terça-feira, 28 de novembro de 2017

Crítica: "Assassinato no Expresso do Oriente"

(Murder on the Orient Express, 2017), de Kenneth Branagh
O elenco estelar do longa de Kenneth Branagh

[[[Este texto contém SPOILERS]]]
A rigor, o grande crime de "Assassinato no Expresso do Oriente" é o misterioso homicídio de um passageiro de um célebre trem europeu. Mas no filme de Kenneth Branagh, há um delito ainda pior: a opção por adaptar uma obra de Agatha Christie quase sem humor e nem um pingo de leveza; o longa é espantosamente pesado e sisudo.

Branagh injeta análise social e existencialismo onde, no material original, prevalecia a futilidade e o prazer descompromissado. Quis trazer "densidade" e um elo com o mundo de 2017 ao que era expressamente datado e destinado ao prazer frívolo.

A intenção do diretor pode até ter sido boa, mas não o resultado. Porque o "Expresso do Oriente" de Branagh não é nem fútil para promover o tipo de excitação que os livros de Agatha Christie (e filmes que se baseiam neles) oferecem como poucos, mas também nem denso a ponto de o público tomar realmente o longa como uma obra ancorada na realidade moderna, com temas importantes devidamente desenvolvidos. Ao fim, parece apenas um drama exaustivo e um tanto deprimente, que tenta inserir questões atuais (e inexplicáveis cenas de ação e violência) para ganhar adesão dos espectadores de hoje, que não toleram mais filmes com valores e mesmo um ritmo da era pré-internet.

Agatha Christie era uma mestra do entretenimento, mas não era uma artista que esmiuçava grandes temas; o sucesso de sua literatura se deve ao prazer mais imediato, leve e simples da leitura sem maiores responsabilidades estéticas ou temáticas. De maneira indireta, porém, suas obras teciam, sim, comentários sociais, alguns até bastante refinados. Com uma ajudinha da psicologia deliciosamente botequinesca usada pelo detetive Hercule Poirot, Christie falava muito da natureza humana. Mas era sempre uma abordagem tangencial – e arejada, cheia de bom humor. Mesmo as intrigas bem arquitetadas e as soluções algo mirabolantes de alguns crimes jamais eram criadas para serem levadas tão a sério; os próprios métodos "infalíveis" de Poirot são um produto claramente restrito ao mundo da ficção. Assim, querer tornar alguma obra de Christie em uma denúncia social solene e politizada é basicamente não compreender nada do sentido de sua literatura. Como, parece, foi o caso de Branagh.

A graça de adaptar Christie para o cinema – especialmente uma trama que se passa em um trem altamente luxuoso, na década de 30 – é explorar as possibilidades que isso permite, sobretudo em termos de abusar do saudosismo e de recorrer sem amarras a um charme antiquado, fora de moda. Em 1974, Sidney Lumet adaptou a mesma trama e investiu todas as fichas nisso. Foi um acerto apenas parcial: talvez o livro não fosse tão cinematográfico quanto se pensava. Seu "Expresso do Oriente" não era em hipótese alguma um bom filme (é um dos mais fracos de sua carreira – o que não quer dizer que não tenha qualidades, já que Lumet foi um diretor de excepcional talento). Tinha, sim, várias boas cenas isoladas, todas de uma elegância pomposa à moda antiga, com algumas falas bem divertidas ditas por atores extraordinários. No todo, porém, o filme nunca funcionava muito bem – era estranhamente cansativo, quase tão emperrado quanto o trem do título em meio à neve balcânica , apesar de ter nomes como Ingrid Bergman, Vanessa Redgrave, Lauren Bacall, Rachel Roberts, Wendy Hiller, John Gielgud, Sean Connery, Albert Finney  e muitos outros (o elenco era um nocaute!).

