quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Crítica: "A Mula"

(The Mule, dir. Clint Eastwood, 2019)

Dianne Wiest e Clint Eastwood em "A Mula"

Clint Eastwood é provavelmente uma das cabeças mais confusas de Hollywood. É claramente um homem conservador: sempre foi (e se ele se saía tão bem na pele do machão fascista Dirty Harry, à toa é que não devia ser). Mas seu cinema tem uma busca constante – ainda que torta – por humanismo e empatia, uma abertura de olhar para certos tipos de personagens e situações que fazem o público por vezes até esquecer que, na vida real, é uma alma reacionária.

Em “A Mula”, talvez ele esteja o tempo todo falando de si: o filme tem constantemente lampejos de progressismo, mas que surgem de uma massa bruta essencialmente retrógrada. É sobre Earl, um velhote que passou a vida se dedicando à sua maior paixão, o cultivo de flores, mas que por falta de previdência – e certo hedonismo – foi à bancarrota à beira dos 90 anos. Sem ter como se sustentar, descobre no transporte de drogas uma maneira de ganhar dinheiro.

Earl tem uma família que poderia ser muito feliz, mas ele nunca foi um marido ou um pai presente; sua filha o abomina. Os parentes o acusam o tempo todo de ter priorizado o trabalho em vez do lar, e o próprio Earl reconhece isso, mas não só: sente-se altamente culpado. Só quando consegue enriquecer por conta do tráfico é que volta a procurar a família – como se, tendo dinheiro, pudesse ser aceito e reparar os erros do passado.

O roteiro de “A Mula” é estruturalmente bem arquitetado, e a direção de Eastwood é fluida, dinâmica, contida: embora evidentemente não seja um filme dirigido por um jovem, em momento algum parece obra de um quase nonagenário. É a história de um homem que precisa sair do universo em que sempre viveu e se atualizar, tendo um contato maior com o mundo de hoje.

É óbvio que o embate entre Velho Mundo e Novo Mundo é algo que o próprio Eastwood vivencia em Hollywood, e Earl é apenas uma variação mais afável e inconsequente do idoso que ele talvez seja na vida real. Fez um filme sobre si e a necessidade de entender melhor o planeta de hoje.

Mas o diretor parece estar se atualizado com as pessoas erradas: embora o filme tenha uma percepção de algumas questões bastante típicas da segunda metade dos anos 2010, o olhar do cineasta parece estacionado no mesmo lugar que há 30, talvez 40 anos atrás.

Earl tem lá sua abertura de mente, mas há algo de estranho, mal definido, em seu comportamento. Por exemplo: não se mostra um homem que tenha problemas morais com a questão das drogas e trata os imigrantes mexicanos (e uma família negra em apuros na estrada) como quem lida como qualquer outro cidadão americano. Na estrada, depara-se com um grupo de lésbicas motoqueiras e acha que são homens; ao descobrir seu equívoco, apenas leva um breve susto e logo as vê com simpatia, aceitando-as com naturalidade.

Isso contrasta com o homem conservador que, em outros aspectos, Earl já vinha se mostrado até então – e que se mostrará logo depois. No comecinho do filme, Earl faz o que acredita ser um “elogio” a um grupo de senhoras em uma exposição de flores, dizendo que “o concurso de beleza é no outro andar” (todas se sentem lisonjeadas com a galhardia). Casou-se com uma mulher um bocado mais jovem (Dianne Wiest tem 18 anos a menos que Clint), e quando é expulso de uma celebração da neta, Earl não reconhece o próprio erro e sai bufando, com apenas um xingamento destinado à ex: “Aquela bruxa!”. Mais adiante, em uma festa (terrivelmente caricata) de um chefão do tráfico, diverte-se a valer com belas mulheres de biquíni, cujas carnes estão tão expostas como as de um açougue. E não nos esqueçamos de uma fala tola, inócua, mas reveladora: Earl diz a um policial que tem pena do genro porque “as tortas de nozes da minha filha são horríveis!”. 

