quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Crítica: "Anomalisa"

(idem, 2015), de Charlie Kaufman

O angustiado Michael, de "Anomalisa"

A solidão sempre foi o tema central na obra de Charlie Kaufman. Quer dizer, dos longas que ele roteirizou, como "Quero Ser John Malkovich" e "O Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças", cujos scripts eram tão cheios de personalidade e criatividade que muitas pessoas o consideram o verdadeiro "autor" dos filmes, e não seus diretores. Em "Anomalisa", sua segunda experiência dirigindo (a primeira foi "Synecdoche, New York": pavoroso), Kaufman retorna ao seu assunto preferido, agora em uma animação em stop motion, co-dirigida por Duke Johnson (cujo trabalho no longa, ao que parece, foi basicamente na parte visual e técnica, e não no conteúdo).

É a história de um autor de livros de autoajuda que viaja para dar uma palestra e sofre uma crise nervosa no hotel. Conhece ali uma das suas leitoras e, na companhia dela, tenta esquecer seus problemas pessoais e conjugais. A técnica do filme é curiosa: os personagens se movem bem devagar, quase que como em slow motion. As expressões faciais são quase humanas, e todos os personagens têm os mesmos rostos e a mesma voz (masculina), mesmo as mulheres. As únicas faces diferentes das demais são a de Michael, o protagonista, e de Lisa, sua leitora (ela também tem uma voz própria, feminina, dublada por Jennifer Jason Leigh).

Por um tempo, o filme não funciona muito bem. Consiste majoritariamente naquele mesmo tipo de observação kaufmaniana sobre a dificuldade de adaptação social dos protagonistas já tão exploradas em seus filmes anteriores. Vemos um taxista e os funcionários do hotel agindo de maneira estranha e parecendo tirar sarro de Michael e suas inseguranças – não de uma forma agressiva, mas sobretudo com indiferença, um inexplicável desprezo por ele, como se fosse o ser menos relevante do planeta. Michael se sente oprimido. Já funcionou várias outras vezes, em filmes como "Quero Ser John Malkovich", mas desta vez o público começa a achar o artifício um pouco velho – talvez as falas escritas por Kaufman precisem de atores de verdade dizendo-as de modo que soem realmente engraçadas ou que tenham um significado mais profundo.

Mas após um tempo, sobretudo depois que o protagonista conhece sua leitora, o filme finalmente engrena e se torna envolvente. Ironicamente, chega um momento em que até esquecemos que Michael e Lisa são personagens animados – parecem atores em cena.

Não é o caso aqui de comentar em pormenores a trama em si, mas vale ressaltar que o filme tem algumas finas observações sobre a angústia do homem moderno. Mas melhor ainda que isso, Kaufman explica sem medo de soar politicamente incorreto algo que poucos diretores conseguem abordar de modo tão direto como ele: como começamos a sentir paixão (que é bem diferente de amor) por outras pessoas. E, sobretudo, como nós, de um minuto para o outro, deixamos de ter esse mesmo sentimento por elas (há uma hilária, porém desoladora, cena de café da manhã que se dedica a isso).

Já ouvi mulheres reclamando de um certo machismo do protagonista, mas isso é besteira; é que o personagem é tão autocentrado que é sobre ele e seus dramas que a Terra gira, e não sobre outros homens, mulheres ou bichos. Isso também é puro Charlie Kaufman, há um certo egoísmo em seus personagens. Mas um "egoísmo branco", digamos assim, que vem principalmente de uma profunda insegurança, introversão e insatisfação dos personagens consigo próprios, e não por desinteresse pelo resto do mundo.