Ok: Branagh também tem à disposição alguns astros, como Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz, Johnny Depp e Judi Dench, mas ao contrário de Lumet, ele subutiliza seu elenco estelar. As melhores cenas, Branagh malandramente reserva a si mesmo. Como grande ator que é, ele consegue segurar a atenção, mas surge a questão: qual o sentido de ter tantos astros em um filme se sequer uma grande cena é ofertada a qualquer um deles? Michelle Pfeiffer tem um pouquinho mais do que o resto e por isso ela é a melhor do elenco (é mais bem-sucedida, inclusive, que Lauren Bacall na primeira versão, que era apenas uma presença visual e uma alusão viva ao cinema de outra era, mas nunca conseguia fazer sua falastrona senhora Hubbard "acontecer" de fato). Mas, no todo, o "Assassinato no Expresso do Oriente" de Branagh é um assombroso desperdício de altos cachês.


Michelle Pfeiffer em cena do filme
O filme de Lumet era pura perfumaria; reservava algumas big scenes aos grandes atores e trazia alguns momentos saborosos de alto glamour. A entrada de cada personagem em cena, como a chegada deles ao trem, por exemplo, era um espetáculo por si só (Branagh quase não perde tempo com isso, e se seu filme é por vezes tão pouco sedutor é por conta de incompreensíveis negligências como essa). Mas bem no final, o longa de 1974 trazia um elemento curioso de análise social: em meio às plumas e paetês, havia uma certa denúncia do quanto as classes dominantes sempre acabam triunfando. Ok, o mais atroz dos vilões era punido, mas o crime coletivo era mostrado antes como uma série de pecadilhos burgueses, graves mas ocorridos "por uma boa causa", para corrigir um mal maior; não valeriam a pena ser sacrificados em nome da revelação da "verdade". Todos eram absolvidos, como tantas vezes equívocos menores o são, quando feitos com um motivo "compreensível". (Nesse desfecho, não havia um sentido de linchamento de um indivíduo que um diretor de mão mais pesada poderia fazer surgir.)

No contexto mais socialmente inquieto do filme de Branagh, a revelação final do crime praticado por vários personagens ganha um significado completamente distinto – talvez a contragosto do diretor. Embora haja ali a tomada de consciência por Poirot de que nem tudo é completamente "bom" ou "mau", a moral da história vai no sentido inverso: subentende-se que há, sim, um Mal, e que ele precisa ser combatido, nem que usando as mesmas táticas que ele utiliza. Poirot compreende que, ao fazê-lo, as pessoas tidas como "do Bem" de certo modo se assemelham ao inimigo, passando a integrar algum lugar entre os dois extremos. Mas algumas vezes é preciso dar de ombros: certas situações simplesmente não podem ser resolvidas de outra maneira. 

Do que Branagh está falando exatamente quando inclui um personagem que personifica o Mal? Provavelmente seja uma alegoria a Trump, aos extremismos, ao pensamento de direita que renasce hoje com força. Mas se for isso mesmo, será que ele de fato defende que todos nós nos unamos e façamos uso das táticas baixas desses mesmos inimigos para combatê-los? (ou seja: sugere uma justiça com as próprias mãos, quando as leis não se encarregam de punir quem deveria?). Se for isso, é uma conclusão perigosa – não estaria tão longe da apologia ao linchamento que a versão de Lumet tão elegantemente soube evitar. Não era o filme mais adequado para sugestões tão graves, que demandariam mais desenvolvimento.  

Ou será que leituras como essa são apenas fruto de um descontrole do filme, que tomou vias tão austeras que inserem o espectador em um clima pesado e nebuloso, a ponto de não ver possibilidades de interpretação em um nível mais prosaico, como o da versão de 1974? Fica realmente difícil ter certeza; talvez o filme de Branagh, no fundo, nem tivesse tantas pretensões; os rumos que tomou, no entanto, fazem crer que sim.

Todo o filme de Branagh se ancora em questões impactantes de 2017; usa as várias nacionalidades dos passageiros para refletir sobre xenofobia e intolerância. O diretor até muda alguns personagens, optando por incluir, por exemplo, um negro (os que exigem a tão falada "representatividade" no cinema vão adorar, mas é uma aberração em termos de verossimilhança histórica; um ambiente elitista como o Orient Express dificilmente comportaria afrodescendentes). Há também um professor alemão de tendências nazistas (Willem Dafoe, cujo imenso talento é jogado fora em cenas decepcionantes) e a troca de nacionalidade da missionária religiosa, que no primeiro filme era sueca e agora se tornou espanhola (a não ser pelo fato de justificar o sotaque de Penélope Cruz, a mudança não leva a lugar nenhum).