Ou seja: Earl é um sujeito que acha que um elogio a uma mulher deve se referir a sua beleza; que só se envolve com moças mais jovens que ele; que culpa a mulher mesmo quando sabe que está errado; que se apieda do genro porque sua mulher (mesmo que seja sua filha) não é boa de fogão o suficiente. Estranho pensar que esse homem seja o mesmo progressista descrito no parágrafo anterior.

Alison Eastwood em cena com o pai (no filme e na vida)

Mas não é apenas o personagem vivido por Eastwood que apresenta uma série de posturas de Velho Mundo; ele, enquanto diretor, também o faz. O filme traz piadas aqui e ali bem no estilo Dirty Harry. Logo no começo, um traficante filipino faz as unhas, e logo um policial tira um sarro: “Com esse comportamento, você vai ser a alegria da cadeia” (no final, é Earl quem vai preso e termina o filme cuidando de flores, atitude convenientemente ignorada pelo manual de Clint sobre comportamentos que tornariam alguém uma “alegria da cadeia”). “A Mula” também traz quase em toda sua duração uma visão caricatural e por vezes desrespeitosa sobre a comunidade hispânica nos EUA, cujo ápice da estereotipagem chega justamente com a tal festa já mencionada.

Tudo isso poderia fazer sentido: suponhamos que essa confusão do filme entre velharia e modernidade seja uma extensão da própria salada mental de Earl, no mundo de fins dos anos 2010. Mas o viés homofóbico, a objetificação feminina e o olhar etnocêntrico surgem sempre como uma espécie de efeito colateral, não desejado, jamais como uma crítica; é bem provável que Eastwood sequer tenha se dado conta de que seu filme incorre nessas questões.

Ora, quando Earl elogia as mulheres na exposição de flores, a intenção da cena é mostrar o vovô como um galanteador à moda antiga, mas não a de fazer uma apreciação desse comportamento enquanto algo arcaico (mesmo para 2005, quando a cena acontece). Ao contrário: Eastwood parece apenas querer destacar em Earl um aspecto positivo de sua postura, como a de um sujeito pertencente a um tempo em que os homens “eram homens”, gentis e cavalheirescos. E que, em vez de fazer as unhas, elogiavam as mulheres no que elas teriam de mais “fascinante”: a beleza física.

Em “Green Book”, quando o personagem de Viggo Mortensen usa a própria branquitude para ajudar o de Mahershala Ali em um restaurante racista, muita gente torceu o nariz (com certa razão): é um tipo de cena que destoa da representação empoderante dos negros dos anos 2010 (mesmo que a cena se passe nos anos 60). Pois “A Mula” tem uma cena mais “Green Book” do que todo o “Green Book”: Earl salva a pele de dois traficantes mexicanos, abordados por um policial racista, em uma cidadezinha retrógrada no interior dos EUA. A crítica de cinema em geral, no entanto, prefere ignorar a presença dessa cena no filme e se concentrar em outros pontos; é impressionante a blindagem que a adoração ao diretor lhe proporciona.

Não é que todo e qualquer filme precise, a partir de agora, ter uma visão empoderante sobre as minorias. Cada um que opte pelo tratamento que achar melhor – mas o zeitgeist de 2019 exige que se tenha cuidado redobrado ao abordar determinados assuntos. E para um filme que é justamente sobre isso – um velho que entra em contato com um mundo que desconhecia (sequer mandar um SMS ele sabia) –, as falhas na abordagem pós-moderna sobre os temas é um erro enorme. Vai, inclusive, contra o próprio conceito do filme.   

Clint Eastwood em cena de "A Mula"

No entanto, “A Mula” tem pontos positivos, e a atuação do próprio Eastwood talvez seja o maior deles. A incapacidade de forjar muitas expressões foi por décadas uma limitação para o Clint ator, mas na velhice ele tem sabido utilizá-la a seu favor: desta vez, dá um aspecto de displicência ao personagem (Earl reage com certa surpresa a tudo, mas nunca com muita intensidade; isso traz um ar cômico a muitas cenas).