Em alguns pontos, é o roteiro mais maduro já escrito por Kaufman. Mas é muito curto, e o filme é talvez muito leve – mesmo que haja cenas adultas incomuns em animações, como uma que mostra sexo oral. Chega-se ao fim tendo a impressão de que se assistiu a um curta-metragem – não sei precisar muito bem qual é o problema central, mas falta alguma coisa no filme. Ainda assim, é um roteiro de Charlie Kaufman, e isso é sinônimo de inteligência e humor - e, acima de tudo, melancolia.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Crítica: "Coração de Cachorro"

(Heart of a dog, 2015), de Laurie Anderson

Uma das Lolabelles (a original?) de "Coração de Cachorro"

Em 2007, João Moreira Salles fez muito sucesso com seu documentário "Santiago", em que usava o excêntrico mordomo de sua infância como desculpa para revisitar sua própria história familiar. A crítica achou tudo lindo (e qual filme sobre as dificuldades de um cineasta para criar ela não acha lindo?), e não deu muita atenção para o fato de o pobre serviçal ser usado da maneira mais exploratória possível, talvez até predatória, utilizando-o como elemento "humanizador" em uma narrativa no melhor estilo egotrip – que, sem ele, talvez não causasse maiores comoções.

O novo filme da multiartista Laurie Anderson não é nem de longe tão artisticamente desonesto como o documentário de Moreira Salles, mas parte de um princípio semelhante: também faz uso de um elemento de fácil apelo com o público (um cão) para camuflar uma narrativa bem mais narcisista. O filme se chama "Coração de Cachorro", mas se a diretora quisesse ser realmente sincera talvez devesse batizá-lo de "A Cabeça de Laurie". Porque embora em teoria o centro do filme seja sua cachorrinha (falecida) chamada Lolabelle, no fundo o longa é sobre a mente da artista: o que ela pensa das coisas, como apreendeu as experiências de vida que já teve, como ela reage diante do que a cerca.

Anderson começa o filme narrando um sonho inusitado que já teve: um dia, ela estava grávida e dava à luz Lolabelle. De repente, passava a se sentir estranha e culpada, não pelo fato de ter tido uma filha não-humana, mas sim porque na vida real ela jamais havia conhecido sua cadelinha quando bebê (ela adotou Lolabelle já adulta). É a última coisa que se esperava enquanto "reação" de alguém diante de um sonho como esse, e o filme é o tempo todo Anderson apresentando ideias e divagações também assim incomuns, a maior parte bastante curiosa, que o filme engrena a partir desse sonho. A narrativa segue em um fluxo livre, sem nenhuma regra, só de vez em quando retornando a Lolabelle, mas sem que a presença da cachorrinha seja algo obrigatório – a diretora fala do que bem entende.

A certa altura, a narradora/cineasta faz especulações sobre a morte. Chega a uma interessantíssima conclusão (a mais enriquecedora de todo o filme): o que a torna um assunto tão difícil não é o fato de significar o fim da vida de alguém; ela é algo horrível pelo que a ausência da pessoa morta acarreta em nós. Ou, colocando de uma maneira mais direta: o ser humano é uma criatura tão egoísta que redireciona para si até o que menos lhe diz respeito, como o fim da vida dos outros; se não gostamos de saber da morte de alguém é antes pelo desagradável sentimento de dor que vamos sentir (e que vai nos desestabilizar) que por lamento pelo término da vida do falecido.

É um insight e tanto, mas talvez Anderson tenha incluído essa ideia no filme como uma referência (ou talvez mea culpa) ao seu próprio egoísmo, quando usa sua cachorra como desculpa para falar dos verdadeiros temas de seu filme: ela, ela e ela mesma. Mas as impressões de Anderson são em geral tão interessantes, inteligentes, que o espectador se pergunta: por que raios, então, o artifício do cachorro? (a saga da família Moreira Salles também era interessante o suficiente para "segurar" um documentário – o "recurso" Santiago era completamente desnecessário).

