas ele consegue imprimir certa personalidade ao material, principalmente no uso que faz de alguns detalhes meio barrocos: as aves coloridas no castelo; a montagem que, de repente, se vale de jump cuts para causar uma pequena desestabilização do espectador. Apesar das limitações do roteiro, é um filme de fôlego, que marca uma boa estreia de Aïnouz em uma produção internacional, que se mostra muito menos diluída que os filmes de maior orçamento costumam ser para cineastas de língua não inglesa.


ANATOMIE D’UNE CHUTE (dir. Justine Trier)

Os filmes de tribunal parecem estar vivendo um momento especial na França. Além de “Saint Omer”, de Alice Diop, destaque no último Festival de Veneza, e “Le Procès Goldman”, de Cédric Kahn, que abriu a atual Quinzena dos Cineastas, “Anatomie d’une Chute” também tem em um julgamento o seu cerne. E é, igualmente, um filme de excepcional qualidade.

Mostra a história de uma escritora que vive com o marido e o filho pequeno em uma casa isolada, na neve. Um dia, o esposo é encontrado morto, após cair da janela do andar mais alto. A falta de clareza de como se deu essa morte acaba fazendo com que a própria romancista se torne uma das principais suspeitas, e o filme é uma investigação sobre aquela mulher – suas mentiras, seus temores, o que a fazem correr o risco de ir presa a partir de seu discurso diante do júri, tudo isso em uma narrativa extremamente bem conduzida, de um dos filmes de realização mais competentes deste festival.

Triet mereceria ao menos o prêmio de melhor direção, mas o mais provável é que o longa conquiste o troféu de melhor atuação feminina, pela formidável performance da alemã Sandra Hüller no papel da escritora – ela, aliás, também é a protagonista de “The Zone of Interest”, de Jonathan Glazer. Se o júri de Cannes optar por premiar Triet em vez de Hüller, Alicia Vikander tem grandes chances de ficar com o prêmio de atuação. Vai ser difícil, no entanto, que os jurados deixem passar essa oportunidade de laurear uma atriz de talento descomunal como a alemã, verdadeiramente em estado de graça nesse especialíssimo longa francês.


LES FEUILLES MORTES (dir. Aki Kaurismäki)

Ainda há espaço para a simplicidade no cinema, e o finlandês Aki Kaurismäki é a prova viva disso. Seu novo filme, “Les Feuilles Mortes”, tem um fiapo de dramaturgia: nada mais é do que a história de dois solitários que se encontram, se desencontram e, por fim, se arranjam (aliás, mencionar isso não configura spoiler: trata-se de um tipo de cinema que não trabalha com esse tipo de preocupação).

Não é que a filmografia de Kaurismäki, em si, não tenha sofisticação ou complexidade – estilisticamente, aliás, ocorre o contrário. O cineasta trabalha em uma chave estética que é muito mais complicada de tornar efetiva do que as dos filmes de natureza mais abertamente naturalista. Existe uma construção minuciosa por trás da aparente banalidade de seus filmes.

Desta vez, no entanto, Kaurismäki parece ter levado a estilização ao paroxismo: as atuações, os cenários, a cadência como as falas são dispostas pelo filme fazem de “Les Feuilles Mortes” algo próximo do cinema do sueco Roy Andersson. É quase um filme que permanece em um plano imaginado, e não materialmente construído.

Mas ele existe, sim, e está na tela, trazendo as preocupações kaurismakianas de hábito: o desemprego, o alcoolismo, as desavenças geopolíticas que levam à guerra. Mas existe desta vez uma paixão pelo cinema e pelas suas possibilidades que se sobressaem diante dos temas políticos – há pôsteres de filmes espalhados por todo o longa, que nos entregam algumas das influências sobre a obra do diretor, que vão de Godard a Bresson, passando por Visconti e David Lean. Aliás, de certa forma, seu novo filme é um “Desencontro” à moda finlandesa. E, assim como aquela pequena obra-prima leaniana, é um filme adorável -- e enorme em sua aparente “pequenez”.


Cannes 2023: May December / Les Herbes Sèches / Banel & Adama / Four Daughters

MAY DECEMBER (dir. Todd Haynes)

Todd Haynes deve ter se inspirado em “Persona”, de Ingmar Bergman, para o ponto de partida de “May December”, que apresentou em Cannes. No filme sueco, uma atriz observa sua enfermeira e tenta se apropriar da história e da personalidade dela, de modo a compor sua próxima personagem. Estrelado pelas excelentes Julianne Moore e Natalie Portman, o filme de Haynes é um pouco diferente, mas traz citações inclusive visuais ao longa bergmaniano.

