sexta-feira, 8 de julho de 2022

Crítica: "Os Primeiros Soldados"

 O texto abaixo foi publicado na "Folha de S.Paulo". O link do original é este.

Johnny Massaro protagoniza o longa


Os mais jovens talvez não tenham muita noção do quão assustador foi o período em que a aids se espalhou pelo mundo, significando uma sentença de morte e sofrimento a quem tivesse a enfermidade.  Nesse sentido, “Os Primeiros Soldados”, de Rodrigo de Oliveira, é um filme de grande importância, já que preenche a lacuna que nosso cinema possuía sobre o tema.  

Os soldados do título são os primeiros homossexuais e trans do Brasil a desenvolver a doença e a enfrentar uma batalha em que a derrota era óbvia – e cujos efeitos negativos eram potencializados por preconceitos, uma mídia predatória e uma profunda ignorância da ciência sobre a síndrome, que só anos mais tarde ameaçaria a sociedade como um todo. O filme é um monumento póstumo a esses guerreiros tristemente vencidos.  

Sim, seriam derrotados, mas os personagens do longa não ficam esperando a morte passivamente. Ao contrário, unem forças para resistir a ela da maneira (improvisada) que podem. Mas há luta. 

A trama se passa em Vitória, sobretudo em 1983, com foco em três portadores do HIV. Suzano, vivido por Johnny Massaro, é um homossexual de origem burguesa que mora em Paris, mas que volta ao Brasil para visitar a irmã e o sobrinho. Rose, interpretada por Renata Carvalho, é uma travesti que faz shows em uma boate – mesmo lugar onde Humberto, vivido por Victor Camilo, rapaz gay, negro e interiorano, ganha a vida como cinegrafista.  

Os três se isolam em um sítio, onde tentam empiricamente fazer pesquisas e conter o avanço da doença, mas onde sobretudo se envolvem em uma rede afetiva de solidariedade e compreensão mútua. 

O filme começa meio esparramado, sem muita unidade, com personagens aparecendo e logo sumindo. Oliveira nem sempre controla as cenas – é especialmente inábil aquela em que Suzano ressurge, levando fotos do próprio corpo tomado por sarcomas de Kaposi para distribuir em uma festa (não sabemos se é um alerta aos demais sobre a doença, um gesto de autopiedade ou um delírio do personagem; de qualquer forma, é um ato sensacionalista demais para alguém que, até então, estava se tratando reclusamente).  

Mas a partir da segunda metade, o longa ganha uma extraordinária solidez. As cenas no sítio, em que os três protagonistas se filmam em VHS para ter sua história de certo modo imortalizada (ali, sim, os registros do próprio corpo fazem sentido), conseguem uma adesão do espectador que parecia inatingível na primeira parte. O filme se torna de fato comovente.   

Há, porém, um desnível entre os personagens. Humberto é de longe o menos elaborado, e sua timidez não o torna lá uma figura marcante, sobretudo diante dos espalhafatosos Suzano e Rose (e quando ele inicia um romance com um amigo de infância, o filme reserva ao casal as piores frases do roteiro). Victor Camilo o defende como pode.  

Já Massaro tem bem mais com o que trabalhar – é o real protagonista. Mas há algo de desacertado no modo como o ator compõe o personagem em suas primeiras cenas; parece calcular demais tanto maneirismos quanto sofrimento. Mas alguma coisa acontece depois que Suzano se isola com Rose e Humberto no sítio; é como se Massaro, ali, finalmente se encontrasse no papel. Talvez porque, naquele ponto, Suzano esteja mais amparado, confiante, então o personagem finalmente se torna crível – e, seus trejeitos, mais orgânicos (ou talvez seja o público que, àquela altura, já tenha se acostumado um pouco mais com a afetação da personagem). Resulta, por fim, em uma performance bem convincente. 

Mas quem se destaca no filme são duas mulheres. Clara Choveaux, como a irmã de Suzano, tem um encantatório modo de falar sereno mas firme, e como seus traços por vezes a fazem lembrar a grande Glauce Rocha, é uma lástima que é ela apareça tão pouco no longa.  

E há, claro, Renata Carvalho, de expressividade assombrosa – nem precisa abrir a boca para que nossos olhos se voltem para ela. Felizmente, porém, Oliveira lhe oferta falas magníficas, e um monólogo em que ela olha para a câmera e narra a história de Rose está entre os pontos altos do cinema brasileiro dos últimos anos. 

O final ao som de Secos e Molhados se mostra frustrantemente dispensável: é como se o cineasta terceirizasse a capacidade de comover o espectador – como se seu filme, em si, não o conseguisse sem essa ajuda melódico-poética (o que sequer é verdade). Muito melhor é o uso que faz de Gonzaguinha, em trecho de inserção musical altamente criativo e marcante.  

É um filme que cresce na memória do espectador; se os registros jornalísticos da época sobre o tema tratavam da questão de modo inescapavelmente exploratório, Oliveira substitui esse olhar pelo da ternura e da empatia.