quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Ensaio: cinema cotidiano ("As Aventuras de uma Francesa na Coreia")

 Este texto foi publicado em 10.abr.25, na Folha de S.Paulo, a quem pertencem todos os direitos


"As Aventuras de uma Francesa na Coreia"

Lá vem ele de outra vez. O mais prolífico dos grandes cineastas em atividade, o sul-coreano Hong Sang-soo, tem novo longa em cartaz, “As Aventuras de uma Francesa na Coreia”. E, novamente, faz um filme formidável.

Parte do público, é claro, não vai compartilhar da habitual empolgação crítica. Afinal, quase nada “acontece” em um filme de Hong, e mesmo quando ocorre, o cineasta nunca se empenha em esclarecer muito o que se passa.
O sul-coreano não se interessa em apresentar uma história fechada, impositiva de significados. É um cineasta do incerto, do duvidoso, e que vê justamente na imprecisão do que é humano o encanto da vida. Sobretudo nas pequenas coisas, por mais desimportantes que aparentem.
A Hollywood clássica nos doutrinou a esperar sempre emoções intensas e trajetórias heroicas em filmes, mas a verdade é que o cinema já nasceu dando piscadelas para a banalidade. Afinal, os primeiros registros dos irmãos Lumière focavam nada menos que fatos cotidianos ao seu redor.
Outras filmografias teriam também um olhar atento à rotina, como a de Yasujiro Ozu, ainda antes de o Ocidente descobrir a produção nipônica. Mas foi com o neorrealismo italiano, nos anos 1940, que o dia a dia do homem comum ganharia propulsão. Ali, qualquer vida era digna de ser contada. Com o fim da Segunda Guerra, quando a Europa voltou aos eixos, surgiu na população um senso de redescoberta da própria rotina e de nela perceber a matéria viva do que é de fato a existência; a normalidade era o “novo normal”.
Esse zeitgeist recebia respaldo de certa intelectualidade marxista, apegada à noção de materialidade das coisas, como o francês Henri Lefebvre, pioneiro em destacar o cotidiano como um importante ponto de onde partir para compreender amplamente o mundo social, inclusive as forças de dominação.
No cinema, o roteirista neorrealista Cesare Zavattini bradava que seu ideal era o de um filme mostrando 90 minutos consecutivos da vida de alguém, em que cada fotograma não seria só a ponte para o seguinte, mas que “vibraria em si mesmo como um microcosmo.”
Esses ideais seriam de certo modo absorvidos por cineastas de locais e vertentes distintos, nas provocações de um Andy Warhol ou no minimalismo de uma Chantal Akerman. Aliás, seu “Jeanne Dielman”, de 1975, rompeu uma barreira e tanto ao ser eleito, em 2022, o melhor filme da história pela revista “Sight and Sound”. Ao mostrar a dona de casa que fatura uns trocados como prostituta, a câmera não se furta de perder longos minutos filmando-a meramente escovando os cabelos ou descascando batatas.
Ainda que a recente louvação ao filme fale sobretudo de um esforço contemporâneo de exaltação ao feminino, é relevante pensar em uma nova sensibilidade diante de um cinema em que a ação quase inexiste. E mesmo no Brasil, se um longa com um fiapo de história como o esplêndido “O Dia que Te Conheci”, de André Novais Oliveira, foi tão aclamado em 2024 é porque hoje há uma compreensão maior sobre o quanto a simplicidade pode ser complexa.