Mostra uma ex-atriz que se envolveu em um escândalo sexual no começo dos anos 1990, tendo sua carreira abreviada. Muitos anos depois, a história dela está prestes a virar filme, então a atriz que vai interpretá-la na tela buscar conviver com ex-estrela para se inspirar na composição da personagem.

Esteticamente, o filme é Haynes em estado puro – o gosto pelo camp se faz notar por todo o longa, sobretudo no uso da trilha sonora. A relação ambígua entre a jovem atriz que tenta ruminar e pegar para si parte da vida da atriz mais velha parece o material perfeito para as ambições estilísticas do cineasta, que de fato faz um filme que deve agradar bastante quem aprecia sua obra. Mas a verdade é que o filme é um bocado oco, e afora o prazer deliciosamente fútil de vermos Portman achar que está sugando a aura de Moore – quando, talvez, seja justamente o oposto que esteja acontecendo –, o filme não oferece lá muita coisa ao espectador. É um deleite momentâneo, mas um filme facilmente esquecível.

LES HERBES SÈCHES (dir. Nuri Bilge Ceylan)

O turco Nuri Bilge Ceylan voltou a trazer a Cannes um filme longo e contemplativo – seu “Winter Sleep”, laureado com a Palma de Ouro em 2014, é ainda hoje a produção de maior minutagem a levar o prêmio máximo na história do festival.

Seu novo filme, “Les Herbes Sèches”, se passa em uma cidade muito pequena no interior da Turquia, tendo como foco um colégio de pré-adolescentes. Samet trabalha ali como professor, mas sonha com o dia em que poderá ser transferido de cidade; acha que a província é bastante limitadora. No entanto, é um homem amargo e sem maiores expectativas diante de seu futuro; o mundo, em sua configuração moderna, o deixou assim.

Essa sensação apenas piora devido a sua rotina, já que ele dá aulas para uma turma de estudantes medíocres, com exceção de uma aluna, que além de brilhante é muito simpática. Um dia, no entanto, o professor recebe uma reclamação formal na diretoria e fica sabendo que foi sua melhor aluna quem o denunciou, dizendo que se sente desconfortável com tanta proximidade de seu tutor. Samet se irrita e não consegue entender a razão de ela ter tomado tal atitude, tornando-se cada vez mais agressivo e até violento.

O longa não trabalha com certezas ou verdades universais. É uma obra sobre as diferentes percepções das pessoas diante de certas situações, em que nada é “preto no branco”; a vida é uma profusão de tons de cinza, Ceylan nos diz.

E o filme em si é meio cinzento – a paisagem gelada da Turquia o torna áspero, como o cotidiano naquele vilarejo. Como a alma em desalento de Samet, que se tornou um homem rude e em estado de anomia. É um dos filmes mais duros do festival até o momento e, igualmente, um dos melhores a passarem pela Croisette nesta edição.    


BANEL & ADAMA (dir. Ramara-Toulaye Sy)

Uma das melhores surpresas desta edição de Cannes foi o longa “Banel & Adama”, estreia em longas-metragens da franco-senegalesa Ramata-Toulaye Sy. O filme talvez seja o que apresenta as imagens mais belas de todo o festival até o momento – a câmera de Sy registra não apenas paisagens naturais de inacreditável fotogenia do continente africano, mas sobretudo consegue rechear o seu longa de grande força mística.

A história se concentra em um casal apaixonado, a jovem Banel e seu namorado Adama, que vivem em um povoado no interior do Senegal. As leis locais são rígidas, mas os dois enamorados pertencem a uma outra geração, com uma cabeça mais arejada e disposta a romper com certas tradições de seu povo. Adama, por exemplo, deveria se tornar o líder da aldeia, mas ele recusa a honraria e prefere seguir uma vida simples, ao lado de Banel em uma casa afastada. Mas os anciãos não gostam da ideia e farão pressões sobre o casal para que ele se separe e que Adama siga o caminho que, segundo eles, o destino lhe reservou.

O longa tem uma energia ao mesmo tempo terrena e mágica, que vem das imagens registradas por Sy mas também por muitas das falas e histórias narradas pelos aldeões. Apesar de pressionada pelos mais velhos e mesmo por demonstrações da natureza de que Banel deve se separar de Adama, a jovem não se dá por satisfeita e rejeita a predestinação que lhe foi reservada, de mera procriadora; ela tem desejos e aspirações próprias. É uma guerreira incansável, cuja certeza de que sua sina é viver livre é mais intensa do que a força de qualquer tradição. “Banel & Adama” é um dos favoritos a receber o Caméra d’Or, prêmio de Cannes ao melhor filme de estreia a ser exibido no festival. 