Eastwood envelheceu de uma maneira inesperada para o porte atlético que tinha na juventude: diferentemente de um Burt Lancaster, que foi musculoso até o último suspiro, Clint se tornou um velhinho quase esquálido, de aspecto bem mais próximo ao de Henry Fonda quando idoso (no filme, Earl é confundido por duas vezes com outro astro conhecido pela figura esbelta: James Stewart). Isso lhe trouxe um ar de fragilidade que é um ponto positivo em um papel como o de Earl: gera um curioso contraste com sua rabugice e coragem em certos momentos, enriquecendo o personagem.

É uma das melhores performances de Eastwood em toda sua carreira. Se um dia quiser desistir de ser diretor, Clint poderá facilmente se manter apenas como ator. Desde “A Conquista da Honra” (2006), já mostrou diversas vezes que a aposentadoria não seria má ideia -- há talvez 3 ou 4 exceções, entre os 11 filmes que lançou desde então. “A Mula”, se não é exatamente uma obra-prima, é uma dessas exceções, que fazem o público não fanático ainda ter fé na capacidade de Clint de ainda fazer bons filmes. Apesar de, volta e meia, ele cometer equívocos imperdoáveis como seu anterior, "15h17 - Trem para Paris", uma das grandes manchas em sua trajetória.


Crítica: "Marighella"

"Marighella"
(dir. Wagner Moura, 2019)

A crítica postada abaixo foi escrita logo após a première mundial de "Marighella", no festival de Berlim, no dia 14 de fevereiro de 2019. Para seguir as regras da Berlinale sobre a divulgação de críticas, o texto foi publicado no dia seguinte, no UOL. Muitos leitores, afoitos, acharam que no texto eu me refiro a Marighella como "um humanista", mas basta reler o parágrafo para notar que quando utilizo o termo é para me referir à ideia que o filme quer transmitir. Tenho minha opinião pessoal sobre Marighella e sua luta e, em momento mais oportuno, teria tranquilidade de expor. Mas, no momento, para evitar confusões, mantenho apenas a minha visão sobre o o filme. Segue abaixo: 

Seu Jorge em close no poster oficial de "Marighella"


Bruno Ghetti
Colaboração para o UOL, em Berlim (Alemanha)
15/02/2019 15h30

A vida de Carlos Marighella gerou narrativas de naturezas tão díspares quanto as paixões de quem se dispunha a contá-las. Detratores o difamaram na mesma medida em que admiradores o idealizaram. Em comum, apenas a incapacidade de um olhar indiferente ou frio sobre o maior líder da guerrilha urbana no Brasil. Mas qual o sentido de ser neutro diante de um ser humano que sempre procurou passar distante da neutralidade? Seria uma enorme traição ao homem e a sua essência, e Wagner Moura parece estar ciente disso em "Marighella", sua aguardada estreia como diretor de cinema.

Como o filme é o primeiro longa de ficção a se dedicar especificamente à trajetória do guerrilheiro (em seus últimos quatro anos de vida), era de se esperar que a narrativa tivesse viés claramente esquerdista - e, logo, inevitavelmente apaixonado. Moura joga limpo: em nenhum instante nega o fascínio que tem por Marighella - assim como o livro homônimo que o inspira, escrito pelo jornalista Mário Magalhães. 

No filme, o personagem é acima de tudo um homem íntegro. Que pode ter errado nos métodos que escolheu para resistir aos militares, ou talvez apenas tenha feito o que estava ao seu alcance (o filme não toma partido quanto a isso). Mas que sabia que a resistência, de qualquer tipo, era fundamental naquele período histórico do Brasil.

O que funciona no filme
Se em grande parte do filme - sobretudo a primeira hora - a narrativa de Moura funciona tão bem é justamente porque existe paixão em sua lente: pelo personagem, pelo ator principal (Seu Jorge), pelos temas. E há também nesse primeiro trecho do longa um respeitável domínio técnico do manejo da câmera - quase sempre na mão, com foco no rosto dos personagens, tornando o fundo algo desimportante; o cenário poderia ser o Brasil dos Anos de Chumbo - ou o atual. A face humana, e seu sofrimento, tem o privilégio.

