quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Top 10 de 2018: os melhores do ano


Segue minha lista dos melhores filmes (que eu vi) de 2018. Há anos eu não gostava com tanta intensidade de todos os filmes elencados - 2018 foi um ano bem forte no cinema. Ah, e tem o top 5 dos horrores, também. Cá estão:



TOP 10 DE 2018 (circuito comercial + streaming)

1- A Casa que Jack Construiu (Lars Von Trier)

2- Lazzaro Felice (Alice Rohrwacher)

3- Trama Fantasma (Paul Thomas Anderson)

4- O Outro Lado do Vento (Orson Welles)

5- Eu, Tonya (Craig Gillespie)

6- Me Chame pelo Seu Nome (Luca Guadagnino)

7- Projeto Flórida (Sean Baker)

8- Arábia (Affonso Uchoa, João Dumans)

9- O Insulto (Ziad Doueiri)

10- A Pé Ele Não Vai Longe (Gus Van Sant)


MENÇÕES HONROSAS:


- Antes que Tudo Desapareça (K. Kurosawa)

- A Fábrica de Nada (P. Pinho)

- Dovlatov (A. German Jr.)

- The Square - a Arte da Discórdia (R. Ostlund)

- A Cidade do Futuro (M. Hughes, C. Marques)



O TOP 5 DA DESONRA

- 15h17 - Trem para Paris (C. Eastwood)

- Todo o Dinheiro do Mundo (R. Scott)

- Uma Dobra no Tempo (A. DuVernay)

- Sem Fôlego (T. Haynes)

- O Grande Circo Místico (C. Diegues)

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Crítica: "A Casa que Jack Construiu"

O texto abaixo foi publicado no UOL, em 15 de maio de 2018, logo após a sessão para a imprensa no Festival de Cannes 2018.

Riley Keough (a "Simple") e MattDillon (Jack)

O Festival de Cannes de 2018 tinha tudo para propiciar a entrevista coletiva de imprensa mais polêmica de sua história, mas ela acabou não acontecendo. Exibido em sessão especial (fora de competição),o longa “The House that Jack Built” marca a volta do cineasta dinamarquês Lars von Trier ao evento após sete anos, desde que se tornou persona non grata por dizer a jornalistas do mundo todo que “entende Adolf Hitler”, em conversa com repórteres em 2011.

A julgar pelo conteúdo de seu novo filme, uma entrevista coletiva poderia gerar frases ainda mais controversas. Não é exagero dizer que o longa exibido na manhã desta terça à imprensa é o mais perverso e sádico de sua carreira – e quando se fala de uma filmografia que inclui pérolas do sofrimento humano, como “Dogville” (2003), “Anticristo” (2009) e “Ninfomaníaca” (2013), essa informação não é algo a ser menosprezado.

“The House that Jack Built” (A casa que Jack construiu, em tradução livre) são duas horas e meia acompanhando um serial killer metódico, que comete assassinatos violentos, mas sobretudo repletos de maldade, com casos em que as vítimas são expostas a humilhações extremas antes de morrerem. A trama se passa em uma cidadezinha americana nos anos 1970 (apesar de filmado na Suécia), e o assassino em série fica conhecido como Mr. Sophistication (Senhor Sofisticação), exatamente pelo requinte de seus crimes.

O longa é dividido em cinco partes e um epílogo, tentando decifrar a cabeça de Jack (Matt Dillon, em extraordinária performance), um sujeito de inteligência brilhante, mas cheio de distúrbios mentais, como TOC, bipolaridade e crises de sadismo. Ele tem uma longa conversa com um interlocutor indefinido (Bruno Ganz, que não por acaso interpretou Hitler no filme “A Queda”) – que talvez seja sua própria consciência, ou a Morte.

Pouco importa: nesse longo diálogo, que pontua diversos trechos do filme, ambos discutem freudianamente as intenções e métodos de homicídio de Jack. No geral, o assassino expõe um grande sentimento de culpa pelo que faz, mas jamais deixa de revelar o imenso prazer que tem com o sofrimento alheio. Não consegue se desvencilhar dessa fonte de prazer e dor.

Fica claro que, com esse protagonista, Lars von Trier está falando diretamente sobre si mesmo e sua opção estética e ética que utiliza em seus filmes, não raro acusados de misoginia e um grande desprezo pela humanidade. No material distribuído para a imprensa, o cineasta se limita a descrever seu filme com poucas palavras. “Por muitos anos, realizei filmes sobre mulheres boas. Mas agora fiz um filme sobre um homem mau”, diz na apresentação.

A descrição é perfeita: seu Jack é uma criatura abominável, como o Lars von Trier artista tantas vezes já se mostrou em seus filmes. Desta vez, o cardápio de brutalidades inclui mutilação de animais e violência física contra crianças, além da já conhecida truculência contra o corpo feminino – muitas vezes usado, inclusive, de maneira discutivelmente cômica. E inclui desta vez ainda um elemento xenofóbico.

Embora não atribua nada disso a si próprio enquanto ser humano, reivindica para si todos esses elementos enquanto artista. A prova maior disso está no próprio filme: a certa altura, quando o protagonista fala sobre criação artística e instintos malignos, o longa inclui diversos trechos de filmes anteriores de Trier. Sob este aspecto, “The House That Jack Built” é um dos filmes mais confessionalmente corajosos já feitos.

Obviamente que o longa já nasceu polêmico, e muita gente deixou a sala antes do final, tanto na sessão de gala (na noite da última segunda) quanto na de imprensa (na manhã desta terça). Nesta última, inclusive, ouviram-se algumas vaias no fim, mas o que prevaleceu foram mesmo os aplausos. A imprensa estrangeira teve reações de amor e ódio. O site IndieWire resumiu muito bem a ambivalência que o filme gera: "É horrorizante, sádico, e provavelmente brilhante". De fato: apesar de repulsivo em diversos aspectos morais, enquanto obra de arte, “The House that Jack Built” é um filme inegavelmente grandioso – um dos trabalhos mais coesos e profundos do diretor. Um trabalho que leva ao extremo as intermináveis discussões entre os limites entre a arte e a ética humana.

Um dos aspectos mais incômodos de “The House that Jack Built” é o uso do humor: o filme tem vários trechos bastante engraçados. Alguns em um nível mais leve – como quando, por exemplo, o assassino de Matt Dillon precisa voltar diversas vezes à cena de um crime por conta de seu indomável TOC de limpeza; quase é pego pela polícia por conta dessa sua mania. Mas em outros momentos, o riso surge de maneira bem mais embaraçosa, como em cenas em que usa a rigidez de um cadáver congelado para algumas piadas visuais.

E há ainda cenas de um humor desesperadamente doentio, nada engraçado, sobretudo quando envolve crianças. Trier certamente sabe que aquilo não tem graça alguma, mas enquanto criador artístico se vê na obrigação de apresentar ao público aquilo tudo assim mesmo, por mais condenável que sejam as suas ideias. Afinal, elas existem, e são explicitadas, inclusive, em uma tentativa pessoal algo desesperada por parte do diretor de compartilhar esse seu lado desumano. Como se seus filmes fossem uma grande terapia.

Talvez nas profundezas de sua mente, Trier seja uma pessoa tão perversa quanto Hitler, mas o diretor encontrou o cinema para usar como válvula de escape para seu conteúdo mais sombrio. Muita gente, compreensivelmente, ainda o considera um homem maligno, mesmo exercendo seu sadismo por meio de sua câmera. Mas apesar de toda a negatividade que seu cinema traz nas entranhas, enquanto expressão artística, ainda é um pouco daquilo que de melhor a arte cinematográfica tem sido capaz de produzir nas últimas décadas. Amando ou rejeitando-o, ele segue como um nome altamente relevante.
.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Veneza 2018: críticas e reportagens

Abaixo, seguem links para textos (reportagens e críticas) que fiz da minha cobertura do Festival de Veneza 2018 para a "Folha de S.Paulo" e para o UOL.