FOUR DAUGHTERS (dir. Kaouther Ben Hania)

Outra africana, a tunisiana Kaouther Ben Hania, também apresentou um filme de premissa bastante promissora. “Four Daughters” mostra a própria diretora filmando a história de Olfa, uma mulher muçulmana mãe de quatro filhas, sendo que duas delas se meteram com grupos terroristas e, após deixarem a Tunísia, hoje se encontram presas na Líbia. Apesar de terem sido crianças liberadas, com os anos foram se tornando cada vez mais radicais dentro da cultura islâmica. Não usavam sequer o véu quando mais jovens, mas por fim não tiravam a burca por nada e acabaram se alistando para defender grupos extremistas no país vizinho.

O princípio da mescla entre documentário e ficção dá a impressão de que o filme alçará um belo vôo ao longo da narrativa. Olfa e suas duas filhas mais novas, que representam a si mesmas em grande parte das cenas, são expressivas e carismáticas. Mas a cineasta não consegue sustentar sua premissa, e o longa acaba se convertendo em uma semificção chorosa, cansativa, sobre uma mãe que perde as filhas para o radicalismo. Há algumas reflexões importantes ali, mas a sensação que fica é a de que a ideia certa foi parar nas mãos da cineasta errada. Não há, no fim das contas, nenhuma razão que justifique o procedimento de misturar os trechos documentais com os encenados.

sábado, 20 de maio de 2023

Cannes 2023: The Killers of the Flower Moon / Retratos Fantasmas / The Zone of Interest

THE KILLERS OF THE FLOWER MOON (dir. Martin Scorsese)

Na sessão mais disputada até o momento de Cannes 2023 (provavelmente rivalizando apenas com a de “Indiana Jones”), “The Killers of the Flower Moon”, o novo longa de Martin Scorsese, foi exibido fora de competição na Croisette.

É a história de um vilarejo no Oeste americano, em que indígenas descobriram petróleo na década de 1920 – e ficaram milionários de uma hora para a outra. Mas os homens brancos, obviamente, não aceitaram com boa vontade ficar de fora dessa barbada, e logo trataram de se apropriar daquela fortuna, por meio de trapaças, toda sorte de abuso de poder e até de assassinatos.

Muita gente tem chamado o filme de “western”, mas conferir tal qualificação ao longa é desconhecer por completo as convenções do gênero. Tem muito mais parentesco com os filmes de gângster, e é nas cenas típicas desse cinema em que o diretor mais demonstra se sentir em casa, em sua zona de conforto.

Robert De Niro interpreta uma espécie de “padrinho” dos indígenas da região, um sujeito de enorme poder econômico e político, que se passa por protetor, mas que no fundo quer apenas se apropriar do dinheiro dos nativos. Quando seu sobrinho Ernest (Leonardo DiCaprio) aparece ali para tentar ganhar alguns trocados, o tio sugere que o rapaz se case com uma das indígenas para se tornar seu herdeiro e canalizar para sua família (e para ele próprio) aquela riqueza toda. Para isso, no entanto, vários outros familiares dela terão que ser eliminados no meio do caminho, e é sobre isso que o filme se constrói.

O longa tem inegavelmente qualidades – a começar pelo enorme elenco de atores de etnia nativa norte-americana, o que é uma raridade. E, em muitas cenas, de fato podemos sentir o pulso daquele Scorsese do auge, com a fluidez das movimentações de câmera que fizeram sua reputação e aquele gosto por narrar uma história tão característico do diretor. Mas é um filme interminável (tem 3 horas e meia de duração), e o cineasta dá claras evidências de que não tinha a menor ideia de como filmar grande parte das sequências, que em geral resultam mornas, por vezes até desformatadas. Mas se não fazem jus às gigantescas expectativas da cinefilia presente em Cannes, também estão longe de configurar um fracasso. É apenas um Scorsese em meio tom.

 

RETRATOS FANTASMAS (dir. Kleber Mendonça Filho)

“Retratos Fantasmas” é um documentário que transborda amor: pelo cinema, pela arte, pelo Recife – e, em uma esfera mais ampla, pelo Brasil. Kleber Mendonça Filho utiliza suas memórias e seu vasto material de arquivo fílmico e fotográfico pessoal para discorrer sobre sua cidade e os lugares da capital pernambucana que mais lhe falam ao coração.

No primeiro trecho, destaca o apartamento de sua mãe – que o cineasta, por décadas, utilizou como cenário para diversos de seus filmes, entre curtas e longas. Na segundo, os cinemas de rua do Recife – grande parte deles hoje inexistentes, tendo cedido espaço a lanchonetes, lojas ou igrejas neopentecostais. Mas que marcaram e até definiram a existência de milhares de pessoas que passaram por ali.

