O angustiado Michael, de "Anomalisa" |
A solidão sempre foi o tema central na obra de Charlie
Kaufman. Quer dizer, dos longas que ele roteirizou, como "Quero Ser John
Malkovich" e "O Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças", cujos scripts eram
tão cheios de personalidade e criatividade que muitas pessoas o consideram o verdadeiro
"autor" dos filmes, e não seus diretores. Em "Anomalisa", sua segunda experiência
dirigindo (a primeira foi "Synecdoche, New York": pavoroso), Kaufman retorna ao
seu assunto preferido, agora em uma animação em stop motion, co-dirigida por Duke
Johnson (cujo trabalho no longa, ao que parece, foi basicamente na parte visual
e técnica, e não no conteúdo).
É a história de um autor de livros de autoajuda que viaja
para dar uma palestra e sofre uma crise nervosa no hotel. Conhece ali uma das
suas leitoras e, na companhia dela, tenta esquecer seus problemas pessoais e
conjugais. A técnica do filme é curiosa: os personagens se movem bem devagar,
quase que como em slow motion. As expressões faciais são quase humanas, e todos
os personagens têm os mesmos rostos e a mesma voz (masculina), mesmo as
mulheres. As únicas faces diferentes das demais são a de Michael, o
protagonista, e de Lisa, sua leitora (ela também tem uma voz própria, feminina,
dublada por Jennifer Jason Leigh).
Por um tempo, o filme não funciona muito bem. Consiste majoritariamente
naquele mesmo tipo de observação kaufmaniana sobre a dificuldade de adaptação
social dos protagonistas já tão exploradas em seus filmes anteriores. Vemos um taxista e os
funcionários do hotel agindo de maneira estranha e parecendo tirar sarro de
Michael e suas inseguranças – não de uma forma agressiva, mas sobretudo com
indiferença, um inexplicável desprezo por ele, como se fosse o ser menos
relevante do planeta. Michael se sente oprimido. Já funcionou várias outras
vezes, em filmes como "Quero Ser John Malkovich", mas desta vez o público
começa a achar o artifício um pouco velho – talvez as falas escritas por
Kaufman precisem de atores de verdade dizendo-as de modo que soem realmente
engraçadas ou que tenham um significado mais profundo.
Mas após um tempo, sobretudo depois que o protagonista
conhece sua leitora, o filme finalmente engrena e se torna envolvente. Ironicamente,
chega um momento em que até esquecemos que Michael e Lisa são personagens animados
– parecem atores em cena.
Não é o caso aqui de comentar em pormenores a trama em si,
mas vale ressaltar que o filme tem algumas finas observações sobre a angústia
do homem moderno. Mas melhor ainda que isso, Kaufman explica sem medo de soar
politicamente incorreto algo que poucos diretores conseguem abordar de modo tão
direto como ele: como começamos a sentir paixão (que é bem diferente de amor)
por outras pessoas. E, sobretudo, como nós, de um minuto para o outro, deixamos
de ter esse mesmo sentimento por elas (há uma hilária, porém desoladora, cena de
café da manhã que se dedica a isso).
Já ouvi mulheres reclamando de um certo machismo do
protagonista, mas isso é besteira; é que o personagem é tão autocentrado que é
sobre ele e seus dramas que a Terra gira, e não sobre outros homens, mulheres
ou bichos. Isso também é puro Charlie Kaufman, há um certo egoísmo em seus
personagens. Mas um "egoísmo branco", digamos assim, que vem principalmente de
uma profunda insegurança, introversão e insatisfação dos personagens consigo próprios, e não
por desinteresse pelo resto do mundo.
Em alguns pontos, é o roteiro mais maduro já escrito por
Kaufman. Mas é muito curto, e o filme é talvez muito leve – mesmo que haja
cenas adultas incomuns em animações, como uma que mostra sexo oral. Chega-se ao fim tendo a impressão de que se assistiu a um
curta-metragem – não sei precisar muito bem qual é o problema central, mas
falta alguma coisa no filme. Ainda assim, é um roteiro de Charlie Kaufman, e
isso é sinônimo de inteligência e humor - e, acima de tudo, melancolia.