(dir. Grace Passô, 2020)
É sempre meio
incômodo ouvir ou ler por aí que Grace Passô é a “Viola Davis brasileira”. Não
é: Viola é uma ótima atriz, mas Grace é melhor ainda. Maior que ela, em
atividade no mundo, dificilmente há alguém.
Em “República”, curta
que Passô protagoniza e dirige, ela surge grande parte do tempo atuando sozinha,
apenas falando ao celular. Cenas com monólogos de uma mulher ao telefone sempre
de alguma forma fazem pensar em “A Voz Humana”, texto de Jean Cocteau que é quase
um clichê na carreira das grandes atrizes que querem mostrar até que ponto seu
talento pode ir. No caso de “A Voz”, é uma conversa entre uma mulher e o amante
que acaba de deixá-la, mas embora “República” não tenha absolutamente nenhuma
conexão com o intimismo romântico e melodramático do universo do texto de
Cocteau, traz um desafio de mesma natureza à atriz principal: exige um grande
repertório de expressões faciais e uma prodigiosa capacidade de alternar nuances
em uma mesma face – e isso, sem um outro ator em cena para estimular as
reações, pode ser algo dificílimo.
O texto de Passô
é bem mais curto, e embora isso lhe traga a conveniência de ter menos falas
para memorizar, tem também um lado desvantajoso: o material-base lhe oferece
muito menos substrato para elaborar suas próprias emoções em cena. Ela precisa buscar
dentro de si o gatilho para suas reações.
“República” mostra uma mulher (sem nome, mas que
vamos chamar aqui de Grace) falando com duas pessoas ao celular em momentos
distintos: a primeira interlocutora é provavelmente uma amiga; a segunda é a mãe
da protagonista. O assunto é tão simples quanto inusitado: um xamã descobre que
“o Brasil é um sonho”. Nada da experiência que se tem do país é real; a
qualquer momento, seja lá quem estiver “sonhando” o Brasil pode acordar – e,
assim, tudo o que nós vivemos e conhecemos sobre nossa nação pode acabar, de
uma hora para a outra.
“Graças a Deus!”,
diz Grace para si mesma, ao descobrir a verdade, e ela fala isso com uma
expressão de alívio tão genuína que o espectador sente uma melancolia algo
invejosa por não poder dizer o mesmo. Afinal, quem está vivo e minimamente informado
no Brasil de 2020, em tempos em que uma pandemia imprevisível e um governo
desumano se unem para tornar a experiência brasileira uma catástrofe, não seria
ruim que tudo não passasse mesmo de um “sonho”. Que, aliás, é um termo que não faz
lá muita justiça a nossa realidade: teria sido melhor que Passô usasse a
palavra “pesadelo”.
O filme é
extremamente habilidoso como peça de suspense ou mesmo de horror. Há uma
atmosfera tenebrosa rondado a personagem, desde as cenas iniciais, abstratas de
um sonho, com som e imagens de fogo e uma cantiga que remete a algum culto africano (na
verdade, é um bullerengue colombiano, gênero musical cantado apenas por
mulheres). Grace está isolada em sua casa, e logo que acorda com o toque
do celular, o filme já aborda questões específicas da quarentena: em sua
primeira conversa, Grace acha estar diante de mais uma (das tantas) fake news
tipicamente pandêmicas. Do outro lado da linha, alguém lhe apresenta a
aparentemente estapafúrdia história do xamã.
“Você acredita
em tudo!”, Grace exclama impaciente a essa sua primeira interlocutora, chamada
Anastácia – talvez uma escolha de nome aleatória, mas provavelmente uma alusão à personagem histórica de mesmo nome: a mulher negra escravizada no Brasil do
século 18, que se tornou muito conhecida tanto pelo intenso sofrimento por
que passou quanto pela sua capacidade de operar milagres.
E a Anastácia do
filme opera um: é a mensageira daquilo que, hoje, uma parte gigantesca da
população brasileira adoraria ouvir: nada disso é real. Quando quem “sonha o
Brasil” acordar, tudo estará acabado – e seja qual for a realidade, há de ser
melhor do que isto daqui.
Grace olha pela
janela e vê o que parece ser um mendigo em surto, que passa enquanto cães não param
de latir. A cidade é decadente – os créditos informam que o curta foi filmado
na República São Paulo, e apesar de certamente se tratar da região da praça da
República, no centro paulistano, a falta de vírgula sugere uma brincadeira com
São Paulo ser em si quase que um país isolado. Tudo parece em ruínas, mas pela
barulheira tem-se a impressão de que, quando Grace está na janela, outras pessoas
já estavam cientes da visão do xamã – inclusive o mendigo –, e o país vive um
transe coletivo.
Essa atmosfera
de pesadelo tem algo de distópico e absurdista, mas é interrompida após o fim da
segunda conversa de Grace pelo telefone, quando ela olha para a câmera, e, ali
descobrimos que aquilo tudo era apenas uma filmagem. O curta entra em seu
segundo “ato”, agora com Grace trocando algumas palavras sobre a cena com sua
cinegrafista (a quem não vemos), que logo vai beber água na cozinha (com a
câmera ligada).
Na cozinha, a cinegrafista
apoia a câmera em uma mesa e vai se servir de água – o foco da lente fica por
alguns segundos sobre uma fotografia decorativa, que mostra os expressivos olhos
de uma mulher, que poderiam ser de Grace, mas que não conseguimos identificar
ao certo. Há algo de tão perturbador nesse olhar que, mesmo sem saber o motivo,
o espectador se sente confrontado por aquela mirada, talvez até envergonhado. É
um olhar a priori "neutro", mas que, naquele contexto, surge terrivelmente acusatório. Mas
do que nos acusa? Temos alguma culpa de o Brasil ser esse pesadelo que ele é?