É um projeto notadamente pessoal do cineasta – um filme “pequeno”. Mas que, em alguns instantes, tem uma amplitude inesperadamente maior que talvez as ambições do longa imaginassem. Porque quando o cineasta mostra o apartamento de sua mãe e toda a mudança pela qual seu entorno passou com o avançar dos anos, ele fala bem mais do que de suas memórias ou da história de sua cidade; fala também do Brasil como um todo, de tensões sociais, de expectativas da classe média, da ganância imobiliária das elites. Esse primeiro pedaço do longa é um recorte da história recente de um país, narrada de maneira fluida, com uma montagem especialmente inspirada, inteligente. É o melhor trecho do filme.

A segunda parte, que tem por foco os antigos cinemas recifenses, não chega a ser tão efetiva, mas traz também alguns momentos bastante ricos, com especial destaque para a observação sobre o que seria a linguagem secreta dos letreiros de cinema – uma visão algo lúdica sobre a maneira estranha e meio cômica de uma pretensa maneira meio cifrada de as salas de cinema se comunicarem com os passantes da rua. Ali, o filme tem seu auge em termos de inventividade.

A terceira parte é a menos feliz, com uma discussão sem fôlego sobre os cinemas terem se tornado templos religiosos, e uma alegoria não muito bem alinhavada de um motorista de táxi que consegue se tornar invisível. Mas nada que comprometa esse belo filme de Mendonça Filho, uma obra leve e lírica, mas também ao seu modo combativa, com o frescor e criatividade que fazem lembrar os curtas-metragens que fizeram do cineasta um dos grandes nomes do nosso cinema atual.

 

THE ZONE OF INTEREST (dir. Jonathan Glazer)

O novo filme de Jonathan Glazer, “The Zone of Interest”, se passa em Auschwitz nos anos 1940 – e apenas saber essa informação pode fazer um espectador desistir de ver o longa. Afinal, quantas vezes a questão do Holocausto já foi explorada (e de maneiras bem sensacionalistas) pelo cinema desde que o mundo ficou sabendo das atrocidades nazistas durante a Segunda Guerra?

Mas Glazer opta pelo que seria uma maneira “nova” de abordar o tema: falar sobre campos de concentração sem mostrar diretamente um. A trama acompanha a família de um oficial alemão que mora ao lado do campo de Auschwitz. Suas inquietações são triviais: a esposa do militar se preocupa com as flores, a limpeza da casa e o estilo de vida confortável que ela acaba de conquistar, com a ascensão profissional do marido na guerra. Ela em nada se importa com a tragédia humana que ocorre literalmente ali ao lado: o que a perturba são questões fundamentalmente domésticas e que ameaçam os privilégios burgueses recém-conquistados.

O “não mostrar” visualmente em um filme a violência e a desgraça humana é uma escolha tanto estética quanto ética. Mas há uma armadilha nessa atitude que é muitas vezes difícil de evitar: a propensão à autocongratulação (o húngaro “O Filho de Saul”, de Laszlo Nemes, por exemplo, tinha nisso seu maior problema). Como se o cineasta, por esse gesto artístico grandioso, esperasse não só total adesão como sobretudo a reverência do espectador, e “The Zone of Interest” parece criado sob essa égide.

O filme parte do pressuposto de que tem um conceito “inovador” (embora ainda nos anos 1950 Resnais já tenha abordado o Holocausto sem enfatizar a tragédia humana de modo sensacionalista, em “Noite e Neblina”), mas a passagem da ideia para a representação se mostra frustrantemente pouco imaginativa. Sim, vemos a família nazista em sua indiferença e frieza com a dor alheia, mas... até ai, já não era exatamente isso que imaginávamos sobre essas pessoas? Apesar de ser um filme que se propõe a mostrar Auschwitz a partir da (falta de) visão de um clã aliado a Hitler, em essência o filme não traz novidade alguma ao que já se imaginava. E é bastante impreciso a respeito da questão da noção de "banalidade do mal", a que ele certamente quer aludir.

Poderia dar algum indício sobre como o ser humano pode chegar ao ponto de se tornar insensível a uma catástrofe como a que acontecia logo ao lado da tal família do filme – seria, aliás, um filme de gigantesca atualidade se seguisse por esse caminho. Mas, como a família aparece no longa, apenas reforça o estereótipo que já tínhamos na mente bem antes de a sessão do filme começar.

 “The Zone of Interest” está longe de ser um filme gratuito ou mal-intencionado, mas tampouco é revolucionário como se julga.

