terça-feira, 21 de novembro de 2017

Crítica: "Mar de Rosas" (livro '100 Melhores Filmes Brasileiros')

A crítica abaixo foi publicada no livro "100 Melhores Filmes Brasileiros", lançado em 2016 pela editora Letramento (coordenação de Paulo Henrique Silva). A edição traz críticas sobre os nossos filmes mais importantes, de acordo com ranking promovido por críticos da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Eu fui encarregado de escrever sobre o ótimo "Mar de Rosas" (1978), da cineasta paulista Ana Carolina. Segue o texto abaixo.

Norma Bengell no início de "Mar de Rosas"

Tudo é ironia em "Mar de Rosas", a começar pelo título. A promessa de um estado de coisas ideal, alegre e perfeito não poderia estar mais distante do que o longa de Ana Carolina oferece. A primeira cena após os créditos já introduz o espírito anárquico que se imporá por todo o filme: vê-se um líquido farto e espumoso invadir a tela. Mas nada do "mar" sugerido no título; é um fluido bem menos nobre – uma poça de urina, caudalosa e amarelada, jorrada por uma adolescente (e respingando em sua sandália). A jovem, Betinha, se alivia em uma parada na viagem que faz com os pais na via Dutra, uma pausa que também atenua seu tédio mortal diante das discussões conjugais nos bancos dianteiros.

Na primeira parte do filme, a real protagonista parece ser a mãe da garota, Felicidade (outra ironia), uma quarentona em crise já cheia de aturar o marido machista e insensível. Em um hotel no Rio, onde o casal tenta se acertar, o convívio é impossível; em um rompante de ódio (e os personagens têm vários, a todo instante), Felicidade tenta matá-lo e volta à estrada, levando consigo a filha (já não tão entediada assim).

O filme tinha tudo para se tornar, a partir daí, um drama libertário, de inspiração e motivações feministas, bem ao gosto de um certo cinema “no feminino” praticado nos anos 70. Mas Ana Carolina mostra um louvável desapego a qualquer modismo – e parece menos ainda interessada em permitir que seu longa se torne o que o público espera dele; quem dá as cartas é ela, e não há qualquer possibilidade de negociação. A essa altura, "Mar de Rosas" já virou um road movie absurdista, com mãe e filha tentando voltar a São Paulo em uma viagem marcada por toques de suspense, mas sobretudo por um humor desconcertante, ora buñueliano ora à moda de Ionesco.

No caminho, Betinha constantemente faz sabotagens contra a mãe, com graus variadíssimos de crueldade. É divertidamente pueril ao desenhar fios de barba no queixo de Felicidade, atrapalhando-a no trânsito, mas atinge níveis de assombrosa truculência ao atear fogo no vestido e nas pernas da própria mãe em um posto de gasolina (chegará ao ápice da brutalidade mais adiante, ao despejar um caminhão de terra sobre o corpo materno). Curiosamente, porém, o longa não parece vitimizar Felicidade e nem condenar Betinha; ao fim de cada "travessura" da menina, a diretora toca o filme adiante, como se nada daquilo tivesse lá tanta importância. Como em um cartoon, em que bombas explodem na cara dos personagens, na cena seguinte já está tudo certo – e segue-se em frente.

O circo de personagens excêntricos se completa quando mãe e filha conhecem Orlando, um sujeito rude que lhes dá carona na estrada, e um histriônico casal de classe média interiorano, Nióbi e Dirceu, que eles encontram em um vilarejo no caminho. Em breve, o inusitado grupo estará confinado no huis clos de uma sala de estar pequeno-burguesa, com todos falando ao mesmo tempo chavões e frases de efeito – e ninguém prestando atenção a nada dito pelos demais.
Ali, de repente o público passa a notar que Felicidade não é o centro do filme, mas sim Betinha, a espectadora enfastiada dos fatos grotescos e surreais (dos quais, é bem verdade, ela também participa) naquele universo de loucos. Todo o nonsense que surge na tela é a percepção daquela adolescente sobre uma realidade que, para ela, não faz o menor sentido.

"Mar de Rosas" estreou em circuito em 1978, e não se pode ignorar o contexto sócio-político em que o longa foi concebido e lançado. Ana Carolina já contou que o filme é bem pessoal, inclusive no sentido freudiano de que toda garota, alguma vez, já quis a morte da própria genitora (a mãe da cineasta, aliás, é creditada como uma das roteiristas – o script traz trechos de cartas escritas por ela). Mas no filme, o ódio incontido de Betinha em relação à figura materna ganha significação (e ressonância) para além das explicações meramente psicanalíticas. Em um nível mais simbólico, a ira da menina pode ser apreendida como parte de um movimento bem mais amplo, geracional, de um grupo de jovens que, entre meados e fins dos anos 70, estavam sedentos por um novo mundo.

