sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Crítica: "This Is Not Dancin Days"

(dir. Julia Katharine, 2020)


Há filmes em que a câmera se esforça, busca, procura, espera... Vai atrás o tempo todo de algum tipo de frescor, de uma fagulha que torne o material original digno de ficar registrado para sempre... mas esse “algo mais” simplesmente não aparece. Mas muitas vezes, basta a ideia certa, o ator adequado e acreditar que ambos são uma mistura interessante o suficiente para seduzir o acaso, que ele acaba intervindo – e o que era para ser uma cena banal se torna um pequeno milagre.

O curta “This Is Not Dancin Days”, de Julia Katharine, tem pelo menos uma cena que é um desses pequenos milagres – e dado o esquema de produção caseiro e o fato de o filme ter sido feito durante a pandemia, em tempo recorde, o curta em si também acaba sendo um. Aliás, o fato de não ter essa pretensão de captar alguma coisa muito extraordinária já ajuda o filme: existia ali um encontro de sensibilidades e uma desobrigação de perfeição (embora jamais um desleixo) que cria uma atmosfera muito propícia para que o acaso opere livremente. E ele o faz.

O filme é sobre uma atriz em isolamento social, que fala a uma diretora sobre sua ansiedade a poucas horas de sua primeira live. Interpretada pela sempre excelente Gilda Nomacce, a personagem é, a rigor, a própria Gilda, mas na verdade é um mix entre ela mesma, Julia Katharine e alguma atriz qualquer em situação semelhante. A tal cena miraculosa se dá quando Gilda fala, quando reflete sobre seu método de composição artística, sobre sua tendência a elaborar demais as coisas, com minúcia em excesso, e nada surgir dali – e, de repente, sua máscara de proteção facial cai sobre um cálice de vinho. Gilda dá uma leve ajeitada, raciocina por alguns segundos e, meio de bate-pronto, deixa sair: “Não parece uma freira?”.

É justamente desse tipo de falta de minúcia na criação artística, de uma espontaneidade que é capaz de fazer surgir uma freira onde menos se espera, é que às vezes um artista precisa para que sua arte, enfim, aconteça. Muitas vezes, ele já tem o material todo dentro de si – em sua mente, no seu coração, ou seja lá onde estiver: falta apenas se entregar ao risco (e ter os meios materiais, evidentemente) e colocar aquilo tudo para fora pela via da arte. É um “aquilo tudo” que muitas vezes angustia um criador porque está aparentemente imaturo, existindo apenas no plano da intenção ou de um sentimento. É difícil até de definir (e a fala algo desconexa de Gilda na cena ilustra isso muito bem), mas que finalmente “acontece” quando o artista, enfim, entende que chegou a hora de partir para a autoexpressão.

Não é que não exista no cinema de Julia Katharine uma programação ou um roteiro, muito pelo contrário. Seu trabalho com o cineasta Gustavo Vinagre, ao que parece, a instigou a seguir pela mesma via criativa que ele tem trilhado em seus três longas: em 2018, ela protagonizou um filme dele com um princípio parecido, “Lembro Mais dos Corvos”. Em cena, Julia era ela mesma (ou uma variação de si própria – assim como Marcelo Diorio em “A Rosa Azul de Novalis” e Wilma Azevedo em “Vil, Má”): conversava com a câmera e falava de sua vida – a experiência como artista, como mulher trans, como ser humano em geral, sempre provocada por questões do próprio diretor (que não aparece em cena, mas cuja voz ouvimos), ao que ela responde de forma aparentemente improvisada.

A escola é boa: o êxito do cinema de Vinagre está bem nesse jogo com o espectador, na dúvida entre o que pode ser fala de um roteiro previamente escrito, o que é um eventual improviso do protagonista, o que é uma performance de alguém sobre si, o que é real mas parece script, o que é script e parece real, e por aí vai. E, desta vez no papel de diretora, Katharine usa o mesmo princípio, e o curta transita sempre nessa zona nebulosa típica da performance, entre a realidade e a encenação – embora muitas vezes as falas tenham sido obviamente escritas, e alguns “acasos” provavelmente tenham sido encenados (a própria cena da freira também pode ter sido roteirizada, mas parece tão natural que, se foi ou deixou de ser, isso já não tem mais qualquer importância).

Talvez em um momento que não o de uma pandemia, em que as incertezas naturais das pessoas são levadas à estratosfera, “This Is Not Dancin Days” não tivesse a mesma força: o curta ganha uma interlocução com o público extremamente forte por ter sido rodado e lançado no meio de uma crise como a que vivemos (aliás, em que fase dela estamos? Gilda já começa o filme mostrando a nossa confusão: “É a primeira vez q vou me apresentar depois da pandemia”, ela diz, corrigindo-se em seguida: “Entre a pandemia... Na pandemia...”).

É claro que o filme só existe por causa da pandemia – ele está em seu cerne dramatúrgico e em seu espírito. A ansiedade de uma atriz nas horas que antecedem sua primeira live é um excelente achado para um ponto de partida de um filme pandêmico: eis uma intérprete tensa com sua estreia em um nova modalidade de produto audiovisual, em que vários anônimos de repente se tornaram especialistas, enquanto ela, atriz profissional, ainda é uma virgem.