 

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Cannes 2023: Indiana Jones / Le Retour / Jeunesse

INDIANA JONES E O CHAMADO DO DESTINO (dir. James Mangold)



Como em vários anos anteriores, o filme mais aguardado (e de bilhetes mais disputados) no Festival de Cannes foi um blockbuster exibido fora de competição. “Indiana Jones e o Chamado do Destino”, dirigido por James Mangold, traz de volta o enérgico arqueólogo que se tornou um dos ícones do cinema de aventura da década de 1980 e um dos personagens mais queridos de Hollywood.

E o filme existe basicamente para matar a saudade dos fãs de Indy: a trama é estúpida e foi escrita com uma farta dose de indolência – Indiana, prestes a se aposentar como professor, se mete em uma nova aventura quando a filha de um arqueólogo amigo lhe diz que está atrás de uma relíquia criada por Arquimedes, capaz de detectar falhas no tempo e permitir viagens temporais.

E tudo o mais que o filme apresenta está nesse mesmo nível de falta de criatividade. É tudo mera desculpa para trazer Harrison Ford de volta ao papel e para utilizar, na primeira parte do longa, a assustadoramente bem desenvolvida tecnologia de remoçamento do rosto do ator, que apesar de oitentão na vida real, surge com aspecto de ao menos 4 décadas mais jovem em cenas que se passam nos anos 1940.

É emocionante, mas sobretudo muito estranho ver o “jovem” Ford em ação viabilizado pelos efeitos especiais. Mas acima do deleite de acompanhar Indiana do ápice da boa forma, o que nos intriga nessas cenas é imaginar os enormes problemas que poderemos ter, no mundo real, se essa tecnologia cair em mãos mal-intencionadas; ao que parece, já é possível reescrever a história, inventar passados e presentes com imagens forjadas e deturpadoras. Filmes como este “Indiana Jones” deveriam servir como evidência do quão perigoso é continuar aperfeiçoando esse tipo de inteligência artificial.

Na trama em si, Jones, fora dos flash-backs, desta vez aparece deprimido – ele ainda tem energia para enfrentar os obstáculos, mas não tem em seu olhar aquela luz, o brilho dos tempos de juventude. No filme, o tempo presente é a virada das décadas de 1960 para a de 1970; Jones, ali, perdeu um filho e se divorciou da esposa, e não tem mais o prazer de lecionar. Mas sua depressão parece ter por causa primordial o mundo moderno pós-Beatles e revoluções comportamentais, ao qual o Indy dos velhos tempos parece não ter se adaptado bem. É um homem à moda antiga, embora o filme não se posicione sobre isso ser bom ou ruim.

As cenas de ação são razoavelmente vibrantes, mas não trazem quase nada de novo – é curioso que a tecnologia para rejuvenescimento tenha se desenvolvido com tanta velocidade, enquanto ainda hoje diversas cenas mais banais deixam evidente que os atores estão diante de um chroma key. No geral, o filme é um passatempo agradável, que existe apenas como exercício nostálgico e, obviamente, como uma mina de ouro para os produtores encherem os cofres. Fora isso, é uma obra completamente descartável.


LE RETOUR (dir. Catherine Corsini)

A francesa Catherine Corsini apresentou na competição “Le Retour”, um belo filme sobre relações sociais e familiares, com foco em três mulheres negras francesas, Khédidja e suas duas filhas. A protagonista decide ir embora da Córsega e ir morar em Paris junto de sua filha pequena (e com outra ainda em seu ventre). Seu marido tenta impedi-la, mas morre em um acidente de carro ao tentar ir atrás dela. Sentindo-se culpada, Khédidja passa os anos seguintes dizendo o mínimo possível às garotas sobre o pai delas – até que, 15 anos mais tarde, ela decide retornar à ilha francesa com as garotas já adolescentes.

O filme perpassa uma série de questões sociais envolvendo a presença de pessoas negras na França, que ainda sofrem muitos preconceitos mesmo sendo legítimas cidadãs francesas, por nascimento e por direito. Mas o foco é mesmo nos complicados elos familiares entre uma mãe e duas filhas. A mais velha, Jessica, é certinha e estudiosa, enquanto a mais nova, Farrah, pende mais para um comportamento rebelde e irreverente. Na Córsega, elas passam a conhecer um pouco mais sobre sua história familiar, mas também sobre elas mesmas.

É um filme solar, vistoso, com lindas paisagens corsas e ótimas performances, sobretudo de Esther Gohorou, uma presença cinematográfica muito marcante na pele da desbocada Farrah. O tema racial aparece com destaque, obviamente, mas há uma clara opção da parte de Corsini por mostrar essas mulheres negras diante de uma série de questões que não necessariamente dizem respeito a sua etnia; é antes de mais nada a história de três mulheres, realçando os desencontros afetivos entre elas – ainda que, por fim, o amor que sentem umas pelas outras seja o que de fato prevaleça.