A própria Anderson é a narradora em off do filme, e ela fala de uma maneira agradável, vagarosa, com as palavras pronunciadas com muita clareza. A voz dela é limpa, sensual, mas não poderia ser menos sexy; é impessoal ao extremo (se algum dia ela desistir da carreira artística, poderia muito bem tentar a de locutora de aeroporto). As imagens que ela nos mostra são bonitas, estilizadas. Algumas são abstratas, no mesmo estilo das que vários videomakers da mesma geração dela (dos anos 80) adoravam criar. Há muitas coisas de arquivo pessoal, que incluem a presença de artistas e amigos da diretora (seu ex-marido, Lou Reed, surge muito rapidamente em apenas uma cena); a própria Lolabelle aparece pouco, sendo em geral substituída por outras cachorras que a "interpretam" em cena. Uma artista inventiva como Anderson certamente evitaria o clichê de mostrar imagens de elementos da natureza enquanto fala de questões metafísicas, mas quando ela aborda esses assuntos o que vemos na tela são justamente imagens de céu, chuva caindo e paisagens de neve; são o que o filme tem de pior.

Anderson fala de tantas coisas diferentes que a impressão é de que o filme dura bem mais que seus breves 75 minutos. É um filme-ensaio envolvente, que às vezes parece ampliar nossa própria visão sobre todos os temas sobre os quais a diretora discorre. Mas quando o filme acaba, percebemos que não vamos sair da sala muito diferentes de quando entramos; a verdade é que "Coração de Cachorro" parece não chegar a lugar nenhum. No fim das contas, não está muito longe do mero exercício de narcisismo que parecia ser.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Críticas-pílula: "Creed", "Steve Jobs" e "Snoopy & Charlie Brown: Peanuts, o Filme"

Creed - Nascido para Lutar
(Creed, 2015), de Ryan Coogler

Stallone volta interpretar Rocky Balboa

Sylvester Stallone, mais uma vez, dá vida a Rocky Balboa, agora um dono de restaurante italiano que é chamado pelo filho de seu rival no passado para treiná-lo. Os temas dos outros filmes (a busca pelo reconhecimento, a superação pessoal, a doença como limitadora) são descaradamente requentados aqui, e a fórmula mostra enorme esgotamento. Para piorar, o protagonista, Michael B. Jordan, não tem tanto apelo como Stallone tinha nos anos 70; é um filme bem fraco. Mas eis que o velho Sly surge em uma de suas melhores performances da carreira (o que, por si só, não quer dizer grandes coisas). Stallone sempre teve as expressões no rosto limitadas por uma paralisia facial, e agora, com tantos procedimentos de preenchimento e de botox, a situação se agravou; ele mal consegue abrir a boca. Mas talvez este seja o segredo da sua ótima atuação: ele nunca exagera.

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Steve Jobs
(Idem, 2015), de Danny Boyle

Winslet e Fassbender em "Steve Jobs"

A câmera não para quieta, os atores se movimentam incessantemente, a montagem é peculiarmente ágil... e no entanto, poucos filmes sugerem tanto teatro filmado como “Steve Jobs”. A estrutura do roteiro é em três atos, em momentos distintos da vida do empresário, sempre antes de palestras televisionadas. O primeiro funciona bem, mas o gosto de novidade se perde nos demais - o filme parece dar voltas e não sair do lugar. Nos bastidores, o Jobs do filme se revela um ser humano quase insuportável – se o longa tem um grande acerto é não cair na armadilha de tornar o protagonista esse Deus que tantas pessoas o consideram (triste do povo que trata um empresário com a mesma idolatria que só os grandes artistas e heróis costumam receber...). O Steve Jobs real tinha presença de palco e carisma; Michael Fassbender também tem as duas coisas e ainda algo que Jobs nem passava perto de ter: sensualidade – ele acrescenta ao personagem um tipo de magnetismo animalesco, de concomitante repulsa/atração (seu Jobs é mais rico e ainda melhor que o verdadeiro). Na pele de sua fiel assistente, Kate Winslet está como sempre: ótima. E não se pode também esquecer da performance de Jeff Daniels, bom ator, lastimavelmente subaproveitado e subvalorizado em Hollywood.