Ou os olhos nos repreendem por apenas sermos inconvenientes testemunhas
de que o tal “o Brasil é um sonho” era somente... um sonho, um devaneio encenado
em um curta-metragem feito na quarentena?
O filme talvez
devesse terminar ali, mas ainda nos reserva um terceiro “ato” que ainda é mais
assombroso: de repente, o mendigo da rua aparece na casa de Grace e vocifera: “O
seu Brasil acabou, e o meu nunca existiu!”. A cinegrafista volta rapidamente para
a sala e, em vez de focar no mendigo, estranhamente registra a reação de Grace,
que está atônita: afinal, a mendiga é ela mesma. Em breve, seu semblante demonstrará um sentimento próximo ao
de uma grande culpa – ainda mais intensa que a nossa, quando diante do olhar inquisitivo
da mulher na foto da cozinha.
É um terceiro
ato poderosíssimo em termos emocionais, mas ainda antes de o filme terminar, a
encenação deixa sobre o espectador uma sensação residual de alguma coisa ali
não está muito certa – um after taste que indica que, essa terceira parte é, na verdade,
dispensável. Porque começa a ficar claro
que o filme pretende nos confrontar com o quanto somos egoístas: enquanto reclamamos
do nosso Brasil, no aconchego dos nossos lares, há gente que nem “Brasil”
possui para reclamar como seu. São os desvalidos, esquecidos, abandonados pela
sociedade – uma outra face de nós mesmos enquanto povo.
Mas existe algo
de decepcionantemente sensacionalista nesse desfecho do filme. Porque a
miséria, a mendicância e a subcidadania são desde sempre parte fundamental da
nossa insatisfação como o Brasil, com o nosso imaginário de “Brasil enquanto pesadelo”.
Aliás, é o centro dele: a desigualdade, a fome, a indigência são marcas
centrais do que tornam o nosso país uma nação de horror – a cena extrema de um
mendigo entrando na nossa casa e despejando isso na nossa cara é uma reiteração
excessiva e desnecessária dessa ideia.
Pelos termos do
filme, nosso ódio pelo Brasil se daria por questões fundamentalmente egoístas,
que nos tangem mais especialmente em nosso mundinho e nossa realidade burguesa.
Mas mesmo que fôssemos completamente insensíveis ao horror da miséria do país e
vivêssemos 100% encastelados na nossa realidade burguesa (como parte da nossa
elite certamente faz), o próprio filme já havia tratado algumas cenas antes de
nos colocar em contato com o mundo lá fora: ao olhar pela janela, Grace vê o
mendigo e os cães, além da rua enquanto um lugar tenebroso, assustador – o que por
si já reafirmava essa ideia de país que era melhor nunca nem ter existido. De modo
que o “susto” final, embora funcione em termos de suspense e impacto emocional,
é no fundo uma estratégia escandalosa de abalamento do espectador. Não
é que seja uma opção desonesta, mas certamente é um procedimento
desmedido – não tanto em termos fílmicos, porque é um clímax potente, típico de cinema de gênero, mas em termos de moral da história, de fato é um exagero dispensável.
Há alguns outros
equívocos menores que talvez tenham sido propositais para a criação de um universo de
dúvida e pavor, além de um jogo complexo de encenação, mas que poderiam ter sido evitados ou contornados com soluções mais interessantes: por exemplo, há um corte no
primeiro trecho, o que contradiz a ideia de que, a todo tempo, a conversa de
Grace pelo telefone era uma mesma tomada de um filme (a cena da janela não é
parte do primeiro plano-sequência, sugerindo que houve ali um trabalho de edição).
E não há uma explicação razoável para a moça que segura a câmera manter o
aparelho ligado enquanto ela vai à cozinha – a não ser a mais óbvia: uma
maneira de ampliar a tensão do espectador, enquanto aguarda o que está por
acontecer. Já no trecho final, quando a cinegrafista simplesmente some (e,
antes, sua câmera se volta exclusivamente para Grace, quando o esperado seria filmar o mendigo invasor), já é mais aceitável, porque ali tudo faz parte da mesma
atmosfera de suspense, de terror, de confusão. Talvez haja também alguma
reflexão sobre o fazer cinematográfico, o limite entre a representação, a cena e a realidade, mas é uma complexificação que nem sempre se justifica - o filme tem um tema forte demais (e minutagem de menos) para de fato abarcar essa proposta reflexiva com alguma proficiência.
Mas há pequenos detalhes que são muito sagazes e que dão um respiro a um filme tão intenso: durante a fala com a mãe, Grace dá um tom entre o realista e o cômico ao ensiná-la qual controle remoto precisa usar e que ela tem que pressionar a tecla “soúrce” – para além da comicidade em si, é uma maneira inteligente de revelar o lado classe média das personagens. Parece uma tolice, mas esse tipo de inserção espirituosa tira o ar de solenidade que muitos filmes infelizmente não conseguem evitar.
Não assisti ainda a “Vaga Carne”, média que marcou a estreia de Passô como diretora, mas aqui ela demonstra grande habilida. Já como atriz, qualquer outro comentário seria mera redundância. Viola Davis que me desculpe, mas, quando muito, ela é que é a Grace Passô americana.