O filme é bem realizado, mas a verdade é que não tem grande fôlego para além do que está evidente na tela; não incita nenhum tipo de reflexão posterior. As problematizações do longa desaparecem assim como o escuro, no exato instante em que as luzes da sala se acendem.


JEUNESSE (dir. Wang Bing)

O único documentário na competição, “Jeunesse”, do chinês Wang Bing, poderá se beneficiar de uma certa tendência nos grandes festivais de cinema de hoje em dia. Afinal, as últimas edições de Veneza e Berlim laurearam com seus prêmios máximos dois documentários: “All the Beauty and the Bloodshed”, de Laura Poitras, na festa italiana, e “Sur l’Adamant”, de Nicolas Philibert, no evento alemão.

Se o júri comandado por Ruben Östlund optar por uma premiação a um tema urgente e de conotação social não identitária, a saída pode ser por aí. O documentário mostra uma série de jovens chineses que trabalham na indústria têxtil da China – são as pessoas que se desdobram na confecção de 99% das roupas que eu, você e todo o mundo capitalista utiliza no dia a dia.

É um tema sem dúvida importante, e o filme é um registro essencial de uma realidade com qual temos pouco ou quase nenhum contato. É um bocado desolador ver aqueles jovens desperdiçando sua saúde diante de máquinas de costura fazendo movimentos repetitivos, trocando conversas uns com os outros que não levam a lugar nenhum, alimentando-se de macarrão instantâneo, vivendo em conjuntos habitacionais inóspitos, sujeitos a uma poluição visual e auditiva constante – quando poderiam estar gastando sua energia em atividades mais saudáveis, divertidas e mentalmente enriquecedoras.

O longa tem três horas e meia de duração, e Wang quer mostrar o aspecto rotineiro da realidade desses jovens de modo a transmitir ao espectador o quanto é maçante ter aquele tipo de existência. Quando não estão trabalhando, os jovens tentam negociar melhorias salariais com os chefes (em geral sem êxito), mas logo depois lá estão eles, novamente, debruçados em suas máquinas de costura, cuidando dos novos lotes de roupas.

Mas a verdade é que não é preciso que o espectador seja imerso naquele cotidiano cinzento para compreender o quanto a vida daquelas pessoas parece desperdiçada; essa noção já é transmitida em menos de uma hora de filme. De modo que, apesar da intenção estética nobre, o longa resulta excessivo e, para dizer a verdade, um bocado chato. 

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Cannes 2023: Monster / Le Procès Goldman

MONSTER (dir. Hirokazu Kore-eda) 

Os festivais de cinema raramente começam sua programação com filmes que conseguem se manter fortes na disputa até o final, a ponto de levar o prêmio mais importante da competição. Mas em Cannes 2023, ao que parece, as possibilidades de isso acontecer são grandes.

“Monster”, do japonês Hirokazu Kore-eda, abriu a briga pela Palma de Ouro já com um vigor surpreendente para um começo de maratona. O cineasta, que venceu o troféu principal em Cannes em 2018 por “Assunto de Família”, volta agora com um filme ainda melhor, bem mais desafiador em termos narrativos e com a mesma marca afetiva que caracteriza sua obra em geral.

É um filme de gramática estranha, com um estilo de montagem pontilhada que quase nunca se justifica em termos mais lógicos; existe um traço de aleatoriedade no modo em como grande parte das cenas é concatenada – ao menos na primeira parte do longa. São sequências em sobressaltos, como se o cineasta quisesse inserir ali um senso de mistério, ou de meramente dificultar a compreensão do espectador – o que Kore-eda de fato consegue com êxito por um bom tempo. O filme é, ao menos até o terço final, simplesmente impenetrável.

O longa abre com um prédio em chamas, visto da janela do apartamento de uma mulher que vive sozinha com seu filho adolescente. Logo veremos que algo não vai bem com o rapaz, que sente muito a falta do pai, que morreu há alguns anos – a mãe percebe que o problema tem raízes em sua rotina escolar e decide ir tomar satisfações com a diretora do colégio em que o filho estuda.

Na verdade, a trama está longe de se limitar a isso, mas “Monster” é o tipo de filme sobre o qual o quanto menos for revelado, mais intensa será a experiência de assisti-lo. Podemos dizer sem prejuízo ao espectador, no entanto, que a narrativa é fragmentada em três partes – cada uma a partir do ponto de vista de um personagem. Algo que inevitavelmente nos remete ao canônico “Rashomon”, de Akira Kurosawa, mas que ganha contornos muito específicos na intrincada trama desenvolvida por Kore-eda, que só com o passar do tempo vai se desvelando.