A live não seria, no fim das contas, também mais uma modalidade de “performance”, como as do teatro, da TV ou do cinema? No caso, a diferença é que Gilda ainda não estreou nesse formato, e se uma estreia é sempre fator de ansiedade, ela se duplica por acontecer em um campo novo, uma “moda” que parece ter vindo para ficar, em que amadores já estão mais do que estabelecidos, mas que para ela é um terreno totalmente inexplorado. E para alguém que trabalha justamente com performance, caso não se saia bem nessa sua primeira... o que será dela a partir dali?

Mas a verdade é que o nervosismo da atriz diante da primeira live é um ponto de largada, apenas, para o filme falar em angústias mais amplas. A Gilda do filme tem uma série de questões pessoais – de natureza profissional (“nunca fiz um monólogo no teatro”), mas também existenciais – sobre as quais ela fala de forma quase sempre meio genérica, com frases não 100% alinhavadas ou concluídas, o que mostra sua dificuldade (dela e da diretora, provavelmente) em articular seus pensamentos e sentimentos.

Não há ser vivo que não se identifique com Gilda quando ela chora e diz: “Vai passar, vai passar, mas... Não sei se vai passar”. A identificação é obviamente maior porque enfrentamos uma pandemia, quando tudo no mundo está imprevisível, mas também se dá em um nível muito mais profundo e abrangente. É óbvio que não podemos menosprezar ali o específico da situação de uma atriz falando de questões bem pontuais da falta de perspectivas na área artística causadas pela necessidade de isolamento social - e agravadas pelo desastroso desempenho do atual governo na área da cultura. Mas é de angústia humana, em um nível mais universal, que ela está falando - e angústia é algo sobre o que nós, pessoas, em geral não costumamos ter completo domínio.

O choro ajuda, no entanto, a suavizar a vida. As coisas também ficam menos insuportáveis se tomamos algumas atitudes banais, como se entregar a alguns devaneios mais descompromissados, observando o que nos cerca de forma menos pragmática e mais poética (ver uma freira em um copo; enxergar os buracos da casinha da planta como se fossem olhos/bocas). Ou mesmo buscar sentido em situações que são fruto da aleatoriedade (a escolha do caderno com a capa da Barbie; a numerologia de uma determinada data). 

Mas o que certamente torna tudo mais fácil são os encontros, e a impossibilidade deles durante a pandemia é uma limitação das mais terríveis. Mas quando Gilda encontra Katharine e ambas se consolam, as duas parecem ganhar força – e essa troca de energia entre ambas é quase palpável ao espectador; o filme, ali, se eleva. Elas falam sobre Julia Matos, a ex-presidiária da novela “Dancin’ Days” (1978-79) vivida por Sonia Braga, que luta para se reerguer após passar 11 anos na prisão – e que, mais adiante na trama, sofre uma reviravolta: fica rica e linda, e causa inveja a todos ao brilhar com seu corpo livre na pista de dança, com suas meias de lurex.

Mas não: a vida de Gilda não é “Dancin’ Days”. Mas a de qual entre nós de fato é? Nem a da própria Sonia Braga: todos somos, no fundo, Julias Matos da vida real, tentando achar o caminho da pista de dança, atrás de uma meia de lurex que só eventualmente conseguimos encontrar. A vida não consiste em brilhar na discoteca: é a busca por isso, simplesmente.

Mas o encontro também é terapêutico quando Gilda e Katharine falam de coisas mais banais – sobre perucas, um sapato que Gilda afanou após um de seus trabalhos (e que Katharine jura que não incluiria no filme). Aliás, o humor se mostra fundamental, e a montagem de João Marcos de Almeida ajuda bastante: na cena sobre o caderno da Barbie, há uma hilária menção a um trabalho de Gilda com uma tal Regina (na vida real, Nomacce já contracenou com Regina Duarte em um filme, quando a ex-atriz global ainda não era a figura massivamente rejeitada pela classe artística, devido ao seu alinhamento ao governo Bolsonaro e sua patética passagem pela secretaria da cultura durante a pandemia).

Uma das forças do estilo de Gilda Nomacce é jamais tentar esconder por completo as inseguranças dela própria na composição de suas personagens, e nunca antes em sua carreira isso foi tão positivo como aqui. Suas fragilidades (encenadas ou não, porque ela também é uma atriz com sólidos recursos técnicos) a tornam desta vez hipnótica como nunca: é um filme de pouco mais de 9 minutos, mas é seguramente um de seus melhores momentos em sua (admirável) carreira.

E Julia Katharine também dá um passo adiante enquanto cineasta – seu curta anterior, “Tea for Two”, transbordava ternura e sensibilidade sobre um tema áspero, mas em termos formais era um bocado convencional. Aqui, embora partindo de uma matriz criativa ainda muito escorada na influência de Gustavo Vinagre, ela encontra uma forma de se (auto)expressar mais arejada, sem as amarras de um roteiro mais tradicional. Se em um filme tão pequeno ela conseguiu abarcar tantos mundos, tantas ideias e tantas emoções, o acaso não há de lhe negar futuramente novos pequenos milagres. E, provavelmente, até grandes.



6 comentários:

  1. Adorei! Gosto muito desta atriz e não conhecia seu blog. Tem o link do curta? Abraços e parabéns pelo texto:).

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    1. ola, Felipe, obrigado.
      Aqui vai o link:
      https://www.youtube.com/watch?v=nyi0huSNLSk
      Abraçao

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  2. Bruno, boa noite!
    Você viu o documentário "Chão" e "Indianara" gostei muito:).
    Abraços.

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  3. Faltou o ponto de interrogação acima... :)?????

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