Cena de abertura de "Roma", vencedor de Veneza 2018

Textos da "Folha":

Apresentação da 75º aniversário do festival  

"Roma" e "The Favourite"

"The Other Side of the Wind"

"The Ballad of Buster Scruggs"

"Domingo" + "The Sisters Brothers" e "Sunset"

Análise final dos vencedores 


Textos do UOL:

"O Primeiro Homem"

"Nasce uma Estrela"

"Suspiria"

"A Amiga Genial"

"At Eternity's Gate"

"22 de Julho"

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Bergman, 100 anos

Em celebração ao centenário de Ingmar Bergman, em julho de 2018, republico aqui uma reportagem minha sobre o relançamento do livro "Lanterna Mágica" no Brasil, publicada no jornal Valor Econômico em março/2013.


Ingmar Bergman, que faria 100 anos em julho de 2018
Bergman além da persona

Reza a lenda que Ingmar Bergman (1918-2007) era um cineasta obscuro, conhecido apenas em sua Suécia natal, até que os críticos de São Paulo o "descobriram", em 1953. Na capital paulista, jornalistas se impressionaram com as qualidades de "Noites de Circo", exibido em uma mostra: mesmo na longínqua Escandinávia, aquele diretor falava de temas universais - a morte, a vergonha, o medo - e exibia uma técnica cinematográfica admirável. Só anos mais tarde, o cineasta se tornaria conhecido no resto do mundo, virando em seguida um mito - um dos maiores do cinema.


Ou talvez não tenha sido bem assim. "Interessante, não conhecia essa história!", diz Jan Holmberg, diretor da Fundação Ingmar Bergman, em Estocolmo, que cuida de preservar a memória do diretor e seu legado. "Mas seria mais justo dizer que foram os franceses que o 'descobriram', no sentido em que distribuíram seus filmes ainda no início dos anos 50, escreveram boas críticas e lhe deram seu primeiro prêmio importante, em Cannes, 1955, por 'Sorrisos de uma Noite de Amor'. Mas não duvido que o Brasil tenha descoberto Bergman por si só, independentemente disso. Aliás, a América do Sul é de longe onde é mais apreciado", completa.

De fato: quase seis anos depois da morte do cineasta, sua obra ainda desperta grande interesse no público brasileiro. Uma bem-sucedida retrospectiva de seus filmes percorreu três capitais no ano passado. Recentemente, o documentário "Liv e Ingmar" revelou aos fãs detalhes do romance com a atriz Liv Ullmann. E agora chega às livrarias uma nova edição de sua autobiografia, "Lanterna Mágica" (Cosac Naify, 320 págs.).

Lançado pela primeira vez no Brasil em 1988, em edição logo esgotada, o livro ganha agora nova tradução, de Marion Xavier. Traz também um prefácio que reproduz artigo publicado no fim dos anos 80 no "New York Times" escrito por Woody Allen, um dos cineastas que mais compreenderam (e admiraram) a obra bergmaniana.

Ernst Ingmar Bergman nasceu em Uppsala, no verão de 1918, filho de uma enfermeira e um severo pastor luterano. O livro comprova o que, no fundo, todos já imaginavam: a angústia, o desespero e os medos que tanto assombravam personagens de filmes como "Persona" (1966) e "Gritos e Sussurros" (1972) tinham como inspiração os fantasmas do próprio diretor. Não são poucas as passagens em que descreve cenas de humilhação, ódio e intenso sofrimento - na infância, sobretudo. Como diz Allen em seu inspirado prefácio, Bergman se mostra "um ser altamente emocional, sem grande facilidade para se adaptar à vida neste mundo frio e cruel".

Assim que ficou adulto, Bergman fugiu de casa e foi trabalhar no teatro. Seu talento foi logo reconhecido e não demorou até que estreasse como cineasta, com o drama agridoce "Crise" (1946). Foi tateando técnicas naturalistas ("Mônica e o Desejo", em 1953), expressionistas ("Noites de Circo") e elementos oníricos ("Morangos Silvestres", de 1957) que conseguiu chegar a um estilo muito peculiar, com um sofisticado uso de recursos como close-ups e fades, pontuando cenas não raro passadas em ambiente fechados e protagonizadas por (belas) mulheres. O herói bergmaniano se tornou icônico: é antes de tudo um atormentado que forja máscaras sociais como escudos defensivos - os conflitos com outros seres (também atormentados e mascarados) são inevitáveis, e é fácil entender por que há tantas falas ríspidas e cruéis espalhadas por toda a sua obra.

O livro mostra que, como seus personagens, Bergman também buscou mecanismos para se defender e se adaptar à vida. Era ainda garoto quando descobriu na mentira um subterfúgio. "Bergman se proclamava um 'mentiroso compulsivo e profissional', incapaz de separar ficção de realidade. E essa falha admitida foi uma importante ferramenta para ele como artista", afirma Holmberg. "O que não quer dizer, porém, que na biografia não haja passagens verídicas - a maior parte provavelmente é. Mas são filtradas por uma percepção própria. Ele nunca se furtou de dar tratamentos dramatúrgicos a histórias. Aliás, as primeiras versões do livro, guardadas nos arquivos da fundação, são ainda mais fictícias", conta.

Fictícias ou verdadeiras, muitas histórias do livro são saborosas. É divertido imaginar, por exemplo, como foi o insólito encontro entre o autor e Greta Garbo, outro grande mito sueco, diante do qual o diretor ficou embasbacado: "Sua beleza era imortal". Mais tarde, porém, reparar em um pequeno detalhe no rosto da diva fez que o entusiasmo cedesse espaço à decepção: "Sua boca era feia!"

Há também interessantes relatos de sua tensa (mas sempre cordial) relação com outra estrela conterrânea, Ingrid Bergman, nas filmagens de "Sonata de Outono" (1978), e do convívio com Laurence Olivier, quando foi a Londres dirigir uma peça (davam-se bem, mas quando o sueco ousou criticar um filme do britânico a amizade esfriou abruptamente).

Em narrativa não linear, Bergman expõe-se em tom quase sempre autodepreciativo, que sugere em geral um genuíno ódio de si, mas às vezes um certo jogo de charme (o cineasta era um incansável sedutor). Revela também detalhes de si que muitos prefeririam ocultar, como episódios constrangedores envolvendo problemas gastrintestinais. E não evita mostrar um lado obscuro: tinha rompantes de ira (certa vez foi multado por agredir um crítico que lhe era hostil) e muitas vezes desejou a morte - a de desafetos e a própria (mas dizia amar demais a vida para pensar em se privar dela). E em um escandaloso caso da acusação de sonegação fiscal, em 1976, livrou a própria cara, dizendo ter só assinado papéis sem lhes dar a devida atenção.

Às vezes, Bergman parece um monstro: reconhece não gostar do pai, ter ódio do irmão e desprezar a irmã. Mas é especialmente desconcertante a honestidade com que assume a indiferença pelos filhos (no livro, não fica claro sequer quantos eles foram; é possível que alguns não tenham sido nem mencionados). Paradoxalmente, é doce ao falar da mãe e da avó, de amigos e de mulheres por quem se apaixonou. Também dá depoimentos saudosos de eventos ocorridos no teatro - é sobre essa arte, e não o cinema, aliás, que ele mais discorre.

É um tanto frustrante que fale tão pouco de seus filmes, mas aqui e ali deixa escapar pílulas. Diz, por exemplo, não gostar (e com certa razão) de "Face a Face" (1976) e "O Ovo da Serpente" (1977). Confessa achar "O Sétimo Selo" (1957) desigual e, embora jamais demonstre muita exaltação, deixa entrever orgulho por "Sorrisos de uma Noite de Amor", "Persona" e "Gritos e Sussurros" (de novo, tinha razão: são talvez seus três melhores filmes).

Bergman foi um grande profissional do teatro e, maior ainda, no cinema. A julgar pela escrita, poderia também ter sido grande na literatura. "Trabalhamos agora na publicação de seus escritos variados, que são absolutamente maravilhosos", informa o diretor da fundação. "Às vezes, acho-o até melhor escritor que diretor. Mas essa carreira em potencial foi muito comprometida quando seus escritos antigos foram recusados por editoras suecas: uma humilhação que ele jamais superou."

domingo, 27 de maio de 2018

Crítica: "A Câmera de Claire"

(La caméra de Claire, 2017)

Kim Minhee e Isabelle Huppert em "A Câmera de Claire"

Hong Sangsoo, Isabelle Huppert e Kim Minhee em um mesmo filme. Combinações de talentos desse porte podem render obras-primas, mas a verdade é que costumam gerar sobretudo grandes fracassos. "A Câmera de Claire" não chega a ser uma coisa nem outra, mas em sua singular simplicidade, sua despretensão em ser "grandioso", é uma pequena e brilhante joia cinematográfica. Quase sem precedentes.  