Seu Jorge tem uma presença tão poderosa, marcante, que mesmo suas falhas técnicas enquanto ator passam despercebidas. Quando o roteiro se afasta dele para costurar a situação que desembocará na morte do personagem, o longa decai; perde o fôlego quase que irrecuperavelmente. Mas quando ele ressurge em cena, Moura não apenas tem diante de si um homem 100% convincente na pele de um líder nato como também uma figura capaz de reinserir o filme no prumo e lhe devolver a vida. Independentemente do tipo de cena em que surja - cômica, romântica, de ação, dramática -, ele é capaz de manter o longa pulsante.

Qualquer um que pretendesse interpretar Marighella precisaria ter pelo menos dois elementos: imponência física e magnetismo. Mas Seu Jorge ainda traz um terceiro: a fúria. Seu Marighella é um homem doce e bem-humorado, mas essencialmente furioso - com a situação de seu país, de sua família, de seu povo.

O que não funciona no filme
É também a paixão excessiva que talvez tenha impedido que o cineasta não percebesse certos desacertos do filme: a caricatura na construção de alguns personagens, a inserção de eventos irrelevantes para o que é central na narrativa, o desnível na qualidade das performances. E há falta de clareza no significado de determinadas situações, talvez compreendidas apenas por quem já conhece a história de Marighella ou já sabe de detalhes de como funcionava a luta armada no Brasil. Embora seja um filme de intenções didáticas, "Marighella" é muitas vezes uma obra um bocado afoita, dominada por um incontrolável (ainda que compreensível) sentido de urgência.

O longa tem 155 minutos, mas poderia ter menos de duas horas. Aliás, talvez fosse até mais efetivo, porque Moura já tinha diante de si o mais importante para o projeto: um Marighella crível. Poderia se concentrar mais nele. Pouco importa que Seu Jorge tenha um tom de pele bem mais escuro que a do guerrilheiro na vida real (que era descendente de sudaneses e italianos): a escolha por um homem negro quase sem traços perceptíveis de miscigenação é um acerto, se a observamos enquanto um ato político da parte de Moura. Cria um herói negro e ciente (além de orgulhoso) dessa sua ancestralidade. Uma opção que vem a calhar: o filme "Marighella" é fundamentalmente sobre tomadas de posições.

Isso, porém, não justifica alguns arroubos de pieguice que Moura infelizmente não consegue evitar. Quando Marighella é assassinado, uma militante de esquerda cai em prantos e grita: "Esse homem amou o Brasil! Esse homem amou o Brasil!" Além de lamuriosa, a frase soa desnecessária: o que o filme havia mostrado até então já era suficiente para que o espectador chegasse a essa conclusão por conta própria.

Filme importante para os dias de hoje
"Marighella" é genuinamente um produto do Brasil polarizado pós-2013. Em vários momentos, fala sobre o país dos anos 1960, mas com frases que se encaixam com facilidade no Brasil de hoje - poderiam sair de qualquer boca progressista diante do recrudescimento das forças conservadoras na era Bolsonaro. Logo no começo, um letreiro diz que o discurso do Golpe de 1964 visava "acabar com a corrupção e com a ameaça comunista". Mais adiante, o protagonista justifica sua opção pela guerrilha: "Ninguém fez nada quando tinha que fazer!". E posteriormente: "As pessoas precisam saber que, no Brasil, tem gente resistindo."

Sim: é um diálogo claro com a plateia de esquerda. Mas o filme não é de nicho: é importante para qualquer brasileiro, seja qual for sua inclinação política. O espectador não precisa comprar a ideia de que Marighella foi um santo - até porque o filme jamais se propõe a vendê-la. Quer transmitir, no entanto, a ideia de que ele apenas não foi um monstro, mas um ser humano capaz de errar, de ser truculento e de cometer assassinatos e violências variadas. Só que, acima de tudo, foi um homem fiel aos seus princípios. E, a seu modo, um humanista.

Se o espectador considera sua luta digna de admiração ou uma postura que merece apenas reprimendas, fica a seu próprio critério julgar. O que não se pode negar é que um personagem importante como Carlos Marighella precisava ter sua história contada - ainda que sob uma perspectiva esquerdista. Até porque, veio da direita a história "oficial" dos fatos que "Marighella", o livro e o filme, procuram revisar.

Link para o texto original do UOL: https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2019/02/15/marighella-de-wagner-moura-e-um-produto-do-brasil-polarizado-pos-2013.htm