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Snoopy e Charlie Brown: Peanuts, o Filme
(The Peanuts Movie, 2015), de Steve Martino

Snoopy e Charlie: animação à moda antiga

Infelizmente, parece não haver mais espaço no mundo para filmes assumidamente infantis, como este encantador desenho protagonizado pelo cãozinho Snoopy, o pássaro Woodstock e o atrapalhado Charlie Brown. A história gira em torno de uma nova aluna no colégio, que desperta a paixão de Charlie - e também todo o seu desajeito. O filme é uma ilustração de como a vida no colégio pode ser infernal para as crianças mais introvertidas. Mas nunca há drama prolongado ou em exagero; os criadores não querem o sofrimento do público. Há, sim, ternura sendo exalada por todos os fotogramas e belas lições de solidariedade - é um filme simplíssimo, e ainda assim (ou talvez por isso) adorável. É uma animação bizarramente fora de época - a não ser pela técnica de animação, poderia ser um filme de umas quatro décadas atrás. Mas algumas coisas não mudam nunca, e este Snoopy é o exemplo disso. O filme é muito mais honesto que as animações ultrainformativas modernas, calculadas milimetricamente para agradar tanto a crianças como adultos, no estilo "DivertidaMente" (que de adultas, mesmo, só têm a vontade).

Crítica: "A Grande Aposta"

(The Big Short, 2015), de Adam McKay


Christian Bale em "A Grande Aposta"

Christian Bale é um ator especial. É o tipo de intérprete criativo, que nunca entrega uma performance banal – uns 50 atores eficientes poderiam ter bons resultados vivendo um mesmo personagem que ele, mas Bale sempre busca ir além, fazer algo diferente mesmo quando o papel a priori não permite nada de muito inovador. Em "A Grande Aposta", ele interpreta um investidor que previu o colapso no setor imobiliário americano em 2008 – e soube faturar em cima da própria capacidade de visão. Mas mais que um visionário, ele é acima de tudo um sujeito excêntrico, que passa grande parte do tempo ouvindo heavy metal, simulando tocar bateria, e que vai trabalhar usando camisetas puídas (em um ambiente em que os colegas são engravatados e cheios de cerimônia). Para completar, ainda tem um estranho olho de vidro – as pessoas riem de sua figura onde quer que vá.

Bale demonstra grande disposição e disponibilidade para criar seu personagem – a ponto de, às vezes, dar a impressão de que talvez queira superar tudo o que ele mesmo já fez em termos de inventividade em filmes anteriores. Mas definitivamente não era ocasião para isso. Ele atua como se seu personagem tivesse uma interioridade complexa, uma profundidade riquíssima e interessantíssima a ser explorada. Mas quando o observamos em cena, percebemos que ele está visivelmente criando em cima de uma enorme abstração – ou, o que é pior: em cima de um gigantesco vazio; esse personagem que Bale quer a todo custo "compor" simplesmente inexiste.

Por estilo, "A Grande Aposta" de fato exigia um certo exagero nas atuações – é uma comédia algo rasgada sobre o mundo das finanças. Mas Bale seguiu um caminho que visivelmente destoa do resto do elenco – que, em geral, opta por um tom mais farsesco. Muita gente pode achar que é uma performance "melhor" que as demais, mas desta vez a composição de Bale é fruto de um grande erro de approach do personagem: é puro overacting.

"A Grande Aposta" explica em detalhes o que aconteceu na economia americana em 2008, quando só alguns poucos investidores espertos perceberam que a boa fase do setor imobiliário nos EUA estava com os dias contados; em breve, entraria em crise. Como é um filme voltado para o grande público, obviamente os roteiristas (McKay e Charles Randolph) sabiam que precisariam adotar um tom didático, quase que destinado a dummies para detalhar questões que o puro e simples "economês" dificilmente conseguiria.