O Poirot de Branagh começa o filme algo clownesco – seu bigode exagerado é um adereço quase circense. Ele é um sujeito altamente perfeccionista, cujos TOCs o fazem sofrer em todos os campos da vida, menos na hora de solucionar crimes imperfeitos; aliás, a atenção para as falhas é o que o torna tão hábil em sua área de atuação. Mas depois de embarcar no trem, se torna um homem  circunspecto, socialmente consciente (ele só aceita investigar o crime para que um negro ou um latino não sejam injustamente condenados só por sua etnia) e atormentado por fantasmas relativos ao próprio passado. Torna-se um personagem angustiado; parece desvendar mistérios por um amor elevado à Justiça e à Verdade, e não pelo simples e exibicionista prazer de solucionar enigmas que ninguém mais conseguiria (que é o que motivava o Poirot dos livros). O detetive de Branagh torna-se mais sisudo ainda que todo o resto do filme. É uma performance bastante sólida, mas não é de modo algum Hercule Poirot, o homenzinho belga intrometido que Albert Finney soube criar com ironia e enorme talento na versão de 1974. Tornar Poirot um homem honrado e "moralmente superior" é aniquilá-lo enquanto personagem. Seria mais honesto se o detetive interpretado por Branagh tivesse sido rebatizado com outro nome.

O "Assassinato no Expresso do Oriente" de 2017 é um filme mal formatado e com um discutível senso de estilo. Há computação gráfica demais, cortes e cenas mais ligeiros que o desejado, atuações "anos 2010" em excesso. Tudo isso só o desprende ainda mais do mergulho no passado que a adaptação poderia ser. Branagh se preocupou mais com o poder envolvente da trama (que era uma falha na versão de Lumet, onde ninguém dava a mínima à intriga) e com o fundo dos personagens, mas em termos formais seu filme carece de imaginação. O máximo de ousadia estética se dá em uma dispensável alusão à Última Ceia na cena da revelação final ou quando a câmera filma por cima, em plongée, as cenas passadas na cabine do cadáver (a não ser por uma questão de maneirismo puro e simples, não faço ideia de que motivos teriam levado o cineasta a essa opção de enquadramento). 

Se o trem de Lumet não chegava ao destino final porque, de tão leve, flutuava e saía dos trilhos antes do meio do caminho, o de Branagh atravessa o trajeto todo com avidez demais, em um passeio funcional, mas saculejante e sem grandes paisagens pela janela. Se é para viajar assim, não seria melhor pegar um avião?

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Crítica: "Mar de Rosas" (livro '100 Melhores Filmes Brasileiros')

A crítica abaixo foi publicada no livro "100 Melhores Filmes Brasileiros", lançado em 2016 pela editora Letramento (coordenação de Paulo Henrique Silva). A edição traz críticas sobre os nossos filmes mais importantes, de acordo com ranking promovido por críticos da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Eu fui encarregado de escrever sobre o ótimo "Mar de Rosas" (1978), da cineasta paulista Ana Carolina. Segue o texto abaixo.

Norma Bengell no início de "Mar de Rosas"

Tudo é ironia em "Mar de Rosas", a começar pelo título. A promessa de um estado de coisas ideal, alegre e perfeito não poderia estar mais distante do que o longa de Ana Carolina oferece. A primeira cena após os créditos já introduz o espírito anárquico que se imporá por todo o filme: vê-se um líquido farto e espumoso invadir a tela. Mas nada do "mar" sugerido no título; é um fluido bem menos nobre – uma poça de urina, caudalosa e amarelada, jorrada por uma adolescente (e respingando em sua sandália). A jovem, Betinha, se alivia em uma parada na viagem que faz com os pais na via Dutra, uma pausa que também atenua seu tédio mortal diante das discussões conjugais nos bancos dianteiros.

Na primeira parte do filme, a real protagonista parece ser a mãe da garota, Felicidade (outra ironia), uma quarentona em crise já cheia de aturar o marido machista e insensível. Em um hotel no Rio, onde o casal tenta se acertar, o convívio é impossível; em um rompante de ódio (e os personagens têm vários, a todo instante), Felicidade tenta matá-lo e volta à estrada, levando consigo a filha (já não tão entediada assim).