Ao que parece, a ideia surgiu em um Festival de Cannes, quando Sangsoo improvisou uma historinha para aproveitar suas duas musas, que estavam por ali – aproveitou para também desovar mais uma leva de ideias que sua mente incansável devia estar ávida por materializar. Não por acaso, a trama se passa em um Festival de Cannes: um importante cineasta sul-coreano, So (Jung Jinyoung), apresenta seu novo trabalho na Croisette. Também na cidade está a jovem Manhee (Kim Minhee), que trabalha com venda dos filmes do diretor – e com o qual tem um caso. A chefa da moça, com ciúme de So, obriga a jovem a pedir demissão, mas sem explicar o motivo: diz apenas que Manhee é "desonesta".

A trama avança quando surge a professora de música Claire (Isabelle Huppert), que está na cidade para acompanhar uma amiga cineasta. Em sua primeira fala, ela relata: "É a primeira vez que venho a Cannes!", o que é uma divertida piada extrafílmica (será que alguma outra atriz já esteve tantas vezes no festival quanto Huppert?). Enquanto espera a sessão do filme da amiga, Claire perambula pela cidade, puxando assunto com desconhecidos e tirando fotos de pessoas que considera expressivas.

Claire deve ter uma queda especial por sul-coreanos, porque sua primeira modelo fotográfica é Manhee, e o seu primeiro interlocutor de café é So. De uma maneira sempre um tantinho pouco verossímil, mas justificada na trama por pura força do acaso, diversas coincidências acontecem, e o filme segue adiante, em sua pouco mais de uma hora de duração. Tem a leveza das comédias de erros – embora, a rigor, não seja exatamente uma: o filme não traz malentendidos e confusões. Ao contrário: o tempo todo esclarece situações mal resolvidas, com a intervenção de Claire e suas fotografias.

"A Câmera de Claire" não se pretende um filme "espiritual" ou mesmo místico, mas há algo de não natural na personagem de Huppert. Ela surge no filme o tempo todo com a mesma roupa (os demais trocam de figurino), um destoante modelo amarelo-canário, e aparece em cena em momentos estratégicos, sempre em socorro dos personagens; paira no filme como uma espécie de entidade (talvez uma fada madrinha, cuja câmera é a vara de condão capaz de mudar as pessoas).

Estaria ali, nesse ato de Claire registrar imagens, um dos pontos-chave do filme: ao tirar uma foto de alguém, é como se a câmera retirasse alguma coisa para sempre da pessoa, que jamais seria a mesma. A fotografia capta algo da pessoa que a modificará para sempre. Nunca fica muito claro o que é exatamente seria esse "algo" – mas a ideia, talvez, seja a de ressaltar que o ser humano é mutável, e de um segundo para o outro, já não é mais o mesmo. A câmera não seria tanto um "agente" assim, mas apenas uma testemunha de que o "eu" retratado era aquele só naquele momento exato em que a foto foi tirada. Claire está ali para mostrar isso aos personagens: todos mudamos, então não precisamos agir da forma como sempre achamos que devíamos (ou que esperam de nós).

Mais à frente na trama, Claire explicará a Manhee que tira fotos porque "observá-las vagarosamente é a única maneira de mudar as coisas". Provavelmente é uma metáfora sobre não incorrer nos mesmos erros, em deixar o que passou para trás e seguir adiante (Manhee, na abrupta cena final, parece realmente ter aprendido essa lição). Essa decisão sobre o próprio destino encontra ecos em um poema que Claire ensina So a ler em francês (em uma cena bem engraçada, aliás), sobre um homem que se recusa a não ter domínio sobre si; até sua morte, quando determinada, ele quer burlar, optando por se suicidar antes.

Tudo no filme parece se encaixar, de uma maneira sempre meio inesperada, até estranha, mas com alguma organicidade. Mas o longa traz um enorme mistério que desafia qualquer interpretação semiótica: a que se presta o enorme e pacato cachorro que surge recorrentemente no filme? Difícil chegar a alguma conclusão satisfatória; a impressão que fica é que o cão só está no filme porque o diretor o encontrou em Cannes e o achou expressivo (mas deixemos um voto de confiança ao diretor de que ele significa algo importante que, em uma revisão, faça mais sentido).

Mas a grandeza do cinema de Sangsoo não está tanto nas metáforas ou nas "grandes ideias" que o diretor apresenta. Está nas pequenas coisas, no prazeres prosaicos e simples de ver, por exemplo, duas atrizes tão agraciadas de talento em interação. "Observá-la me faz me sentir bem", diz Claire para Manhee quando a conhece na praia, mas a frase poderia facilmente também ser dita por nós, tanto a Manhee quanto a Claire. E Sangsoo utiliza algumas ferramentas simples que permitem explorar ao máximo o material que tem a mostrar. Por exemplo: os zoom in e out para aproximar o espectador do que é dito. Um truque antigo, básico, mas que utilizado no contexto e ocasião certa, funciona bem mais do que qualquer movimento de câmera afetado.

E há ainda a impressão de naturalidade que Sangsoo tão bem consegue obter. Mesmo que, nem sempre, o encenamento seja verdadeiramente "natural". "A Câmera de Claire" é provavelmente o mais rohmeriano do filmes de Sangsoo (e se pensarmos bem, o título talvez seja uma brincadeira com “O Joelho de Claire”, que Rohmer lançou em 1972).

O longa traz, ainda, um elemento confessional, em que o diretor escancara sua própria culpa por seu comportamento machista e pelos excessos de bebedeira (o diretor So é claramente seu alter ego). Mas mesmo com esse personagem niilista, depressivo, não impede o filme de se manter sempre luminoso, solar. As duas personagens femininas centrais o elevam; suas conversas, mesmo quando se elogiam ou concordam entre si em excesso ("Concordar é muito bom", diz certa vez Manhee, ao que Claire responde, divertida: "Concordo 100%"), são sempre entre duas pessoas que se respeitam e que estão abertas ao novo. Claire deseja conhecer mais sobre a gastronomia coreana, e Manhee se dispõe a cozinhar para ela. Já Manhee elogia um afresco, mas logo se abre a mudar de opinião diante da visão negativa da nova amiga sobre a mesma pintura. O intercâmbio com outra pessoa, especialmente de uma outra cultura, é sempre revelador, enriquecedor. É capaz de nos mudar. Claire nem precisava de sua câmera para deixar sua marca nos personagens deste belo filme.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Cannes 2018 - Crítica: "Dogman"

Dogman, de Matteo Garrone

O excelente Marcello Fonte e seus amigos cães em "Dogman"
* texto originalmente publicado durante o Festival de Cannes 2018

O novo filme de Matteo Garone, “Dogman”, narra a história de Marcello (Marcello Fonte), um dono de uma pet shop especializada em dar banho em cães, em uma cidade pobre da Itália. Com o sonho de poder fazer uma longa viagem com a filha pequena, ele aumenta os ganhos passando adiante cocaína para conhecidos – um deles, o agressivo Simone, vira uma pedra em seu sapato quando começa a agir com violência extrema na hora em que a dependência química fala mais alto. (O rapaz é uma versão adulta dos garotos grandalhões do colégio que fazem bullying com os menores, espalhando pânico por onde passam.)

Um dia, Simone planeja um roubo da loja vizinha à de Marcello e promete que, se contar com sua ajuda, o dono do pet shop levará uma alta soma em euros. Mas as coisas não saem como o esperado, e Marcello, mesmo tendo a oportunidade de denunciar Simone e se livrar da enrascada, opta por não fazer isso, indo parar na cadeia em nome do amigo.

