quinta-feira, 21 de julho de 2016

Crítica: "Mãe Só Há Uma"

(idem, 2016), de Anna Muylaert

Cena de "Mãe Só Há Uma"

Quando lançou seu novo filme no Festival de Berlim, Anna Muylaert não se cansava de repetir: "Não vai fazer o mesmo sucesso que ‘Que Horas Ela Volta?’, nem contem com isso". E não vai, mesmo, mas a diretora talvez esteja menosprezando sua própria capacidade de comunicação: "Mãe Só Há Uma" tem um enorme potencial para conquistar um belo público – se não tão numeroso como o de seu filme anterior, ao menos um de fãs ainda mais ardorosos.

O longa é um retrato de uma juventude que não costuma se ver representada em um cinema mais convencional, e, por isso mesmo, deverá ter um apelo substancial com esse público. O projeto, percebe-se, não é fruto de um roteirista que ficou trancafiado em uma sala, diante da tela do computador; nasceu da cabeça de alguém (no caso, a própria diretora/roteirista) que teve um convívio direto com uma geração mais liberada, formada por jovens que odeiam rotulações e que estão ávidos por viver suas vidas sem dar satisfações sobre suas escolhas e nem precisar definir a todo tempo quem são.

O protagonista do filme é um deles, Pierre (o estreante Naomi Nero), um rapaz de voz grossa, que pinta as unhas de azul e beija garotos e garotas. Ele gosta de usar cinta-liga enquanto se olha no espelho, mas seus modos não são afeminados. Mas mesmo se fossem, isso não seria um problema para Pierre, que não se preocupa com paradigmas sexuais; quer apenas levar sua sexualidade de maneira livre, sem encanações.

O centro da trama, porém, não tem relação direta com essa característica de Pierre. A intriga se inspira no "caso Pedrinho", que ocorreu em Goiás, nos anos 90: Pierre foi roubado pela mãe na maternidade ainda bebê e viveu toda a vida com a família errada. Quando ele descobre o que houve, conhece e vai viver com a família biológica, bem diferente da sua, e fica sabendo que tem um irmão mais novo, também nada parecido com ele. Como se imagina, o convívio com novos parentes tão distintos não será fácil.

Muylaert faz a ousadia extrema de juntar dois temas muito fortes – a maternidade e a ambiguidade sexual – em um mesmo filme. É um risco imenso: embora a rigor sejam coisas separadas, quando apresentadas juntas, como no filme, corre-se o risco de se cair na tentação de achar que uma coisa tem relação direta com a outra. E do jeito que Muylaert edita algumas cenas, fica difícil não freudianizar o que se vê.

Por exemplo: quando a mãe falsa de Pierre é presa, na cena seguinte, vemos o jovem trancado no banheiro, se depilando. Em teoria, a ideia seria mostrar que o rapaz tem sua individualidade, seus desejos e suas pulsões, não importa o que aconteça em outras áreas de sua vida. Mas da maneira como a cena foi inserida – imediatamente depois de a mãe ser presa –, abre-se uma nova possibilidade de interpretação; fica parecendo que Muylaert está querendo dizer que existe um elo entre o comportamento sexual liberado de Pierre com sua relação com a mãe. Ele rasparia seus pelos, talvez, como um ato de rebeldia, de extravasamento da frustração diante da terrível cena de ver a mãe ser encarcerada. A justificativa de sua sexualidade "diferente" estaria em algum elemento com a relação materna.

Muylaert é inteligente o suficiente para saber desse risco que corria, mas resolveu insistir nele. Mas ao bancar essa possibilidade, ela está pisando em um terreno bastante perigoso. Porque o progressismo do seu filme fica ameaçado: o espectador pode acreditar que ela vê a ambiguidade sexual como algo que obrigatoriamente vem de uma família problemática. E, por extensão, passaria a ser algo aceitável, nos termos do filme, achar que todos os comportamentos "fora dos padrões" (entre mil aspas) no sexo são fruto de questões mal resolvidas com a mãe. Essa causalidade seria, inclusive, exatamente a forma como muitos conservadores adorariam ver o tema tratado no cinema. (E Anna Muylaert pode ser tudo, menos uma mulher conservadora; mas margem para esse tipo de leitura ela inegavelmente dá em seu filme).