O que talvez explique por que Hong, apesar de nulo para tantos, tenha fãs tão exaltados. Seu cinema é poético apesar da falta de rebuscamento. Evita movimentos de câmera e usa zooms só de modo estratégico. Quando filma em preto e branco (sem justificativa), seus filmes parecem antes cinzentos, meio desvanecidos, sem se obrigar a ser “belos”.
Mas há beleza em Hong, e ela está sobretudo na falta de afetação. E na interação entre os personagens, nos comportamentos de cada um durante os encontros – seu gestual, suas inflexões; a excelência do elenco é essencial. Em “As Aventuras de uma Francesa”, novamente a banalidade da vida dá o tom, mas há pequenos momentos mágicos, quase extraordinários, nessa expressão do cotidiano.
Isabelle Huppert vive uma professora de francês em Seul que improvisa um método de ensino sem estudo prévio sobre sua eficácia. Ganha a vida assim, quando não está perambulando em parques da cidade. O espectador fica diante de uma total imprecisão sobre quem é essa mulher e suas reais intenções. Ela mesma, será que sabe?
Quando a francesa encontra o amigo que a hospeda em Seul, a mãe do garoto tenta descobrir o que o rapaz sabe dela. Não chegam a nenhuma conclusão, e nem o espectador. Assim como jamais entenderemos certas pessoas que passam por nossas vidas.   
É um filme sobre a ausência de certezas que temos sobre tudo, mas também sobre uma possível postura diante dessa ignorância humana quase que completa: de não perder muito tempo com isso – de seguir o fluxo da existência, enquanto pessoas diferentes, imprecisas, vagamente misteriosas surgem e somem dela. Talvez seja essa a grande moral honguiana.
Mas desta vez há algo além em seu filme: a protagonista tem um dom especial, de detectar o “não dito” na fala de seus interlocutores. Nota a insegurança de uma aluna jovem e a frustração de outra mais velha por não ter deixado uma marca no mundo e “não ter vivido na glória”, como ela diz. São inusitadas as implicações do uso de sua técnica educativa. Pode ser uma docente discutível, mas é uma notável decifradora de almas.
Se ela entende tão bem as personagens pode ser só porque é uma forasteira, com distanciamento para detectar as máscaras sociais coreanas. Ou talvez o que ela diz seja só resultado dos goles de vinho de arroz que ela tanto dá ao longo do filme – sabe-se lá. E não importa. Mas o fato é que Huppert traz sempre um elemento exógeno (e cômico) ao universo de Hong, sugerindo quase uma entidade sobrenatural, mas que a ele se adapta à perfeição. É uma das grandes parcerias do cinema recente.
Apesar de alguns aspectos bem peculiares, é mais um filme de Hong que se parece muito, em essência, com os anteriores. Seus detratores usariam isso contra ele, dizendo que faz sempre o mesmo filme, e talvez eles tenham razão. Mas ocorre ali algo como diz o poema lido por Huppert para uma desconhecida, sobre um homem que todos os dias faz o mesmo trajeto. Mas que é sempre diferente, por detalhes como flores que brotam ou pássaros distintos que surgem. Ideia que é um compêndio da extensa e magnífica obra de Hong.