“Monster” é um filme sobre medo de pressões sociais, sobre a descoberta do amor, sobre se reconhecer enquanto agente causador de injustiças. E mesmo sobre o quanto o sofrimento pessoal pode ser combustível para a criação artística – há uma cena extraordinariamente lírica já quase no fim, em que uma idosa ensina a um jovem como canalizar suas frustrações para a criação musical. O filme é de uma beleza inacreditável, tanto em sua mensagem como em sua forma – Kore-eda tem o dom para um tipo de poesia visual sem afetação que reitera as intenções mais genuinamente humanistas do cineasta. Ainda que os fios deixados sem ponta nas primeiras partes nem sempre encontrem prolongamentos satisfatórias na parte final, a eletricidade do filme se faz notar, de uma maneira meio mágica, apesar de um roteiro meticulosamente arquitetado. É um filme extraordinário, de uma complexidade narrativa ainda a ser estudada – é desde já uma das grandes obras cinematográficas dos anos 2020.


LE PROCÈS GOLDMAN (dir. Cédric Kahn) 

O eficiente drama de tribunal “Le Procès Goldman”, do francês Cédric Kahn, abriu nesta quarta a Quinzena dos Cineastas, evento paralelo ao Festival de Cannes que antes se chamava Quinzena dos Realizadores – mas que cedeu ao marketing identitário e se autorrebatizou com um termo que pudesse servir para os mais diversos gêneros.

O filme parece um projeto pessoal de Kahn, que o dedica ao seu pai. Resgata o julgamento ocorrido nos anos 1970 de Pierre Goldman, um judeu franco-polonês condenado à prisão perpétua por uma série de assaltos e pela morte de duas mulheres durante um deles. Embora reconhecesse a autoria dos roubos a mão armada, negava com veemência a acusação de assassinato; alegando-se vítima de racismo, conseguiu revisão em seu processo e redução de sua pena.

Goldman não era lá um grande amigo da ordem nem da lei; militante de esquerda desde muito jovem, meteu-se com a luta armada em diversos países de regime ditatorial. Em Paris, no entanto, era uma espécie de bon vivant, cujo estilo de vida não custava barato; participou dos assaltos que o levaram à condenação antes para manter seus hábitos hedonistas do que para arrecadar dinheiro a alguma causa revolucionária.

Na vida real, ao que parece, Goldman era um sujeito desbocado e com um agudo senso de ironia. No tribunal, mesmo com a própria liberdade em sério risco, não conseguia evitar tiradas sarcásticas e mesmo afrontas diretas ao sistema judiciário francês e, sobretudo, à polícia (para desespero de seu advogado). Não tinha paciência para elaborar a própria defesa e insistia que ser inocente já deveria bastar para que não pagasse pelo crime de assassinato.

Mais do que um idealista, parecia um homem desejoso de fazer alguma coisa grandiosa na vida – se não fosse uma revolução social, ao menos entrar para a história como um homem de honestidade a toda prova, que denunciou com bravura o racismo das autoridades legais francesas.

A não ser por um prólogo que se passa na sala do advogado de Goldman, o longa todo ocorre na sala de julgamento. Seria certamente um filme de grande interesse caso acompanhasse Goldman fora do tribunal, mas Kahn consegue pincelar com bastante habilidade alguns traços de sua personalidade, ainda que apenas naquele ambiente fechado e sufocante.

Não é um filme fluido em sua totalidade, mas o trabalho de roteirização e de direção é admirável, sobretudo se levarmos em conta as quase duas horas de trama restritas a um único local. O problema é que o longa surge muito pouco tempo depois de outro que também se passa majoritariamente em um tribunal – “Saint Omer”, de Alice Diop, que apresenta um caso tão complexo e nuançado envolvendo outra criminosa confessa que praticamente redefiniu os filmes de julgamento de a partir de agora. O fato de Kahn optar por um registro mais cômico e literal o faz se tornar até fútil na comparação direta com o magnífico filme de Diop. Mas é apenas uma infelicidade de coincidência de calendário; o trabalho de Kahn é bastante venerável, também trazendo (ao seu modo) sua contribuição aos filmes do gênero, em sua opção pela denúncia de uma tema sério, mas tratado com instantes de humor, que se sobressaem apesar de ser um filme de feitura bastante austera.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Crítica: "Os Primeiros Soldados"

 O texto abaixo foi publicado na "Folha de S.Paulo". O link do original é este.