O (excelente) poster do filme

Mas este é apenas um dos riscos que Muylaert corre, entre vários. Formais, inclusive. "Mãe Só Há Uma" é quase iconoclasta no que diz respeito, por exemplo, às atuações. O elenco é de uma chocante heterogeneidade de estilos – às vezes é como se Matheus Nachtergaele, Naomi Nero, Luciana Paes, Daniela Nefussi e o menino Daniel Botelho (o melhor do elenco) fizessem parte de filmes diferentes. Muitas cenas em que contracenam definitivamente não funcionam em termos dramáticos convencionais exatamente por isso: o efeito de estranhamento quase sempre prepondera. Só que "estranhamento" parece ser exatamente o que Muylaert queria atingir – até porque estranheza é o que mais existe na relação de um jovem com sua nova família, de hábitos tão distintos dos dele.

Em teoria, Muylaert sai vitoriosa, mas enquanto narrativa o filme sai debilitado, porque muita coisa que acontece em cena (sobretudo uma histeria generalizada) é antirrealista em excesso; não se acredita em muitas delas – ao passo em que várias outras parecem simplesmente perfeitas, dada a bizarrice toda da situação. Se Muylaert tivesse optado por um filme abertamente experimental, seria melhor, porque não ficaria atado às regras da encenação tradicional (e assim ela nos pouparia de certos procedimentos cansados, que não combinam com o espírito do filme, como o de mostrar, em montagem alternada, o irmão mais velho beijando um homem, enquanto o outro vai para a aula de judô etc). Muylaert opta por fazer um filme híbrido, ousado demais para ser apenas "comercial", mas muito pudico para ser totalmente "de invenção".

Ainda assim, apesar de indefinido – quase que uma referência (involuntária?) ao próprio protagonista –, o filme é bastante autêntico e muito especial. Tem algumas cenas que são verdadeiras preciosidades – uma delas, em que o garoto Daniel Botelho conversa longamente ao celular, durante um jantar tenso, é formidável . O filme é o melhor da diretora até o momento. E é uma ave raríssima – e muito bem-vinda – no nosso cinema.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Crítica: "Florence: Quem É Essa Mulher?"

(Florence Foster Jenkins, 2016), de Stephen Frears

Meryl é Florence, a cantora desafinada
Eu não acho que a atuação de Meryl Streep em "Florence" seja boa: acho uma das melhores da carreira dela. É um alívio ver que essa atriz extraordinária, depois de iniciar um caminho (que parecia sem volta) lamentável, com filmes de qualidade duvidosa e atuações exageradas e maneiristas, tenha voltado a acertar o tom. Não só o tom: em "Florence", Meryl acerta em tudo. Desde "O Diabo Veste Prada" (há 10 anos) ela não se mostrava tão instintiva e inspirada como agora. Pena que a Academia já desperdiçou um Oscar com ela pelo filme mais errado possível ("Dama de Ferro"); era por este que ela merecia levar mais sua terceira estatueta.

Meryl interpreta Florence Foster Jenkins, uma milionária americana que, nos anos 40, decidiu se lançar como cantora. O problema é que ela não tinha talento musical algum – quando cantava, o som emitido por suas cordas era constrangedoramente desafinado. Sem ter muita noção da sua incapacidade vocal (o marido a poupava de qualquer crítica ruim), insistia em soltar a voz. Entrou para a história como a "pior cantora do mundo".

O filme, uma comédia com toques dramáticos, é dirigido por Stephen Frears, que, quando quer, é um gênio na arte de capturar boas performances. Desta vez ele quis, e o elenco quase todo de "Florence" está em estado de graça.

Hugh Grant, no papel do marido mais novo e dedicado de Florence, faz mais uma variação de seus personagens habituais, mas aqui ele está bem mais intenso; pensa menos em fazer de sua timidez algo charmoso e mais em encontrar os olhares e entonações verdadeiros, sinceros. Ele está comovente como o dedicado e amoroso homem que adula e protege sua mulher das maldades do mundo (ele é um ex-ator medíocre, que já sofreu muito no passado por não ter conseguido se tornar grande como sonhava ser). Simon Helberg está engraçado na pele do músico homossexual iniciante que acompanha Florence em suas patéticas performances; é um sujeito estranho, desajeitado - não tem lá muito mais talento musical que a própria Florence, mas sonha alto (Era um personagem promissor, mas que não tem aprofundamento devido pelo roteiro, que o utiliza de maneira superficial e leve demais, mesmo para uma comédia despretensiosa). E completa o elenco a divertida Nina Arianda, no papel menor, mas vital, de uma mulher meio grosseira que ridiculariza (e depois aplaude) os "espetáculos" de Florence.