O filme tinha tudo para se tornar, a partir daí, um drama libertário, de inspiração e motivações feministas, bem ao gosto de um certo cinema “no feminino” praticado nos anos 70. Mas Ana Carolina mostra um louvável desapego a qualquer modismo – e parece menos ainda interessada em permitir que seu longa se torne o que o público espera dele; quem dá as cartas é ela, e não há qualquer possibilidade de negociação. A essa altura, "Mar de Rosas" já virou um road movie absurdista, com mãe e filha tentando voltar a São Paulo em uma viagem marcada por toques de suspense, mas sobretudo por um humor desconcertante, ora buñueliano ora à moda de Ionesco.

No caminho, Betinha constantemente faz sabotagens contra a mãe, com graus variadíssimos de crueldade. É divertidamente pueril ao desenhar fios de barba no queixo de Felicidade, atrapalhando-a no trânsito, mas atinge níveis de assombrosa truculência ao atear fogo no vestido e nas pernas da própria mãe em um posto de gasolina (chegará ao ápice da brutalidade mais adiante, ao despejar um caminhão de terra sobre o corpo materno). Curiosamente, porém, o longa não parece vitimizar Felicidade e nem condenar Betinha; ao fim de cada "travessura" da menina, a diretora toca o filme adiante, como se nada daquilo tivesse lá tanta importância. Como em um cartoon, em que bombas explodem na cara dos personagens, na cena seguinte já está tudo certo – e segue-se em frente.

O circo de personagens excêntricos se completa quando mãe e filha conhecem Orlando, um sujeito rude que lhes dá carona na estrada, e um histriônico casal de classe média interiorano, Nióbi e Dirceu, que eles encontram em um vilarejo no caminho. Em breve, o inusitado grupo estará confinado no huis clos de uma sala de estar pequeno-burguesa, com todos falando ao mesmo tempo chavões e frases de efeito – e ninguém prestando atenção a nada dito pelos demais.
Ali, de repente o público passa a notar que Felicidade não é o centro do filme, mas sim Betinha, a espectadora enfastiada dos fatos grotescos e surreais (dos quais, é bem verdade, ela também participa) naquele universo de loucos. Todo o nonsense que surge na tela é a percepção daquela adolescente sobre uma realidade que, para ela, não faz o menor sentido.

"Mar de Rosas" estreou em circuito em 1978, e não se pode ignorar o contexto sócio-político em que o longa foi concebido e lançado. Ana Carolina já contou que o filme é bem pessoal, inclusive no sentido freudiano de que toda garota, alguma vez, já quis a morte da própria genitora (a mãe da cineasta, aliás, é creditada como uma das roteiristas – o script traz trechos de cartas escritas por ela). Mas no filme, o ódio incontido de Betinha em relação à figura materna ganha significação (e ressonância) para além das explicações meramente psicanalíticas. Em um nível mais simbólico, a ira da menina pode ser apreendida como parte de um movimento bem mais amplo, geracional, de um grupo de jovens que, entre meados e fins dos anos 70, estavam sedentos por um novo mundo.

Para aqueles jovens, as gerações anteriores sugeriam a ideia de decrepitude. Não se identificavam em nada com os "velhos" de tendência mais conservadora, que simbolizavam a caretice comportamental e a repressão (apoiando, inclusive, a terrível ditadura que dominava o país). Mas tampouco os "velhos" libertários, os que resistiram e lutaram diretamente contra a opressão, eram um exemplo para esses jovens; àquela altura, as revoluções sessentistas e o flower power cheiravam a mofo e derrota – os combatentes de 1968 foram ineficazes ao articular seu próprio discurso, deixando seus herdeiros sem compreender em quase nada o sentido de sua luta. No contexto mundial mais materialista e menos idealista da segunda metade dos anos 70, a juventude desejava ruptura total.
Não é à toa que, no fim, Betinha empurra de um trem em movimento os dois representantes dessa "velharia" a ser superada: Orlando e Felicidade, os dois símbolos opostos de um mundo "arcaico". Tal gesto – seguido de uma bem dada "banana" ao espectador – prenuncia a geração que estava por vir a partir dos anos 80: jovens individualistas, hedonistas, avessos à “chatice” dos discursos politizados.