De fato, "A Grande Aposta" seria um filme inconcebível se não fosse esse esforço hercúleo por parte da equipe de tornar tudo amaciado, palatável. Toda a pirotecnia visual e os truques espertinhos e criativos para manter a narrativa com fôlego do início ao fim tem funcionado com grande parte do público – o longa tem feito um inusitado sucesso comercial. Como em uma espécie de milagre, o diretor tem conseguido não só explicar em detalhes um assunto impopular como também tem mostrado que um meio aparentemente tedioso como o das finanças pode ser fascinante.


Minha opinião pessoal? Levando em conta que o estilo engraçadinho de McKay não é exatamente algo que me agrade e que tampouco a bolha imobiliária seja um tema que me desperte a atenção, é até de admirar que eu tenha chegado ao fim do filme ainda com algum interesse. Mas muito pouco – os excessos narrativos me deixaram um tanto exausto, e o didatismo de McKay funcionou só parcialmente comigo: em vez de compartilhar da visão do diretor de que o imprevisível universo das finanças é apaixonante e cheio de empolgação, eu continuo achando esse meio completamente anticinematográfico. E, além de moralmente repulsivo, chato de doer... O milagre de McKay, como se percebe, não acontece para todos.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Crítica: "Carol"

(idem, 2015), de Todd Haynes

Rooney Mara e Cate Blanchett em "Carol"

A questão da "culpa" sempre foi um dos grandes temas na obra de Patricia Highsmith, e não é por acaso que em todos os seus romances ela sempre incluiu pelo menos um assassinato – e se dedicou a estudar a personalidade do "culpado" pelo crime. Seu único livro sem homicídios é "Carol", história lésbica lançada nos anos 50 (sob pseudônimo e com outro título*), que agora vira longa dirigido por Todd Haynes. No livro e no filme, a consciência culpada não é a de um assassino, mas a de duas mulheres que se entregam cegamente a uma forma de amor proibida – o que, na época, também era uma espécie de delito.

Haynes faz uma adaptação bem fiel ao romance, inclusive em sua atenção à questão da culpa e da dificuldade para lidar com uma sexualidade interdita em uma sociedade castradora. Mas sua preocupação primordial em "Carol" é formal: salta aos olhos o cuidado extremo do cineasta em jamais soar apelativo ou açucarado na maneira como aborda esse caso de amor homossexual. Seu desafio enquanto cineasta é fazer um filme cheio de delicadeza, e para conseguir esse efeito, Haynes abstém-se de qualquer excesso e não acentua nada: faz um filme todo em semitons.

Sob esse aspecto, o longa é um êxito: "Carol" é mesmo (e acima de tudo) um filme delicado. Mas há um efeito colateral inesperado: tamanho exercício de contenção e elegância resulta em uma obra cinematográfica muito pouco envolvente – ou, ao menos, um filme longe de ter o nível de "envolvimento" que a premissa dramática possibilitaria caso recebesse outro tratamento. Claro, o público torce pelas protagonistas, mas nunca chega a se comover de fato com o drama das duas amantes e nem a se empolgar verdadeiramente quando o romance das duas finalmente se concretiza – há um constante distanciamento emocional entre o espectador e o que está na tela.

As imagens do filme parecem páginas de alguma revista americana bem comportada dos anos 50 que de repente ganharam movimento. A textura captada em película de 16mm, as cores (o vermelho natalino predomina) e o desenho de produção fazem o público mergulhar naquela época, efeito que o próprio ritmo (algo arrastado) do filme também colabora para conseguir. Nesse sentido, o filme é vitorioso – é uma das reconstituições de época mais precisas feitas em Hollywood nos últimos anos. (É necessário registrar, porém, que às vezes a câmera 16mm é um tanto traiçoeira; a granulação típica desse tipo de bitola aparece muito marcada quando algumas cores surgem na tela, sobretudo os tons próximos ao bege, o que é um problema sério quando há closes nos rostos das personagens – os grãos da imagem parecem manchas na pele).