É curioso notar que o filme de Matteo Garrone de certa forma repete o tema – ou parte dele – do outro longa italiano apresentado na competição, o extraordinário “Lazzaro Felice”, de Alice Rohrwacher. Ambos falam de inocência, pureza, em meio a um mundo corrupto e em que a maldade corre solta. Mas Marcello não é extamente um santo: ele também contribui com a criminalidade – além de vender drogas, não vê problemas em receber dinheiro sujo e até é conivente com assaltos. 

Mas a recompensa financeira nem é o que o move nessa sua conivência com o banditismo. O começo do filme traz uma cena em que isso fica claro: quando ajuda dois amigos a roubarem uma mansão (ele é o motorista na operação), o faz menos por interesse material do que por falta de coragem. Mas não se trata apenas de um pavor físico de ser violentado caso não ajude os comparsas sanguinários; seu medo é sobretudo moral, de desapontar os amigos e, assim, ser rejeitado. Antes do que um “covarde”, Marcello é acima de tudo um dependente afetivo, incapaz de dizer um “não”.

É dependente, também, de sua natureza bondosa. Quando, nesse roubo do início, um dos amigos revela perversamente que prendeu no freezer um chihuahua que latia e poderia colocar o assalto a perder, Marcello decide voltar sozinho ao local do crime e se arriscar apenas para salvar o pobre animal congelado. E se o filme se chama “Dogman” (homem-cão), obviamente que não é apenas porque ele é o sujeito que cuida de cães na cidade; Marcello tem uma natureza dócil, afável e fiel como a de um cachorro.

O filme de Garrone mexe muito com o emocional do público, e mesmo que haja uma manipulação pouco disfarçada do roteiro, inclusive pelo próprio paralelo entre o homem e o cão (e quem não se comove com a bondade canina?), em diversos momentos a emoção que ele extrai do espectador é bastante honesta. Vem sobretudo da brilhante atuação de Marcello Fonte, um sujeito mirrado, que se move de maneira um tanto clownesca, mas que exala humanidade por meio de sua figura calejada por uma vida certamente repleta de privações. Mesmo a sua voz fanha, de uma garganta pouco proteica, traz uma doçura muito especial em meio a estridência. É uma figura comovente de olhar e ouvir.

Grande parte das atitudes do personagem podem ser atreladas à sua busca de aceitação, ou mais propriamente de amor. O filme, ainda que seja aflitivo (pelas atitudes por demais submissas do protagonista), é sempre verossímil e cativante quando insiste em mostrar esse comportamento. Mas quando na reta final Garrone ensaia uma mudança de atitude perante a vida por parte do personagem – tornado-o, inclusive, um tanto materialista, além propenso à violência – o longa perde um pouco da verossimilhança, porque isso não combina em definitivo com o que a conduta que o personagem vinha apresentando desde então. 

Tudo leva a crer que a mudança é intencional: é apenas uma tentativa de emancipação por parte de Marcello em relação aos demais. Mas o salto é feito de maneira um tanto brusca; alguma coisa não funciona muito bem ali. No entanto, a figura que fica é a do Marcello doce, afável, tão simpático e amável como qualquer um dos cães de que ele toma conta. É um personagem memorável, e se Fonte sair consagrado com o prêmio de melhor ator será um instante luminoso e de grande justiça por parte dos membros do júri.

sábado, 12 de maio de 2018

Cannes 2018 - Crítica: "Imagem e Palavra" [Le livre d'image]


Le livre d'image, de Jean-Luc Godard

Trecho de "Le Plaisir" na colagem "Le Livre d'Image"

Ver uma estreia mundial de um novo Jean-Luc Godard, no Festival de Cannes, e ainda por cima em competição, é um evento cinematográfico e tanto, independentemente do filme em si. Mas “Le Livre d'Image” [lançado no Brasil como "Imagem e Palavra"] atinge momentos de excelência que o cineasta veterano não conseguia desde “Nossa Música” (2004), seu melhor filme do terceiro milênio.

O longa apresentado ontem na sala Lumière tem parentesco com “Historia(s) do Cinema”, no sentido de realizar uma colagem de diversos filmes, com ruídos e comentários em off, mas com uma pretensão mais filosófico-histórica sobre a humanidade do que sobre a estética dos filmes. Há também cenas breves de reportagens, vídeos amadores, registros de obras de arte, imagens feitas por computador... um caos imagético, enfim.

A ideia é falar sobre o ser humano e sua relação com o mundo a partir desse vastíssimo repertório de imagens escolhidos pelo cineasta. Sem esconder que uma imagem (e um discurso, em geral) sempre traz uma representação de algo, não aquele algo em si. Um registro imagético também é uma mentira, e esse jogo entre o que se vê, o que é real, o que é versão, ques e estende, também, para a interpretação do que se apresenta como imagem. Talvez para lembrar isso que, no início, Godard inclui um trecho de “Johnny Guitar”, um de seus fetiches, em que Joan Crawford diz a Sterling Hayden uma mentira que ele deseja ouvir (o cineasta logo manipula e cena e deixa apenas o som do que é dito, sem a imagem, em um tipo de procedimento audiovisual que ele apresentará ao longo de todo o filme). O espectador está, então, devidamente alertado sobre o que vem adiante.

No comecinho, a voz do próprio Godard diz: “A verdadeira condição humana consiste em pensar com as mãos”. Se juntarmos com uma das últimas frases do longa (“Eu ainda acredito na revolução”), talvez seja possível encontrar uma das chaves para interpretar e absorver este enigmático filme-mosaico: seria uma forma de dizer que é próprio do ser humano a reflexão e também a ação; é isso que nos move e dá sentido à nossa existência.

A imagem da mão é a metáfora utilizada por Godard para estruturar seu filme em cinco partes, como se cada uma fosse um dos dedos. A primeira, “Remakes”, é a mais fácil de acompanhar, porque mesmo que Godard sempre use uma lógica muito própria de escolher e concatenar as cenas de seus filmes, aqui a intenção é sempre clara. Vemos imagens de longas conhecidos (“Salò”, “Paisà” etc) alternadas com cenas de guerra recentes, e não é muito difícil de compreender o sentido dessa justaposição: mostra a tendência humana a sempre repetir os mesmos erros. As situações geopolíticas do mundo são constantes “remakes” de outras já vividas, apenas em novas roupagens, de acordo com os novos contextos.

A segunda parte tem por título “As Noites de São Petersburgo”. Leva a crer que é um prolongamento filosófico sobre a revolução socialista, sobre união dos mais fracos no rumo de sua emancipação, mas o conceito nunca é devidamente explorado nem fica muito claro. Algo que chama a atenção, porém, é o foco em vários instantes sobre a situação feminina – a cenas desoladoras de mulheres humilhadas e violentadas, em filmes de ficção e da vida real. Talvez, o desdobramento necessário para uma real luta de oprimidos contra opressores, nos diz Godard, passe por uma consciência mais ampla de exploração, que não só a econômica. Mas sabe-se lá se era mesmo essa a intenção do diretor; a leitura cabe, de qualquer forma, e se encaixa como uma luva na sensibilidade moderna: embora viva isolado na Suíça, ao que parece Godard acompanha de perto as lutas identitárias femininas.

A terceira parte é mais poética, lírica: usa o trem como metáfora para a vida enquanto passagem, viagem. Mas também como forma de transportar fisicamente as pessoas, povos que migram de um ponto a outro – os judeus, por exemplo (aos campos de concentração, mas também à terra prometida). Pela própria elasticidade simbólica da proposta, as liberdades tomadas pelo diretor tendem a ser mais bem aceitas nesse trecho – que, de fato, traz alguns dos momentos mais bonitos do filme.

A parte a seguir, “O Espírito das Leis”, fala de repressão estatal e legal e de conflitos humanos. É o trecho mais sanguinário, mas talvez o menos feliz, porque embora o conceito seja claro, a (não-)narrativa, que até então corria com fluidez, começa a apresentar desgastes; a fórmula da colagem começa a perder o efeito de maravilhamento e de fruição intelectual que o filme conseguia no começo. Mas resta espaço para trechos instigantes: “O terrorismo é reconhecido como uma das artes”, diz um provocativo recorte de jornal (se não me engano, já usado em algum outro filme do proprio Godard), e talvez com essa frase polêmica o diretor esteja querendo ressaltar a necessidade de a arte ter um poder de mudança social, ainda que violento.