Crítica: "Homem com H"

 Texto publicado em 29.abr.25, na Folha de S.Paulo, a quem pertencem todos os direitos


Jesuíta Barbosa surgiu nacionalmente exibindo um espantoso talento em “Tatuagem”, de Hilton Lacerda, de 2013. Mas suas performances seguintes, apesar da invariável qualidade, deixavam sempre a impressão de que ainda faltava alguma coisa – talvez o personagem certo para ele mostrar a amplitude do seu potencial. Sobretudo na TV, que sanitizava suas características mais primais, animalescas, que o distinguem dos colegas de geração.
“Homem com H” está aí para mostrar que Ney Matogrosso era o papel que lhe faltava. Como nunca, o ator demonstra segurança, ímpeto, crença em sua capacidade. Sua caracterização impressiona: Barbosa surge com a mesma silhueta delgada, os olhares desafiadores e a fisicalidade de Ney, esse artista que se define como meio homem meio bicho. Mas não o imita, pura e simplesmente. É um Ney parecidíssimo com o da vida real, mas um Ney todo pessoal de Barbosa.
Biografias musicais tendem a aprisionar a trajetória dos protagonistas em estruturas narrativas muito parecidas e desgastadas. O longa de Esmir Filho também segue uma base convencional, mas se distingue em diversos aspectos de biopics mais corriqueiras. Tem mais vibração, escolhas estéticas menos óbvias e uma maior constância de ritmo. O filme pulsa.
Logo no início, vemos o pequeno Ney na mata, como se fosse parte dela. As cenas são entrecortadas pelo cantor já adulto, em um palco, igualmente à vontade naquele local. Eis aí o ponto do filme: Ney Matogrosso sempre teve enorme afinidade com o mundo natural, onde os animais só conseguem viver em liberdade. E, quando no palco, aquele mesmo Ney se lança no desconhecido com o mesmo desprendimento que uma ave em pleno voo. Impossível de se imaginar acuado, ou morreria o artista – e talvez até o homem.
É sob a égide dessa necessidade de ser livre que Ney se formatou, enquanto ser humano e enquanto figura pública. Liberdade, inclusive, para nunca levantar bandeiras: sua luta política sempre foi a de um lobo solitário, passando sua mensagem sobretudo por sua atitude no palco e pelo seu repertório.
O filme transmite essa mensagem com bastante destreza, até paixão. Esmir Filho consegue ter soluções interessantes para a maior parte das situações, e em dois momentos ele recorre a referências diretas a obras de outros cineastas que, em um primeiro instante, soam como saídas fáceis para o que ele próprio não teria conseguido resolver enquanto artista. Curiosamente, porém, essas cenas se convertem em dois dos pontos altos do filme, porque ultrapassam a mera citação cinéfila e se tornam uma reapropriação e um prolongamento do que outros cineastas já fizeram.
Em uma delas, quando alude a “Inverno de Sangue em Veneza”, de Nicolas Roeg, de 1973, vemos cenas em que Ney e seu primeiro namorado fazem sexo, intercaladas com imagens imediatamente após o coito, com ambos se vestindo. Em Roeg, são trechos bonitos, líricos, sobre a rotina de um relacionamento feliz, mas no novo contexto da cena, existe o senso de uma relação amorosa que, de saída, já está fadada à rotina, às regras dos casais normativos comuns. No caso de uma alma livre como a de Ney, isso se converteria em um aprisionamento inviável.
A outra é quando Ney está na Aeronáutica, e os corpos masculinos se exercitando são uma piscadela a Claire Denis e seu “Bom Trabalho”, de 1999. Dez entre dez cineastas queer adoram fazer essa mesma alusão quando querem mostrar torsos de homens desnudos, mas Esmir Filho vai além. O quartel idealizado pelo cineasta é sobretudo um ambiente de homoerotismo fervente, sem nada de um local repressor. Ney e os colegas conversam como se estivessem em um eterno flerte, uma dança de acasalamento não consumada – ali, o filme ilustra o desejo ao mesmo tempo proibido e escancarado no meio militar de maneira não naturalista, estilizada, em um registro sexy e até certo ponto delicado. Além de camp, é bem verdade, mas as cenas estão entre as melhores do longa.
Mas “Homem com H” é um filme fundamentalmente comercial, então chamas criativas como essas não podem passar de centelhas. Assim como a sexualidade das cenas mais impudicas – que são muitas – também precisa seguir certas regras de incandescência. Vê-se quase tudo nas cenas de sexo, mas da genitália humana há apenas (literalmente) sombras. Frustra um pouco ver o filme ir tão longe em sua liberdade sexual, mas paralisar sua audácia quando a câmera capta mais do que o grande público toleraria; afinal, ainda não se pode ser totalmente livre. Ainda assim, o longa já configura um belo avanço.


Crítica: "Baby"

 Texto publicado em 8.jan.25 na Folha de S.Paulo , a quem pertencem todos os direitos