Para aqueles jovens, as gerações anteriores sugeriam a ideia de decrepitude. Não se identificavam em nada com os "velhos" de tendência mais conservadora, que simbolizavam a caretice comportamental e a repressão (apoiando, inclusive, a terrível ditadura que dominava o país). Mas tampouco os "velhos" libertários, os que resistiram e lutaram diretamente contra a opressão, eram um exemplo para esses jovens; àquela altura, as revoluções sessentistas e o flower power cheiravam a mofo e derrota – os combatentes de 1968 foram ineficazes ao articular seu próprio discurso, deixando seus herdeiros sem compreender em quase nada o sentido de sua luta. No contexto mundial mais materialista e menos idealista da segunda metade dos anos 70, a juventude desejava ruptura total.
Não é à toa que, no fim, Betinha empurra de um trem em movimento os dois representantes dessa "velharia" a ser superada: Orlando e Felicidade, os dois símbolos opostos de um mundo "arcaico". Tal gesto – seguido de uma bem dada "banana" ao espectador – prenuncia a geração que estava por vir a partir dos anos 80: jovens individualistas, hedonistas, avessos à “chatice” dos discursos politizados.

Mas "Mar de Rosas" é, ao seu modo, um filme engajado – sua ação "política" está em sua anarquia, no seu deboche. E é prodigiosa a inteligência com que a diretora constrói (e filma) grande parte das situações dramáticas, de cunho metafórico. Mesmo as cenas que parecem mais caóticas são, no fundo, bastante estruturadas, sobretudo as na casa de Nióbi e Dirceu. Ali, o filme parece perder de vez qualquer conexão com a lógica, mas em cada gargalhada aparentemente fora de hora, em cada frase repetida pelo que parece ser mero cacoete, em cada divagação pretensamente descontextualizada, há uma intenção de mordacidade, de sátira por trás. 

Os grandes Ary Fontoura e Myriam Muniz em "Mar de Rosas"

E há cenas de fato memoráveis: como esquecer quando Myriam Muniz, sentada sobre o monte de terra em sua sala, é tomada por uma epifania religiosa e faz seu sermão da montanha particular, esfregando poeira no rosto e bradando sobre a necessidade de "o iníquo ficar inócuo, o histérico ficar histórico"? Ironicamente, porém, é também naquele ambiente que o longa traz suas maiores fraquezas; a certa altura, o excesso de ruídos, ideias e alegorias começa a se tornar um peso que a estrutura criada por Ana Carolina nem sempre consegue segurar – o ritmo decai.

Os atores, porém, sustentam o espetáculo com brio. A grande Myriam Muniz recebe em Nióbi uma personagem sob medida para seu talento expansivo (ela não fala: berra). Ary Fontoura, como Dirceu, consegue a proeza de não se deixar eclipsar, assim como Otávio Augusto, eficiente como o truculento Orlando. E o que dizer de Cristina Pereira, como Betinha? Ela não estava longe dos 30 anos quando o filme foi feito, mas está tão perfeita em cada detalhe, nos gestos juvenis e nas expressões de escárnio, que ninguém percebe que ela não é uma adolescente. E é notável a entrega de Norma Bengell à personagem Felicidade, sobretudo se pensarmos que ela talvez fosse uma escolha duvidosa para o papel (às vezes passivo demais para a persona que a atriz criou ao longo da carreira). Mas Norma alterna com sabedoria seus instantes de vulnerabilidade e de força; é um de seus grandes momentos.

Olhando hoje, à distância, soa quase heroico que uma mulher cineasta (ainda raras no Brasil dos anos 70), em seu primeiro longa de ficção, demonstrasse tamanha autoconfiança em sua capacidade como realizadora. Ana Carolina não era uma iniciante: já tinha no currículo dezenas de documentários, como "Getúlio Vargas". Mas segurou firme sua primeira chance ficcional, sem abrir mão de suas intenções iniciais nem de sua visão de "autora" – algo que, aliás, ela manteria ao longo de toda sua admirável carreira. Dirigiria, inclusive, mais dois filmes nos anos 80 ("Das Tripas Coração" e "Sonho de Valsa") que comporiam com "Mar de Rosas" uma trilogia personalista. Mas jamais outra vez ela conseguiria resultados tão satisfatórios como em sua ficção de estreia (embora anos mais tarde, com “Amélia”, ela chegasse bem perto disso).

Em "Mar de Rosas", Ana Carolina não nega sua identificação com Betinha: prega peças o tempo todo no espectador, também com níveis variados de violência. O filme parece aqueles sonhos (pesadelos?) que começam com alguma lógica, mas que escapam com tamanha desenvoltura ao nosso "controle", tomando rumos tão inusitados e cedendo espaço a tantas digressões, que, por fim, já mal nos lembramos de como tudo começou. Mas é um "pesadelo" que temos com prazer – meio masoquista, meio sádico, mas definitivamente um prazer. O longa não tem antecessores diretos (ao menos facilmente identificáveis) e não parece ter deixado descendentes, sequer entre os da trilogia; é ímpar. E aos que tentam incluí-lo em rótulos ou categorizações fáceis, ele repete o gesto final de sua protagonista: dá uma "banana" e ri, com deboche.

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