O trecho final, “A Região Central”, é especificamente sobre o mundo árabe; a ideia é mostrar que a civilização humana nasceu ali e que ainda hoje é no Oriente Médio e adjacências que os maiores conflitos se prolongam. É uma região “central” em termos de importância geopolítica, sim, mas também em termos de compreensão da organização social humana. Godard faz uma narrativa complexa em off, sobre um suposto reino árabe, sobre a relação entre um rei e seu primo. Infelizmente, os ruídos do filme (de som e imagem) impedem que se compreenda exatamente o que a metáfora quer dizer. Mas as imagens são sempre expressivas e dão uma boa noção do paralelo entre mundo árabe e mundo humano que Godard pretende.

O filme termina de maneira anticlimática, com os créditos surgindo do nada, quando o filme parecia ainda ter muito o que mostrar, mas a história é arrematada mais adiante de maneira pungente: o último fotograma traz a famosa cena de “Le Plaisir”, de Max Ophuls, em que o dançarino mascarado cai na pista de dança. Traz a visão final do filme sobre a condição humana: a falibilidade dos homens, a capacidade de tentar sempre viver, de conseguir prazer, mas falhar em algum momento por conta de suas próprias limitações. “Le Livre d'Image”, ao que parece, é um filme muito mais compreensivo das falhas humanas que condenatório. É um dos filmes mais humanistas da carreira de Godard.

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Cannes 2018 - Crítica: "Cold War'

Cold War, de Pawel Pawlikovski

Joanna Kulig em cena de "Cold War"

O polonês Pawel Pawlikowski (de “Ida”) volta a fazer um filme em um preto e branco irrepreensível, desta vez com foco em uma história de amor na Polônia do pós-Segunda Guerra que é interrompida por conta de questões políticas.

Um pianista vai de vilarejo em vilarejo atrás de canções folclóricas para montar um espetáculo que mostre aos poloneses a riqueza cultural (e o sofrimento, por meio das tristes letras) dos camponeses do país após o trágico conflito do início dos anos 40. Ao selecionar os cantores que darão voz a essas músicas, o rapaz apaixona-se pela bela Zula, que além de linda e afinada, é cheia de atitude. Quando investigam o passado da moça, descobrem que ela certa vez esfaqueou o próprio pai. “Ele um dia me ‘confundiu’ com a minha mãe, então lhe finquei a faca pra ele entender a diferença”, ela se explica, na melhor frase de um filme desta edição de Cannes.

Os dois iniciam um romance, mas a intervenção do Estado polonês nos espetáculos (o governo alinhado à URSS deseja usar o poder de comunicação do show para disseminar propaganda stalinista) faz com que o relacionamento seja abreviado. O rapaz, que se deixa levar pela sedução capitalista, foge da Polônia e vai tentar a vida na França; a moça, que deveria ir com ele, não consegue escapar, ficando no país natal. Torna-se uma porta-voz das músicas “oficiais” polonesas, em performances pelo Leste Europeu.

O tempo passa, e na Europa ocidental, o músico se torna um zé-ninguém, mas pelo menos um homem livre; já ela, no mundo comunista, é uma estrela, mas sempre atrelada aos interesses dos governantes de seu país. Os dois se reencontram diversas vezes com o passar dos anos, em localidades europeias diferentes. Mas embora sempre cedam à tentação e voltem a se amar, o romance jamais se torna duradouro, mesmo quando conseguem morar juntos novamente. O filme nos diz que as confusões sociais do pós-Guerra na Polônia afetaram tanto a cabeça da população que ela jamais consegue controlar a própria vida pessoal sem sentir as marcas das questões políticas. Os poloneses se tornaram pessoas fadadas à falta de perspectiva, ao desencantamento.

A opção por um filme estonteante em termos estéticos não combina muito com o inferno mental dos personagens. Mas os enquadramentos milimetricamente concebidos para serem belos são tão bem-sucedidos que, apesar de conferirem uma certa frieza ao longa, despertam no espectador o ímpeto por ignorar esse desacerto estético em nome do simples prazer da fruição das esplêndidas imagens.

A jovem atriz Joanna Kulig, dependendo do ângulo em que é filmada, pode lembrar tanto Jennifer Lawrence quanto Liv Ullmann ou até Gena Rowlands, e isso já é mais do que suficiente para dar uma ideia do quanto é magnética. E como é talentosa e também canta muito bem, é uma grande aposta, talvez até para ir a Hollywood.


“Cold War” é um filme com muito mais virtudes que defeitos, mas há uma questão incômoda que se sobrepõe: como todo cineasta engajado do leste europeu, Pawlikowski tende a pintar um quadro excessivamente negativo de seu país nos tempos de domínio comunista. É uma denúncia completamente justificável, até porque da maneira como esses países experimentaram o comunismo foi, no mínimo, traumatizante – para não dizer catastrófica. Mas a questão é que a visão que o filme tem do mundo capitalista, ainda que pretensamente também devesse ter uma intenção crítica, é bem mais branda, até idealizada, na comparação com a da Polônia de anos 40 e 50. O diretor, em sua busca por demonizar o regime comunista, muitas vezes parece estar fazendo uma involuntária ode ao capitalismo.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Cannes 2018 - Crítica: "Leto" [Verão]

Leto, de Kirill Serebrennikov


O elenco do adolescente "Leto [Summer]"
O que esperar da Rússia em um festival de cinema internacional que não seja uma visão altamente crítica da realidade social no país, sobretudo causada pelos rígidos governos comunistas? Pois essa (compreensível) obsessão russa aparece até nas comédias musicais produzidas no país, como "Leto / Summer" [Verão], de Kirill Serebrennikov. Passada no início dos anos 1980, na cena rock de Leningrado, é um longa jovial, cheio de humor e lirismo, mas que não deixa de dar seus coices nos excessos de vigilância e violência do governo soviético da época.

Logo nos primeiros minutos, o espectador é apresentado ao tipo de concertos de rock que a juventude russa do período podia frequentar: a plateia tinha que permanecer sentada, no máximo mexendo um pouco as mãos e os pés; se alguém se levantasse ou se exaltasse um pouco mais, seguranças surgiam para conter os menos disciplinados. E antes de pisar no palco, obviamente os músicos precisavam submeter suas canções ao aval da proprietária da casa de show (durante o espetáculo, ela se encarregava de "explicar", sempre com muito tato, as letras mais ousadas para algum censor de cara amarrada, que a qualquer momento poderia cancelar o concerto).

Embora fale sobre o contraste entre o espírito de pessoas jovens e uma sociedade altamente repressora, o foco de "Leto" é no amadurecimento afetivo dos personagens. O centro do filme é a relação entre um roqueiro já consagrado que apadrinha um músico promissor – o conflito se estabelece quando o rapaz se interessa pela namorada do veterano (e é correspondido). Surge ali um triângulo amoroso.

O filme tem números musicais vibrantes, embora nem sempre exatamente bem lapidados. O primeiro deles é o melhor: surge de maneira inusitada, em uma viagem de trem – os personagens começam a cantar "Psycho Killer", dos Talking Heads, enquanto a polícia soviética espanca um dos jovens de comportamento rebelde. O trecho regata a melhor tradição musical americana do número escapista, porém a moderniza com intervenções de computação gráfica e toda uma atitude que mescla irreverência punk e uma liberdade pós-anos 90. É o ápice do filme.

Mas os números seguintes nunca causam o mesmo entusiasmo (um deles, com "Perfect Day", de Lou Reed, que pretende falar da beleza das coisas simples, é inserido na trama de forma desastrada e pouco refletida; beira o constrangedor). E o filme, embora sempre cativante pelo espírito livre e sonhador dos jovens protagonistas, não tem muito mais a oferecer ao longo da projeção do que "carisma". Tem, também, algumas boas canções pop russas, mas elas serviriam melhor como fundo sonoro para uma festa animada na casa de amigos; como as quase protagonistas que acabam se tornando (já que as personagens de carne e osso não ganham um desenvolvimento substancial), porém, são incapazes de segurar o filme.