Pode se atacar Frears de tudo, menos de que não seja corajoso; ele lança seu "Florence" com muita proximidade de outro filme com o mesmíssimo assunto, embora camuflado, em outro contexto, e com uma personagem de outro nome: o francês "Marguerite", de Xavier Giannoli (leia a crítica neste link). No final dos anos 80, Frears já havia corrido risco semelhante: ao mesmo tempo em que preparava "Ligações Perigosas", o tcheco Milos Forman concebia seu "Valmont", ambos inspirados no romance de Choderlos de Laclos.

Frears saiu vitorioso (quem se lembra de "Valmont" hoje em dia? quase ninguém – o que é uma pena, já que o filme, embora inferior ao de Frears, não seja nada desprezível). Desta vez, o britânico ganha novamente da concorrência, mas por muito pouco. "Florence" é mais homogêneo, fluido e ritmado, e funciona melhor enquanto comédia que "Marguerite". Por outro lado, é (por opção) também mais rasteiro - a versão francesa vai um pouco além (embora não muito) na abordagem de alguns temas, que às vezes não são sequer aludidos no longa de Frears.

Streep e Grant: excelentes em cena
É curioso perceber que o longa francês traz um questionamento mais original sobre a questão do artista: o que pode e o que não pode ser considerado como arte. Giannoli admite que se veja em uma figura como a de Marguerite habilidades que poderiam transformá-la em uma artista (como o grupo de dadaístas do filme consegue perceber); tudo é uma questão de ponto de vista. Já para Frears, não há exatamente "arte" no espetáculo vocal patético de Florence; mas há nela, sem dúvida alguma, um grande talento cômico: Florence é uma entertainer nata. Pode não ser "arte" o que ela faz, mas é um espetáculo divertido, que entretém e faz rir. Com gargalhadas algo depreciativas, por certo, mas respeitosas (ela não é a figura circo de horrores que eu temia que se tornasse no filme de Frears; está mais próxima de uma personagem de ópera bufa, do burlesco, ainda que a contragosto).

O ponto em que "Marguerite" perde a batalha para "Florence" é justamente nas cenas musicais, quando as duas piores cantoras do mundo mostram seus "dotes" vocais. A francesa Catherine Frot, que tem uma excelente performance em quase todas as cenas, tem um erro lastimável de approach da personagem quando ela precisa cantar; se em geral interpreta sua personagem como uma mulher digna de compaixão, no palco ela passa a ser subitamente uma palhaça proposital, procurando risos do público; o próprio estilo de atuar deixa isso evidente. 

Já Meryl é certeira: no palco, assim como fora dele, ela é uma mulher apaixonada pela música, que quando canta dá tudo de si – entrega-se de corpo e alma ao que ela acredita ser uma arte. Quando as pessoas gracejam dela, há uma decepção genuína em seu olhar; se ela é de fato divertida em cena, isso ocorre apesar da própria vontade dela. Não é a zombaria que Florence busca nem o que Meryl procura; tudo o que as duas querem é exercer sua paixão, da maneira mais honesta possível. (Apesar de a personagem ser excêntrica e exigir alguns exageros, Meryl o faz de uma maneira inusitadamente contida. E embora seja uma ótima cantora, a atriz encontrou uma estridência muito parecida com a da Florence Jenkins da vida real).

O roteiro se desenrola de maneira algo maceteada - há, por exemplo, uma tentativa desnecessária de tornar Florence mais simpática por meio de uma doença fatal. Mas o que fica do longa são os temas essenciais: a lealdade de um homem pela mulher que ele ama; o senso de proteção a alguém em situação de fragilidade como sintoma maior do amor espiritual que se sente opor essa pessoa. E a força de vontade como forma de se conseguir "milagres". Perto de sua morte, Florence diz algo como: "Apesar de todos os contras, eu cantei!". Florence, no fim das contas, foi uma grande vitoriosa, a despeito da alcunha pouco lisonjeira que recebeu. Porque, em vida, fez o que mais amava. E se viver fazendo o que mais se ama não é ser vitorioso, então o que é?

