(dir. Caetano Gotardo, Marco Dutra, 2020)
Cena do filme "Todos os Mortos" |
*A crítica abaixo foi publicada originalmente na Folha de S.Paulo, em 24 de fevereiro de 2020 (no site do jornal, foi postada no dia anterior), na ocasião da estreia mundial do longa, no Festival de Berlim.
BERLIM Todo artista tem (ou deveria ter) o direito a se expressar sobre o tema que bem quiser. A sensibilidade moderna, porém, passou a exigir de uns tempos para cá que ficasse claro o lugar social de onde esse artista fala —mas a liberdade criativa, a priori, continuaria a mesma.
Isto posto, tudo bem que dois homens, brancos, de classe
média, tenham o direito de fazer um longa sobre o peso do passado
escravocrata na sociedade brasileira de hoje. Mas surge a questão: seria
um ponto de vista adequado?
Se for um filme como “Todos os Mortos”, a resposta é
também uma pergunta: por que não? O longa dirigido por Marco Dutra e Caetano
Gotardo —homens, brancos, de classe média— fala de questões
estruturais da sociedade brasileira, mas que não são apresentadas pelo viés de
uma experiência em primeira pessoa, seja a da família negra, os
Nascimento, ou mesmo a da branca, os Soares.
O desenvolvimento psicológico dos personagens não é o centro do interesse do filme. Eles representam, antes, aspectos gerais da sociedade brasileira —são mais propriamente metáforas, ilustrações de traços da brasilidade, do que pessoas de carne e osso.
“Todos os Mortos” é uma análise sobre o quanto o Brasil
do século 19 é, em essência, o Brasil do século 21. Claro que muita coisa mudou
nestes mais de cem anos, mas a tese do filme é a de que, em termos gerais, a
sociedade brasileira continua basicamente a mesma.
Como o filme lida exatamente com termos gerais, e não tanto
com especificidades próprias à experiência pessoal, o único “lugar de fala” que
seria verdadeiramente “adequado”, os dois cineastas possuem: são brasileiros.
Porque nesse caso, sem uma compreensão de quem observa de perto o Brasil,
provavelmente o filme seria inviável —ou, em última análise, seria menos
completo.
Aliás, talvez seja um filme brasileiro até demais, e a
frieza com a qual foi recebido em sua primeira exibição em Berlim de
certa forma atesta isso. Durante a projeção de estreia na Berlinale, no
sábado (22) à noite, voltada para a imprensa, alguns jornalistas deixaram a
sala antes do fim. Ao final, ouviu-se apenas meia dúzia de palmas pingadas.
Alguns filmes instigam nas plateias internacionais reações
fortemente viscerais, mesmo que ela não compreenda por completo o que vê na
tela —“Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho, é um bom exemplo disso. Nesse
sentido, “Todos os Mortos” está em uma linhagem mais próxima de “Joaquim”, de
Marcelo Gomes, último longa brasileiro a disputar o Urso de Ouro, em 2017 —e
que também não causou grande impacto na Berlinale.
Ambos lidam com dados que exigem um certo conhecimento e uma
elaboração intelectual sobre a realidade brasileira para que cause uma comoção
mais intensa. Um estrangeiro talvez nem sempre esteja munido das mesmas
ferramentas de decifração que alguém que conhece bem o Brasil.
Mas o público brasileiro há de apreciar o filme, que tem um
conceito extremamente bem sacado: mostra um Brasil do presente (o espaço urbano
paulistano, que inicialmente parece a cidade ainda provinciana dos tempos da
cafeicultura, aos poucos revela ser o da selva de pedra atual), mas com
personagens do passado. A história começa em 1899, onze anos após a abolição da
escravatura. Os Soares são a elite cafeeira branca em decadência. Os Nascimento
são ex-escravos, mas largados à própria sorte.
A escravidão acabou oficialmente, mas o fosso entre brancos
e negros persevera. Isso se nota mesmo nas frases mais aparentemente inócuas.
Em uma cena, uma moça da Casa Grande diz: “Cante uma canção na língua de
vocês”. A ex-escrava responde: “Mas eu nasci no Brasil e sempre falei
português!”. Ou quando a matriarca branca, em meio a agradáveis encontros ao
piano com filho da antiga serviçal, ordena mansamente que a criança vá apanhar
algumas folhas no jardim —exercendo, na verdade, um tipo de poder camuflado,
ardiloso, mas que essencialmente representa a ordem das coisas de sempre: a
madame (tão gentil e boazinha) exigindo ser servida pelo
lacaio.
O filme é composto por diversas pequenas falas e situações
que são representativas das relações de poder do Brasil de hoje. E não só as
relações de classe ou de diferenciação racial —há também o machismo, o maltrato
ao imigrante, a homossexualidade reprimida, o preconceito religioso. Os
letreiros de “Todos os Mortos” falam que o filme se passa em 1899, mas tudo o
que se vê ali está acontecendo agora, neste exato instante.
Talvez esse seja o grande problema do filme: ele tenta
dar conta de temas demais, ser um painel muito amplo de questões brasileiras, e
nem sempre a trama criada por Dutra e Gotardo consegue abarcar tudo com
habilidade. Há um certo distanciamento, também, gerado pela opção por um estilo
de atuação pouco naturalista, com as falas muito encenadas, teatrais. Mas,
independentemente de qual tenha sido a ideia por trás, também esse efeito acaba
sendo positivo: há algo de ridículo em todas essas situações.
E há uma atmosfera de nonsense espraiada por todo o filme —o
Brasil, afinal de contas, é um país surreal. Também isso é bom, porque Dutra
(sobretudo) desta forma se distancia um pouco de um uso por vezes fetichista do
cinema de gênero; as cenas em que há uma tentativa de incorrer no thriller ou
no horror surgem naturalizadas —são parte da loucura geral do filme.
“Todos os Mortos” é uma obra especial, à parte na
seleção da Berlinale —talvez até na produção brasileira recente. Nem tudo
funciona, mas há tanto de Brasil ali que a tela é como se fosse um espelho. E,
no final das contas, todos os mortos estão vivos —e eles somos nós, os
brasileiros.