Talvez os adolescentes se identifiquem em vários níveis com o que verão na tela e o longa se torne de imediato um cult juvenil. O que seria compreensível, já que é a eles que o material parece primordialmente destinado.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Cannes 2018 - Crítica: "Donbass"

Donbass, de Sergei Loznitsa
Cena do filme "Donbass", da mostra Un Certain Regard

Sergei Loznitsa é um diretor de talento excepcional e parece saber disso. Mas é o tipo de artista a quem a autoconfiança não é muito saudável. Porque de filme a filme (ao menos os de ficção, porque sua brilhante obra documental segue outro princípio), tem enveredado por um caminho cada vez mais discutível, muito certo de que, ao intensificar sua denúncia corrosiva da vida pós-soviética na Rússia e Ucrânia, está fazendo um grande bem à humanidade.

Seu leitmotiv tem sido mostrar nem tanto as contradições, mas sobretudo a herança nefasta do comunismo para esses países, o que se pode notar tanto na imutável estrutura burocrática estatal, jamais superada, quanto na assimilação da violência como elemento naturalizado, até cultural, nas relações humanas da cultura russa/eslava atual.

Em seu primeiro longa, o extraordinário "Minha Felicidade", isso já se fazia notar com força, assim como no seu trabalho mais recente, "A Gentle Creature", que ele mostrou ano passado em competição em Cannes. Neste último, um tanto irregular, ele não dava trégua a sua protagonista: era uma personagem que sofria diretamente todas as mazelas do pós-comunismo – e permanecia calada, aceitando cada desgraça como se estivesse predestinada àquilo. Mas ali, apesar de tudo, ficava mais ou menos marcada uma certa condescendência do diretor com a sua personagem, que era claramente uma vítima; ao seu modo, o filme se solidarizava com ela, como que em uma piedosa empatia pelo horror ao qual ela não podia escapar.

Mas em "Donbass", o filme apresentado por Loznitsa hoje em Cannes (na mostra Un Certain Regard), não há mais o menor traço de comiseração. O diretor parece ter chegado a um ponto em sua carreira que se encantou a tal nível com a própria capacidade de ser combativo, crítico com o modo de vida em seu país, que ficou insensível para a tragédia alheia em si. Seu cinema perdeu por completo o último resquício de humanismo e se tornou altamente sádico, para não dizer cruel. Ao que tudo indica, Loznitsa agora tem prazer em encenar o sofrimento humano.

A história se passa na região de Donbass, Ucrânia, onde o caos social impera, com grupos de nazistas ameaçando o estado. Em reação a isso (usando como mera desculpa para se fortalecer?), o governo investe na força bruta e na retomada do controle social nos moldes de como provavelmente funcionava na era stalinista. Ideologicamente, é um filme confuso; a ideia é claramente mostrar toda sua aversão à herança soviética e em como ela ainda marca as decisões sócio-políticas na região. Mas em vários instantes dá a entender que até o nazismo era preferível ao que se tem hoje em Donbass – o que, convenhamos, não é lá uma base de comparação das mais sensatas.

O filme é de uma violência atroz, por vezes cortada por cenas com um pé no surrealismo que se pretendem um alivio ao peso insustentável das sequências mais truculentas (mas que, em seu humor estilizado, quase expressionista, são praticamente tão amedrontadoras quanto as de violência física). "Donbass" parece sempre ir longe demais, em tudo, mas isso se percebe em especial em uma sequência abjeta envolvendo um homem que desafiou o governo e é exposto em praça pública. Atado a uma placa dizendo algo como "Voluntário para ser fuzilado", o sujeito é entregue à fúria de uma população pouco esclarecida e despolitizada, que o violenta, humilha e tortura, em um linchamento que todos nós sabemos que é bem possível de acontecer no mundo atual (e não só na Rússia e Ucrânia).

Bastaria um minuto de cena – dois no máximo – para o diretor transmitir a ideia do quanto a atitude dos justiceiros pode ser execrável, mas Loznitsa prolonga a sequência por tanto tempo que ultrapassa qualquer limite do humanisticamente tolerável. Nota-se ali o quanto a segurança do cineasta em seus próprios métodos de mostrar em sua "arte" a miséria do mundo é capaz de cegá-lo, afastando-o de sua intenção critica original; o diretor e seu filme se tornam tão violentos quanto quem ele pretende recriminar.

Que tipo de denúncia de catástrofe social é essa, que investe com tanta insistência no sofrimento alheio, de maneira quase voyeuse? Loznitsa pode ser até um humanista em essência (e muitos de seus documentários e curtas atestam isso), mas seu cinema de ficção toma em "Donbass" um rumo completamente oposto. Apesar de uma realização cinematográfica notável (como se Loznitsa fosse uma Leni Riefenstahl bem intencionada), espera-se que não seja o início de um perigoso caminho sem volta.


Cannes 2018 - Crítica: Todos já Sabem [Everybody knows]

Todos já sabem [Everybody knows], de Asghar Farhadi


Penélope Cruz e Javier Bardem em "Todos lo Saben"

*texto originalmente publicado durante o festival de Cannes de 2018

O iraniano Asghar Farhadi tem um notável apreço por dilemas morais, mas com seu filme mais recente, "Todos lo Saben", ele parece ter desenvolvido uma real obsessão nesse sentido. Depois de uma primeira meia hora em que nada de muito relevante acontece (a habitual preparação de terreno do diretor para o que realmente interessa), o filme de repente se dedica a uma interminável rede de revelações de segredos que se sucedem, colocando os personagens em situações que testam seus os limites morais, cada uma parecendo criada para ser mais intensa que a imediatamente anterior.

Em sua primeira produção espanhola, que Cannes escolheu para inaugurar sua 71a edição, Farhadi conta a história do sequestro de uma adolescente, com foco na aflição à qual são submetidos os pais da menina (Penélope Cruz e Ricardo Darín) e, por motivos inusitados, um amigo do casal (Javier Bardem). A direção é eficaz, e por um tempo se pode acompanhar com grande interesse a teia de acontecimentos que a mente algo mirabolante de Farhadi preparou para o público, com instantes de thriller de alta qualidade.

Mas o filme peca pelo excesso: não demora muito até o exagero no melodrama pesado (acentuado pelo ambiente e língua espanhóis, que atuam contra o filme) se sobrepor à complexidade moral pretendida pelas situações; o longa, de repente, se torna uma espécie de telenovela latino-americana só que em estética mais limpa e que se dedica a ser profunda e complexa (em um formato em que profundidade e complexidade são quase que por definição inatingíveis plenamente).

Torna-se difícil de levar o filme completamente a sério, embora seja claro que Farhadi não esteja brincando. Talvez ele apenas não tenha o hábito de assistir aos dramalhões ocidentais, e por isso seu filme transite pelo gênero de maneira tão destemida, como que sem a menor preocupação em soar ridículo. Infelizmente, porém, várias vezes ultrapassa os limites do drama honesto e fica propenso a um rocambolesco vale de lágrimas.

Cruz e Bardem têm boas cenas, e Ricardo Darín até se sai bem, apesar de em geral desperdiçado. Na primeira parte do filme, quando "nada" acontece, a câmera de Farhadi volta e meia se atém a detalhes curiosos, que posteriormente não conseguem sair da sombra das reviravoltas que a mão pesada do roteiro impõem ao filme. Sim: há dispensáveis metáforas envolvendo pombos (nas artes, haveria algum outro animal mais desgastado em termos de uso simbólico? Difícil pensar em algum), mas há um certo frescor na maneira como o cineasta observa certas situações. Por exemplo: é refinada a forma como, em uma festa de casamento, quando todos se divertem, uma criança e um idoso são apresentados como pessoas à margem; na nossa sociedade, quem dá as cartas são mesmo os adultos/jovens e suas pulsões, desejos e interesses.