   

sábado, 16 de julho de 2016

"O Botão de Pérola" (crítica pílula)

(El Botón de nácar, 2015), de Patricio Guzmán*

Cena de "O Botão de Pérola"

Em "El Botón de Nácar" [O Botão de Pérola], o chileno Patrício Guzmán volta ao estilo de documentário subjetivo, político e filosófico que havia feito no belo "Nostalgia da Luz". Naquele filme, o cineasta partia do deserto do Atacama para fazer uma série de ilações inusitadas que acabariam em uma reflexão sobre a ditadura militar no Chile. Naquele deserto, enquanto astrônomos buscam novas estrelas no céu, parentes de desaparecidos políticos procuram por restos de seus familiares enterrados na região. Muitas das associações de ideias que ele fazia ali eram discutíveis, mas o filme era forte, poético e original. Ao seu modo, uma pequena obra-prima.

Mas desta vez, Guzmán faz os malabarismos mais improváveis para partir de uma análise científico-metafísica sobre a água e desembocar na denúncia do massacre aos índios da Patagônia e (para não perder o hábito) nas atrocidades sofridas pelas vítimas da ditadura militar chilena. A linha filosófica que Guzmán aplica desta vez é primária demais para ser levada a sério; tudo é absurdamente forçado. Muitos jornalistas adoraram o filme, mas eles provavelmente confundem as boas intenções do longa e o seu empenho em resgatar um passado ocultado por muitos com qualidade narrativa. A visão de mundo de Guzmán é de uma nobreza rara – ele é um dos grandes humanistas do cinema atual. Mas aqui, ele se perde quase que completamente – seu filme é de uma infantilidade (ingenuidade?) lamentável.

*adaptado de texto publicado no dia 9.fev.2015, na Revista Cult, durante a cobertura do Festival de Berlim de 2015 para o site

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Crítica: "As Montanhas se Separam"

(Shan he gu ren, 2015), de Jia Zhangke

Zhao Tao em cena antonionista do filme de Jia Zhangke

O longa do grande Jia Zhangke passou meio batido no festival de Cannes do ano passado: quase não se falou dele – ou quando se falou, não houve muito entusiasmo. Mas um ano depois, o filme chega aos nossos cinemas tido como uma obra-prima inconteste, como que em um esforço inconsciente de reabilitação. Da imprensa mais highbrow aos sites mais pop, a reverência a "As Montanhas se Separam" tem sido quase unânime.

Quem viu em Cannes e agora escreve sobre o longa deve ter sido traído pela memória (e os que só viram agora, como de hábito, devem ter seguido o comboio). Tem muita coisa boa, é inegável, mas é claramente um filme menor na obra de Jia. É dividido em três partes: a primeira (a melhor) se passa na China, em 1999. A segunda (sem muito brilho) acontece em 2014, no mesmo país. E a terceira (quase um constrangimento), na Austrália, em um moderadamente distópico 2025.

Acompanhando os dramas de uma moça e dois rapazes envolvidos em um triângulo amoroso, o cineasta faz o que é sua especialidade: usa as inquietações desses personagens como principal substrato para compor um quadro da China contemporânea. Um país contraditório, indefinido, com um pé no passado e outro no futuro – e a cabeça completamente perdida em algum lugar entre ambos.

A cabeça de Jia, porém, parece firme no lugar como nunca, e ele dirige seu longa de maneira sólida, autoconfiante; exibe a postura levemente presunçosa de um artista que tem ciência da própria capacidade de ir além de onde os apenas medianos conseguem chegar. Mas, desta vez, Jia não ultrapassa com muita folga a linha da mediocridade; "Montanhas" é um de seus filmes menos inspirados.

O filme tem toques de antonionismo (as perambulações; o contraste/ espelhamento dos ambientes com o espaço mental dos personagens) em vários momentos, mas sem a eficiência e autenticidade que Jia já conseguiu com esses mesmos procedimentos em filmes anteriores. Mas é no fundo um melodrama pesado, com personagens que tendem à caricatura – o que é de se estranhar, em se tratando de um diretor tão sutil e afeito a explorar a complexidade existencial de suas crias. A não ser pela protagonista feminina, os demais personagens são quase novelescos: um dos rapazes, íntegro e virtuoso, assume as dores do mundo e sofre até não poder mais (e morre de câncer); o outro é um vilão de existência vazia, que só pensa em dinheiro – abrirá mão de tudo na vida em nome do "vil metal".