Johnny Massaro protagoniza o longa


Os mais jovens talvez não tenham muita noção do quão assustador foi o período em que a aids se espalhou pelo mundo, significando uma sentença de morte e sofrimento a quem tivesse a enfermidade.  Nesse sentido, “Os Primeiros Soldados”, de Rodrigo de Oliveira, é um filme de grande importância, já que preenche a lacuna que nosso cinema possuía sobre o tema.  

Os soldados do título são os primeiros homossexuais e trans do Brasil a desenvolver a doença e a enfrentar uma batalha em que a derrota era óbvia – e cujos efeitos negativos eram potencializados por preconceitos, uma mídia predatória e uma profunda ignorância da ciência sobre a síndrome, que só anos mais tarde ameaçaria a sociedade como um todo. O filme é um monumento póstumo a esses guerreiros tristemente vencidos.  

Sim, seriam derrotados, mas os personagens do longa não ficam esperando a morte passivamente. Ao contrário, unem forças para resistir a ela da maneira (improvisada) que podem. Mas há luta. 

A trama se passa em Vitória, sobretudo em 1983, com foco em três portadores do HIV. Suzano, vivido por Johnny Massaro, é um homossexual de origem burguesa que mora em Paris, mas que volta ao Brasil para visitar a irmã e o sobrinho. Rose, interpretada por Renata Carvalho, é uma travesti que faz shows em uma boate – mesmo lugar onde Humberto, vivido por Victor Camilo, rapaz gay, negro e interiorano, ganha a vida como cinegrafista.  

Os três se isolam em um sítio, onde tentam empiricamente fazer pesquisas e conter o avanço da doença, mas onde sobretudo se envolvem em uma rede afetiva de solidariedade e compreensão mútua. 

O filme começa meio esparramado, sem muita unidade, com personagens aparecendo e logo sumindo. Oliveira nem sempre controla as cenas – é especialmente inábil aquela em que Suzano ressurge, levando fotos do próprio corpo tomado por sarcomas de Kaposi para distribuir em uma festa (não sabemos se é um alerta aos demais sobre a doença, um gesto de autopiedade ou um delírio do personagem; de qualquer forma, é um ato sensacionalista demais para alguém que, até então, estava se tratando reclusamente).  

Mas a partir da segunda metade, o longa ganha uma extraordinária solidez. As cenas no sítio, em que os três protagonistas se filmam em VHS para ter sua história de certo modo imortalizada (ali, sim, os registros do próprio corpo fazem sentido), conseguem uma adesão do espectador que parecia inatingível na primeira parte. O filme se torna de fato comovente.   

Há, porém, um desnível entre os personagens. Humberto é de longe o menos elaborado, e sua timidez não o torna lá uma figura marcante, sobretudo diante dos espalhafatosos Suzano e Rose (e quando ele inicia um romance com um amigo de infância, o filme reserva ao casal as piores frases do roteiro). Victor Camilo o defende como pode.  

Já Massaro tem bem mais com o que trabalhar – é o real protagonista. Mas há algo de desacertado no modo como o ator compõe o personagem em suas primeiras cenas; parece calcular demais tanto maneirismos quanto sofrimento. Mas alguma coisa acontece depois que Suzano se isola com Rose e Humberto no sítio; é como se Massaro, ali, finalmente se encontrasse no papel. Talvez porque, naquele ponto, Suzano esteja mais amparado, confiante, então o personagem finalmente se torna crível – e, seus trejeitos, mais orgânicos (ou talvez seja o público que, àquela altura, já tenha se acostumado um pouco mais com a afetação da personagem). Resulta, por fim, em uma performance bem convincente. 

Mas quem se destaca no filme são duas mulheres. Clara Choveaux, como a irmã de Suzano, tem um encantatório modo de falar sereno mas firme, e como seus traços por vezes a fazem lembrar a grande Glauce Rocha, é uma lástima que é ela apareça tão pouco no longa.  

E há, claro, Renata Carvalho, de expressividade assombrosa – nem precisa abrir a boca para que nossos olhos se voltem para ela. Felizmente, porém, Oliveira lhe oferta falas magníficas, e um monólogo em que ela olha para a câmera e narra a história de Rose está entre os pontos altos do cinema brasileiro dos últimos anos. 

O final ao som de Secos e Molhados se mostra frustrantemente dispensável: é como se o cineasta terceirizasse a capacidade de comover o espectador – como se seu filme, em si, não o conseguisse sem essa ajuda melódico-poética (o que sequer é verdade). Muito melhor é o uso que faz de Gonzaguinha, em trecho de inserção musical altamente criativo e marcante.  

É um filme que cresce na memória do espectador; se os registros jornalísticos da época sobre o tema tratavam da questão de modo inescapavelmente exploratório, Oliveira substitui esse olhar pelo da ternura e da empatia.