Mas depois, embora o longa introduza alguns promissores dilemas éticas, resvala para o melodrama não-intencional. Mas não é um filme tão descartável como a frieza na sessão de estreia faz parecer que seja. É apenas um longa que toma caminhos equivocados e que, por isso, não desenvolve a contento suas possibilidades, mas não se pode negar que há um rico material bruto ali (explicar muito a trama incorreria em desagradáveis spoilers). Embora no todo não seja um filme nada impecável, em algumas partes é a melhor coisa que Farhadi já fez em sua supervalorizada carreira.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Crítica: "Deixe a Luz do Sol Entrar"

(Un Beau Soleil Intérieur, 2017), de Claire Denis

Juliette Binoche em "Deixe a Luz do Sol Entrar"

"Deixe a Luz do Sol Entrar" traz Juliette Binoche como Isabelle, uma cinquentona cuja vida sentimental é um fracasso. O profissional vai bem, obrigado – ela é uma artista plástica sem problemas financeiros e, ao que parece, com algum prestígio. Na vida familiar, também vai tudo certo – isso nos termos do filme, mas muitas pessoas não teriam a mesma opinião: divorciada, Isabelle tem uma filha de 10 anos que sofre com sua ausência – a indiferença (do filme e da mãe) pela garota é tanta que a existência da pequena só é sugerida ao espectador depois de quase uma hora de projeção. Mas, no filme de Claire Denis, isso não é nada de importante. Isabelle tem dramas maiores para superar.  

Sua grande tragédia: a falta de uma vida amorosa que a preencha. E como já não é tão jovem, talvez seu tempo para amar esteja acabando, o que a desespera. Ela chora (algumas vezes) de tristeza porque não consegue se acertar com nenhum de seus parceiros sexuais – quando há afinidade na cama, as conversas (ou silêncios) com o companheiro nunca saem como ela gostaria.

Entende-se com certa facilidade porque nenhum romance com Isabelle engrena: seus pretendentes estão longe de ser pessoas apaixonantes. O dedo podre da artista plástica elege alguns dos piores companheiros possíveis. Um deles é um verdadeiro ogro machista; outro, um ator que fala mais de seus dramas do que uma mulher gostaria de ouvir; há ainda o próprio ex-marido reclamão, um amigo ciumento especialista em denegrir os parceiros de Isabelle, e um sujeito charmoso mas de nível intelectual bem mais baixo que o dela.

O problema é que a própria Isabelle tampouco é muito menos insuportável: já passou dos 50, mas age muitas vezes como uma trintona – isso quando não faz birra de adolescente. É afeita a crises de choro, tediosas discussões de relacionamento e ainda age com certa histeria diante de alguns contratempos. Ou seja: tem vários dos cacoetes que não exatamente contribuem para reverter o estigma machista acerca da mulher enquanto "neurótica", bipolar ou afetivamente instável. (Na verdade, a opção por uma mulher não heroica, embora questionável em termos de opção empoderadora, é um acerto dramatúrgico; o filme cairia no lugar-comum do feminismo fácil se a apresentasse como um ser muito superior aos demais).

Mas a moral da história não é defender esse tipo de comportamento-clichê ou rebaixar a mulher – ao contrário. Claire Denis pretende que seu filme seja libertador, ainda que em seu estilo politizado em meio-tom; quer mostrar que a obsessão por buscar a cara-metade é uma prisão, e que ninguém (homem, mas sobretudo mulher) precisa necessariamente passar a vida atrás disso para ser feliz.

Na parte final, Isabelle se encontra com um sensitivo (Gérard Depardieu, a melhor coisa do filme), que também é meio terapeuta, que logo lhe dá uma simples lição: ela precisa se abrir. Ou como ele diz: ficar "open" para o que a vida tem a lhe oferecer. Ou ainda, como diz o título nacional, "deixar a luz do sol entrar" em sua vida. Sem se pressionar ou exigir demais de si.

Ele está errado? Nem um pouco. Mas aí surge a grande questão: precisava realmente fazer um filme de mais de uma hora e meia para que a personagem chegasse a essa brilhante conclusão? Se ela ainda passasse por esse processo de conscientização por conta própria, o filme até se justificaria, mas cá entre nós: precisar recorrer à ajuda de um sensitivo? (e homem, ainda por cima)? Pode até condizer com o perfil pós-adolescente da protagonista, mas não com o da pretensão libertadora e feminista que o filme provavelmente tinha no projeto.

Denis, não há dúvida, mirou em um filme singelo, não panfletário, para falar de poder feminino. Fez isso por meio de uma falsa comédia romântica, algo desformatada e sem grande arrojo visual (o que não a impede de alguns rebuscamentos: há uma boa e reveladora cena em que Binoche conversa com uma amiga sobre sexo em um banheiro de restaurante; Por outro lado, no começo, em um bar, a câmera se move em cansativo ziguezague durante uma conversa entre Binoche e Xavier Beauvois; são tomadas que não levam a nada e sugerem as afetações de um aluno recém-saído de um curso de cinema).

O filme, em sua leveza proposital, é rasteiro demais para atingir suas honráveis intenções. Parece um drama de relacionamentos banal, só que com mais palavrório que de hábito e com discussões burguesas bastante aborrecidas sobre visões incompatíveis do amor. E que se encerra como uma tentativa de soar como empoderante, mas que não passa da mais corriqueira autoajuda.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Crítica: "Aniquilação"

(Annihilation, 2018), de Alex Garland
Jennifer Jason Leigh e Natalie Portman em "Aniquilação"
Portentoso ensaio sobre mentes culpadas e instinto autodestrutivo, "Aniquilação" é uma (quase sempre) eficiente ficção científica com pretensões existencialistas. No nome original em inglês, Annihilation, fica um pouco mais fácil perceber que a palavra-título tem o mesmo o radical (‘nihil’) de ‘nihilism’ (niilismo), o que diz muito sobre o cerne deste segundo longa de Alex Garland. Os personagens são todos meio assim, niilistas, sem grandes pretensões ou expectativas e em busca de autoanulação. Embrenham-se em desafios como forma de se punir por algum problema pessoal ("O ser humano está sempre se destruindo", diz a psicóloga do longa, com ares metafísicos que seriam mais apropriados a uma filósofa). Até os seres extraterrestres, embora sejam uma alegoria dos humanos, não têm maiores ambições e estão meio perdidos na Terra, apenas repetindo estruturas e comportamentos ao seu redor.

A trama gira em torno de uma expedição a um local isolado, mantido em segredo por suspeitas de estar dominado por forças sobrenaturais, talvez alienígenas. Mas como o roteiro é muito preocupado em ter alguma substância, para cada percalço fantasioso enfrentado no caminho, são recitadas ao menos umas três metáforas científicas sobre a condição humana – justificadas na trama pelo fato de a protagonista ser uma bióloga. Mas como ela precisa de uma hora para a outra bancar a heroína em perigosos desafios físicos, o script se encarregou também de torná-la também uma ex-soldado do Exército. Os autores (na verdade, apenas Garland é creditado como roteirista), como se percebe, fizeram o dever de casa nos (provavelmente vários) laboratórios de roteiro.


Os roteiristas são tão aplicados que, além de uma questão "profunda" sobre a humanidade, deram todo um ar de "calor do momento" ao filme ao optar por uma trama empoderadora de mulheres. Após repetidos fracassos de decifrar o que se passa no tal local isolado, equipes masculinas foram substituídas por um grupo de cinco mulheres (com representantes de diferentes etnias, idades e preferências sexuais) que, enfim!, conseguem desvendar o mistério.


As exigências identitárias modernas de representatividade são o que de mais revolucionário aconteceu nas artes nos últimos cinco anos, e é uma grande alegria que tenha sido assim. Para além da questão da representação em si, existe um certo frescor em ver um grupo feminino enfrentando monstros e os percalços mais diversos em um ambiente violento, e isso é muito bem-vindo. Mas há um efeito colateral meio desagradável nisso tudo: há sempre uma artificialidade meio constrangedora nos filmes que se dedicam com muito afinco a atender a todas as exigências modernas; como sempre são calculados demais para não incorrerem em equívocos que possam desagradar certos grupos, há uma terrível falta de espontaneidade na maioria dessas produções. E como se "Aniquilação" já não parecesse suficientemente o fruto de várias oficinas de roteiro, as questões empoderantes só agravam essa sensação.