De qualquer forma, Haynes mais uma vez consegue arrastar o espectador para dentro de uma época, como já havia feito com os excessos glam no setentista “Velvet Goldmine” e nas cores sirkianas do também cinquentista “Longe do Paraíso”. Em "Carol", Haynes retoma os anos 50 para mostrar a relação entre Therese (Rooney Mara), uma jovem vendedora de uma loja de departamentos, e Carol (Cate Blanchett), uma dona de casa burguesa. Tudo começa como um flerte mais ou menos velado, evolui para o que parecia ser uma amizade ou um “encontro de almas” até virar, por fim, um romance altamente passional entre as duas.

Bom, ao menos era o que deveria acontecer... O problema é que Haynes não consegue promover essa gradação na passagem entre o estágio da "amizade" para o da consumação do sexo. A parte central do longa, quando Therese e Carol fazem uma (tediosa) viagem de carro rumo à Costa Oeste, dramaturgicamente deveria ser o instante de uma gradual evolução no envolvimento entre as personagens. Mas não há evolução alguma - por problemas de montagem ou de direção, o que surge na tela parece um apanhado meio aleatório de cenas com as "boas amigas" (é o que elas eram até então) conversando dentro do carro e em quartos de hotel. Não há um "crescendo" na aproximação entre as personagens, e quando as duas se beijam pela primeira vez, a cena parece totalmente fora do lugar, incluída antes da hora por algum equívoco de edição; não houve preparação de terreno para ela. O público, que devido ao ritmo lento do filme já aguardava com alguma impaciência por esse encontro carnal, acaba até levando um susto pela forma abrupta como ela acontece. 

As atrizes não parecem ter sido devidamente orientadas e estão meio perdidas nesse miolo de filme. É uma pena, porque na primeira parte do filme, Rooney Mara vinha tendo momentos extraordinários, com uma atuação particularmente rica nas sutilezas. Nos instantes logo após conhecer Carol, ela arregala os olhos, sempre assustados e cheios de curiosidade e medo. No primeiro almoço juntas, Carol lhe diz: "Que garota estranha você é!", palavras que fazem Therese engolir a seco uma porção generosa de comida e quase engasgar – a expressão facial de Mara nessa cena é indescritível; sua atuação é quase perfeita. Mas a partir da metade, a personagem Therese deixa de evoluir como prometia, e Mara não parece saber muito bem o que fazer. Blanchett, mais experiente, passa a dominar o filme, ainda que também a personagem dela não evolua dentro do esperado. Na dúvida sobre como criar suas cenas, Blanchett vai sempre no caminho mais sem erro, talvez até um pouco "no automático", mas ela é tão talentosa em cenas dramáticas que consegue segurar o filme nos momentos mais críticos; ela se torna uma presença mais encorpada e o pilar que impede que o longa desmorone por completo nas horas mais falhas. Haynes só consegue reaver o controle sobre o filme no terço final, mas aí o estrago já está feito; o espectador vê tudo com algum encantamento, mas sobretudo com frieza.

Eu não me lembro muito bem de como os personagens masculinos são delineados no livro de Highsmith, mas no filme eles são criados de forma a parecerem completos idiotas (será que Haynes ficou tão possuído pelo espírito dos anos 50 que acha que precisa tornar os homens imbecis como forma de justificar ao público o interesse de Therese por outra mulher?). Mas a textura das imagens, aliada ao carisma e ao talento das atrizes, ao menos é algo que não se esquece com facilidade. Quem leu o livro sabe muito bem o quanto "Carol" poderia resultar em um filme melhor, mais marcante, mas o que Haynes nos oferece não é pouca coisa, não.

*O misterioso título do livro quando lançado originalmente, em 1952, era "The Price of Salt" - o "preço do sal", certamente uma referência ao valor alto que se precisa pagar para ter acesso ao prazer ou ao "sal" da vida; embora menos cativante e comercial que "Carol", é ao menos um título mais poético