Mas "Mar de Rosas" é, ao seu modo, um filme engajado – sua ação "política" está em sua anarquia, no seu deboche. E é prodigiosa a inteligência com que a diretora constrói (e filma) grande parte das situações dramáticas, de cunho metafórico. Mesmo as cenas que parecem mais caóticas são, no fundo, bastante estruturadas, sobretudo as na casa de Nióbi e Dirceu. Ali, o filme parece perder de vez qualquer conexão com a lógica, mas em cada gargalhada aparentemente fora de hora, em cada frase repetida pelo que parece ser mero cacoete, em cada divagação pretensamente descontextualizada, há uma intenção de mordacidade, de sátira por trás. 

Os grandes Ary Fontoura e Myriam Muniz em "Mar de Rosas"

E há cenas de fato memoráveis: como esquecer quando Myriam Muniz, sentada sobre o monte de terra em sua sala, é tomada por uma epifania religiosa e faz seu sermão da montanha particular, esfregando poeira no rosto e bradando sobre a necessidade de "o iníquo ficar inócuo, o histérico ficar histórico"? Ironicamente, porém, é também naquele ambiente que o longa traz suas maiores fraquezas; a certa altura, o excesso de ruídos, ideias e alegorias começa a se tornar um peso que a estrutura criada por Ana Carolina nem sempre consegue segurar – o ritmo decai.

Os atores, porém, sustentam o espetáculo com brio. A grande Myriam Muniz recebe em Nióbi uma personagem sob medida para seu talento expansivo (ela não fala: berra). Ary Fontoura, como Dirceu, consegue a proeza de não se deixar eclipsar, assim como Otávio Augusto, eficiente como o truculento Orlando. E o que dizer de Cristina Pereira, como Betinha? Ela não estava longe dos 30 anos quando o filme foi feito, mas está tão perfeita em cada detalhe, nos gestos juvenis e nas expressões de escárnio, que ninguém percebe que ela não é uma adolescente. E é notável a entrega de Norma Bengell à personagem Felicidade, sobretudo se pensarmos que ela talvez fosse uma escolha duvidosa para o papel (às vezes passivo demais para a persona que a atriz criou ao longo da carreira). Mas Norma alterna com sabedoria seus instantes de vulnerabilidade e de força; é um de seus grandes momentos.

Olhando hoje, à distância, soa quase heroico que uma mulher cineasta (ainda raras no Brasil dos anos 70), em seu primeiro longa de ficção, demonstrasse tamanha autoconfiança em sua capacidade como realizadora. Ana Carolina não era uma iniciante: já tinha no currículo dezenas de documentários, como "Getúlio Vargas". Mas segurou firme sua primeira chance ficcional, sem abrir mão de suas intenções iniciais nem de sua visão de "autora" – algo que, aliás, ela manteria ao longo de toda sua admirável carreira. Dirigiria, inclusive, mais dois filmes nos anos 80 ("Das Tripas Coração" e "Sonho de Valsa") que comporiam com "Mar de Rosas" uma trilogia personalista. Mas jamais outra vez ela conseguiria resultados tão satisfatórios como em sua ficção de estreia (embora anos mais tarde, com “Amélia”, ela chegasse bem perto disso).

Em "Mar de Rosas", Ana Carolina não nega sua identificação com Betinha: prega peças o tempo todo no espectador, também com níveis variados de violência. O filme parece aqueles sonhos (pesadelos?) que começam com alguma lógica, mas que escapam com tamanha desenvoltura ao nosso "controle", tomando rumos tão inusitados e cedendo espaço a tantas digressões, que, por fim, já mal nos lembramos de como tudo começou. Mas é um "pesadelo" que temos com prazer – meio masoquista, meio sádico, mas definitivamente um prazer. O longa não tem antecessores diretos (ao menos facilmente identificáveis) e não parece ter deixado descendentes, sequer entre os da trilogia; é ímpar. E aos que tentam incluí-lo em rótulos ou categorizações fáceis, ele repete o gesto final de sua protagonista: dá uma "banana" e ri, com deboche.