Menos mal, no entanto – ao menos a causa é boa. E é preciso reconhecer que, em certos instantes, as mulheres de "Aniquilação" formam um bom time. Sim: as atrizes menos conhecidas pegaram os papeis piores, como sempre, mas as duas estrelas femininas justificam sua falas mais trabalhadas. Natalie Portman (a bióloga/soldada - e praticamente uma superheroína) tem a habilidade de se sair com a mesma desenvoltura tanto em cenas intimistas quanto nas que envolvem dinamismo; ela se mostra a atriz ideal para o papel. E Jennifer Jason Leigh, como a psicóloga amalucada (mas sempre seríssima) do bando, é muito engraçada quando, na expedição, pontua os resmungos das colegas com observações inusitadamente pragmáticas; ditas com sua voz elástica e característica, as falas dão uma comicidade (provavelmente involuntária) saudável ao filme, quando este começa a ficar depressivo demais em meio a tanto "niilismo" imposto pelos script doctors.  

Entre os homens, Oscar Isaac, como o marido de Portman dado como morto que reaparece subitamente, surge poucas vezes na tela. Melhor assim: o filme quase hiberna quando ele entra em cena. É um ator de recursos, mas que precisa de um tipo específico de personagem para mostrar do que é capaz. Ele sempre se sai bem em papeis ativos, dinâmicos, até próximos do histriônico, que é quando pode usar sua energia e os olhos vivazes de uma maneira proveitosa, eficiente. Mas quando precisa interpretar um sujeito retraído ou moribundo (como no filme), o resultado pode beirar o desastre. (O olhar "intenso" se converte em canastrice). Também nesse ponto, a opção do filme por protagonistas mulheres foi um acerto.

Por fim, vale dizer que, em termos visuais, o longa custa um pouco a se impor, mas termina bastante satisfatório. Enquanto as moças desbravam a área tomada por ETs, a imaginação dos desenhistas de produção parece meio tímida, sem ousadia. Só bem mais perto do fim, eles liberam realmente a criatividade (embora a única parte de fato visualmente deslumbrante sejam os créditos finais). Os efeitos especiais, ao contrário, são desde o início impecáveis, mas talvez seja porque o filme só poderá ser visto em telas reduzidas. E "Aniquilação", se apesar do esforço não traz exatamente nenhum recado que vai a mudar a vida de ninguém, ao menos nos apresenta uma verdade positiva sobre os filmes nascidos especificamente para o streaming: na tela reduzida de computador, jamais vamos reparar nas falhas de efeitos especiais que tantas vezes são gritantes quando assistimos a um filme na tela grande.





quarta-feira, 14 de março de 2018

Sylvio Back, ruptura com a História

O texto a seguir faz parte de "Documentário Brasileiro: 100 Filmes Essenciais" (2017, ed. Letramento), livro da Abraccine com ensaios de vários críticos sobre nossos maiores filmes documentais e diretores da área. Dois são de minha autoria: uma crítica ao filme "Cinema Novo", de Eryk Rocha, e uma análise da obra de Sylvio Back, esta última reproduzida abaixo.

Paulo Leminski em cena de "Vida e Sangue de Polaco", de Sylvio Back

Segundo o teórico Marc Ferro, os filmes, enquanto contribuição para as narrativas históricas, muitas vezes têm o poder de funcionar antes como elementos formadores de uma "contra-história" do que propriamente de peças complementares para aquela tida como "oficial". É sempre possível, na tela, apresentar versões novas, inéditas – ou antes impensáveis –, sobre fatos que já dávamos como incontestes, de tão cristalizados que estavam em nosso imaginário pelo poder impositivo das narrativas escritas ou mesmo orais.

Em seu cinema, Sylvio Back usa a propensão natural do cinema à transgressão histórica e procura ir além: seus filmes costumam trazer um conteúdo expressamente de ruptura com a História com "h" maiúsculo.

É assim em sua obra ficcional, que tem dois casos icônicos: "A Guerra dos Pelados" (1971), que traz nova luz ao episódio do Contestado, e "Aleluia, Gretchen" (1976), sobre imigrantes nazistas no Sul do Brasil (tema de grande interesse cinematográfico, mas para o qual os cineastas sulistas até então preferiam fazer vistas grossas).

Em seus documentários, essa marca se mostra com ainda mais vigor. Prolífico e inquieto, o cineasta catarinense já havia filmado muito nos anos 1960 e 1970 – entre curtas, médias, vídeos comerciais e especiais de TV –, até estrear no documentário de longa-metragem em 1980. "Revolução de 30" revisitava o período histórico que dá nome ao filme, a partir de uma colagem de um imponente material de arquivo, mostrando um painel sobre o Brasil pré-Getulista até então ignorado ou pouco conhecido pelos brasileiros. Especialmente inventivo no contraste entre o que se fala e o que se mostra, o longa muitas vezes convida à reflexão pela via do estranhamento.

Se o filme perdeu impacto desde o lançamento, o longa que o sucedeu ainda hoje mantém grande força: "República Guarani" (1982), sobre as Missões na América do Sul. Desde o desconcertante início, com um triste canto indígena que remete à dor que foi o processo de aculturação ao qual os nativos do continente foram submetidos após a chegada europeia, o longa revela detalhes sobre a vida nas missões que muitos livros de História da época optavam por ocultar.

Seu longa seguinte, "Guerra do Brasil" (1987), já trazia no título o espírito contestador: atribuía ao nosso país parte expressiva da culpa do evento que, por estas terras, temos a bazófia de chamar de Guerra do Paraguai. A narrativa é envolvente, rica em detalhes e no humor subversivo; está entre os pontos altos do cineasta. Mesmo que estudos posteriores tenham trazido algumas "revisões" à revisão histórica proposta por Back, o longa permanece importante. Aliás, convém recorrer a outro conceito de Marc Ferro: um filme fala muito da época em que foi feito; Guerra do Brasil traz na entranha a essência da produção nacional dos anos pós-Abertura – a sede por desconstruir tudo o que por décadas havia sido imposto (pelos militares) como verdade absoluta. É um rico documento tanto sobre a Guerra do Paraguai quanto sobre o Brasil de meados dos anos 1980.

A comicidade cáustica, porém, é usada de forma desmedida em "Rádio Auriverde" (1990), que vai longe demais na ressignificação da campanha brasileira na Segunda Guerra. Ninguém duvida do exagero de certas narrativas heroicas dos pracinhas no conflito, mas a insistência do filme na zombaria excessiva o torna cansativo – e, às vezes, descortês. Mas, felizmente, Back readquiriu o controle sobre o uso do próprio humor corrosivo em seus documentários posteriores – como "Yndio do Brasil" (1995), que retoma a questão indígena de modo ao mesmo tempo divertido e comovente.

Um belo filme sobre Graciliano Ramos – "O Universo Graciliano" (2013) – lembra que a obra de Back é extensa demais para ficar relegada ao aspecto "histórico". Seu cinema também tem, por exemplo, grande importância como registro de uma cultura regional: quem como ele falou tanto – com paixão e virulência – sobre o Sul do país? Em meio à sua profícua produção de curtas e médias, reluz um filme essencial: "Vida e Sangue de Polaco" (1982), saborosa visão sobre a imigração polonesa ao Brasil. E o tema de "Guerra dos Pelados" retorna décadas depois em forma de documentário, em Contestado: restos mortais (2010), que traz como novidade médiuns ajudando a narrar o conflito catarinense – ou nem tão novidade assim: em 1984, ele já havia usado o mesmo procedimento em "O Auto-Retrato de Bakun", sobre o pintor paranaense Miguel Bakun.

O curta ecológico "Sete Quedas" (1980) merece um estudo de como a música (de Domenico Zipoli) pode ampliar o lirismo de belas imagens – e do quanto a água é algo cinematográfico. Por fim, cabe destacar um curta de uma assombrosa (falsa) simplicidade: "A Babel da Luz" (1992), sobre a escritora Helena Kolody, que é também sobre performance, sobre poesia, sobre luz, sobre montagem. O cenário é basicamente um fundo neutro: há só Helena recitando – às vezes, atrás da melhor forma de dizer seus versos, o que Back sabiamente mantém no filme. Conseguir tanto com tão pouco não é para qualquer um.
Capa do livro "Documentário Brasileiro..."