O filme “Baby” tem por protagonista um rapaz de 18 anos, um “bebê” desde sempre maltratado pela vida, mas que finalmente pode decidir por conta própria seu destino após se tornar maior de idade.
Wellington é um homossexual pobre, pardo, de família ausente, e como não teve muito estudo, sua maioridade não lhe traz muitas opções a seguir que não seja a prostituição ou o narcotráfico. E é justamente se fazendo valer de seu aspecto físico juvenil que ele escolhe Baby para ser seu nome de luta, nas duas funções.
Em um cinema pornô do Centro de São Paulo, ele conhece Ronaldo, michê quarentão que inicia com ele uma relação tanto amorosa quanto paternal. É um filme sobre gente socialmente escanteada, que não tem relevância aos endinheirados a não ser por suas prestações sexuais ou por servirem de provedores de drogas.  
Dirigido por Marcelo Caetano, o filme se alinha entre diversas produções de uma filmografia contemporânea que se poderia chamar de “cinema de afetos”. Ou seja: sobre personagens tradicionalmente rejeitados pela sociedade, por questões sexuais, raciais, econômicas ou de gênero, mas que toda uma parcela de jovens cineastas mostra fora do papel exclusivamente de vítimas, preferindo enfocá-los como grupos resistentes. E que necessitam de uma rede afetiva, em geral composta por pessoas igualmente marginalizadas, para conseguir superar os preconceitos e mesmo a fúria de uma sociedade conservadora e elitista.
No caso de “Baby”, essa rede pode existir tanto no grupo de LGBTQIA+ da praça da República, que no intervalo entre apresentações de “voguing” invade cinemas pornôs para roubar pertences dos homens que vão ali para fazer pegação.
E há também a família informal de Baby, formada por Ronaldo, seu filho, sua ex-mulher e a namorada dela. A família que não é sanguínea, mas organizada por pessoas que possuem um sentimento mútuo de compreensão da própria situação marginal, de que são párias sociais.
É sempre muito bonito e importante ver o cinema reafirmar esses laços afetivos, mas a verdade é que, de algum tempo para cá, isso deixou de ser um gesto de coragem política e se tornou uma espécie de tônica do cinema queer nacional (e mundial, diga-se). Moralmente, filmes como “Baby” são inatacáveis, mas artisticamente, denotam um certo cansaço estético e uma ardilosa automanutenção dentro de uma redoma identitária que, em outros tempos, denotava rebeldia, mas que há anos vem se tornando uma zona de conforto. Quando não um clichê.
E o filme tem um problema relativamente comum a diretores que se encantam em demasia com seus musos – e que Caetano já havia demonstrado em seu longa anterior, "Corpo Elétrico", de 2017: passa a acreditar que todos os espectadores terão pelo protagonista o mesmo nível de encantamento e admiração que o cineasta possui. João Pedro Mariano, que interpreta Wellington, é um rapaz bonito e carismático, mas Caetano o utiliza no filme como se fosse simplesmente irresistível, unânime em seu poder de sedução. A ponto de praticamente cegar o diretor para outros pontos do filme que talvez merecessem mais empenho.
Por exemplo: existe um aspecto um bocado confuso – até reprovável – no que se pretende como uma postura política do filme. Tomemos a cena da invasão do cinema pornô pelo grupo queer. Eles entram sem pagar, roubam os clientes, e o filme mostra o ato como um gesto saudavelmente subversivo.
Mas o problema é que, dentro daquele cinema de quinta categoria, estavam homens provavelmente tão desvalidos como eles próprios – bichas velhas, pobres, incapazes de conseguir exercer sua sexualidade fora daquele escuro. O lacre dos ladrões é feito em cima de pessoas que estão no mesmo barco que eles, com a desvantagem de precisarem pagar se quiserem fazer sexo. É um desvalido prejudicando outro desvalido, mas julgando-se uma grande ameaça ao patriarcado – quando sequer faz cócegas ao status quo.
O filme seria bem mais revolucionário se nos mostrasse mais essas pessoas que vivem às sombras, nos cinemas pornôs imundos de centro de cidade. Faz isso de maneira muito superficial – a filmografia queer está ainda em grande falta com as “bichas velhas”, ou mesmo com as que mal entraram na meia idade.
Caetano tinha à mão uma excelente oportunidade de explorar melhor um personagem assim: Ronaldo, interpretado com brilho por Ricardo Teodoro. É uma figura importante no longa, mas que não parece suficientemente desenvolvida, o que nos faz pensar em uma grande oportunidade desperdiçada. Talvez o filme tivesse mais novidade, e fosse de fato subversivo, se Ronaldo fosse o protagonista – e, em vez de “Baby”, se chamasse “Daddy”.