A intenção do diretor talvez tenha sido traçar um paralelo de cada um com as duas faces da China atual: o sujeito honrado, mas pobre, resignado, sem lugar no mundo moderno, é a China rural, do passado, "oriental"; o mercenário, que prospera financeiramente, mas que é infeliz por vender a própria alma, é a China urbana, capitalista, ocidentalizada. Mas Jia já mostrou antes ser capaz de criar analogias bem mais sofisticadas e menos óbvias; o caricatural dos personagens predomina largamente sob seu caráter alegórico.

O filme começa com uma cena tão bela como simples – talvez a única que realmente se destaca: um grupo de jovens dança ao som de "Go West", dos Pet Shop Boys, com uma alegria viva e contagiante, à espera da chegada do terceiro milênio. Eu pessoalmente acho que inserir uma música que diz "Vá ao Oeste" para ilustrar aquele momento de ocidentalização chinesa é uma ideia antes banal do que genial (embora a crítica tenha sugerido essa segunda opção), mas é preciso reconhecer que a cena funciona maravilhosamente. Não tanto pelo "go west" em si; creio que mais pela bela melodia da canção, cujos gritos de "together" ("unidos") acentuam o espírito auspicioso, cheio de jovialidade, presente nos rostos e corpos daqueles garotos e garotas.

A dança ao som de "Go West" do início do filme

A cena é um pequeno momento mágico, que está à altura de outros breves instantes que Jia tantas vezes foi capaz de criar no passado (e que o colocam um degrau acima de tantos outros cineastas talentosos). Refiro-me aqui, por exemplo, a cenas como a do prédio que, do nada, vira um foguete e decola, em "Em Busca da Vida"; ou a do abraço comovido entre a chinesa e a prostituta russa, no banheiro, em "O Mundo"; esses breves segundos que são pequenos toques de Midas, que fazem toda a diferença em um filme.

Mas em "Montanhas se Separam", Jia procura mais desses "toques" do que de hábito, sem conseguir efeitos à altura das intenções. A cena final, também ao som de "Go West", tem sido reverenciada como uma obra-prima por si só. Nela, a personagem feminina, após uma vida dura e cheia de decepções, dança sozinha, emocionada, entre as tais montanhas do título – deveria ser uma espécie de Rosebud da protagonista: um breve retorno à alegria inocente da juventude, em um instante de adversidade. Mas a cena (apesar da excelência da atuação de Zhao Tao) é uma conclusão de filme piegas além do esperado. Pior: traz um ranço de afetação incomum na obra de Jia – não tem a mesma verdade, o frescor que sua sequência espelho-invertido (a do início do filme) esbanja. É apenas um clichê embaraçoso querendo se passar por grande arte.

Isso se estende, aliás, por toda a decepcionante terceira parte do filme, no futuro impessoal na Austrália. Ali, o filho dessa personagem feminina, há anos afastado da mãe, entra em contato com uma nova figura materna, uma personagem fraca interpretada pela atriz e diretora Sylvia Chang, diva do cinema taiwanês. O futuro pintado por Jia é muito caricatural e sem imaginação se comparado com o presente ambíguo e complexo que ele nos apresenta – ou será que ele quer dizer que o mundo que nos aguarda vai ser apenas de lugares-comuns e de pobreza criativa? (Neste terço final, quando o espectador imagina que Jia já chegou ao fundo do poço da simbologia barata, eis que ele é capaz de achar uma ainda pior: o vilão mercenário decide batizar o filho com o nome de 'Dollar'...).

O panorama da China atual que Jia traça em seus filmes é sempre interessante, mas aqui, isso por si só não confere excelência alguma ao filme. Mas o longa tem qualidades: o pulso firme do diretor, as soluções de enquadramento, o triângulo amoroso da primeira parte. Mas o melhor é mesmo a atuação de Zhao Tao: simplesmente formidável. Mas não vejo nada além disso que explique a exaltação tão exagerada a este filme sem brilho e de pouco charme, a não ser uma boa vontade por parte da crítica com um cineasta que, já há algum tempo, não encontra a inspiração de seus melhores momentos.