terça-feira, 3 de novembro de 2020

Críticas-pílula: Mostra de SP 2020

Como não recebi credencial para cobrir a Mostra de São Paulo 2020 (em Cannes, Veneza e Berlim eu sempre consigo, mas não em SP... vejam vocês como são as coisas), vi muito pouca coisa. Mas teço aqui alguns comentários sobre alguns que vi (ou que já tinha visto em Berlim). São críticas-pílula, que mais que dissecar os filmes, servem como indício do que achei de cada um. Leiam abaixo: 

 


DIAS (dir. Tsai Ming-liang)

O Ming-liang de praxe, com aquele cinema que busca estimular no espectador uma nova maneira de se relacionar com o tempo, mostrando o "nada" acontecer -- e esperando que o público encontre alguma poesia que ele, o cineasta, elaborou só parcialmente. Mas aqui o diretor tem mais sorte que de hábito: a poesia de fato acontece, seja em uma extraordinária sequência com um gato atravessando a tela ou, sobretudo, na melancolia dolorosa do olhar de Lee Kang-sheng, em notório sofrimento físico causado pela doença do ator na vida real. Mas o grande coringa é também um dos truques mais velhos -- e baixos -- do sentimentalismo barato: uma caixinha de música. Mas é uma manipulação emocional que funciona tão maravilhosamente que o espectador, mesmo 100% ciente da armadilha, sai da sala arrebatado, achando "Limelight" a música do ano 

  

MALMKROG (dir. Cristi Puiu)

É daqueles filmes tão embebidos de violência simbólica (os grandes temas universais; os movimentos de câmera minimalistas; as falas em francês) que faz as pessoas terem uma paciência e uma boa vontade que, diante de outra obra, jamais teriam. Vi só 20 minutos, então qualquer "crítica" mais completa seria uma leviandade da minha parte. Mas, do que vi, tudo beira o insuportável: do formalismo falsamente contido da câmera às personagens falando francês com uma pompa odiosa, como os estrangeiros que querem passar por "cultos" costumam falar a língua (pronunciando todas as sílabas corretamente e com uma ênfase que os franceses de verdade jamais pronunciariam)


MOSQUITO (dir. Joao Nuno Pinto)

"1917" goes to Africa. A principal diferença é: sai o plano-sequência único, entra uma culpa colonial gigantesca. Um filme peso mosca 


DAU. Natasha (dir. Ilya Khrzhanovskiy, Jekaterina Oertel)

Uma das grandes experiências cinematográficas do ano. Um filme discutível em termos de ética, mas não em termos artísticos. Um retrato de um país totalitário por meio da história de uma reles ninguém – o longa demole qualquer possibilidade de alguém achar que o socialismo soviético algum dia trouxe algo próximo a “igualdade social” entre as pessoas. Natasha é uma mulher de força admirável (a do filme e a da vida real). Não acho que seja miséria humana porn ou misoginia pura e simples; é miséria humana e misoginia pra falar do quanto uma mulher (ou mesmo um homem) pode ter uma existência miserável dependendo de quem está no poder.

  

DAU. Degeneration (dir. Ilya Khrzhanovskiy, Ilya Permyakov)

É a mesma mensagem de Dau Natasha, só que em um filme expandido para seis horas (melhor ver em episódios). Mas é um pouco menos lapidado e não foca tanto no estudo de uma personagem; o interesse aqui é mais nos aspectos gerais de um microcosmo totalitário – tem cenas de uma violência apavorante, mas não consigo pensar em outra forma de abordar os temas do longa (a cena do porco, no entanto, é execrável). Mas o filme é outra das grandes experiências fílmicas do ano. Tem um personagem que valeria um estudo, o terrível neo-nazi Maxim

(há outro filme DAU, NEW MAN, que foca justamente nele. Mas o longa, disponível no site do projeto DAU, é um estelionato: é basicamente uma repetição de cenas do Degeneration, com só uns 10 minutos de cena em que de fato temos um pouco mais de substrato pra compreender o tal Maxim, ou algo que o torne próximo a um ser humano. Mas é material de extra de DVD – ou poderia muito bem estar incluído no Degeneration, que, em vez de 6h09min teria 6h19min – quem iria se importar?)

 

 

FÁBULAS RUINS (dir. Damiano e Fabio D’Innocenzo)

A tradução do título resume o conteúdo do filme de forma muito mais hábil do que eu poderia

 

VERLUST (dir. Esmir Filho)

No começo, parece uma grande tirada de sarro. Mas depois de um certo tempo, fica claro que o diretor estava mesmo levando tudo aquilo a sério, então o filme deixa de ser interessante e se torna aflitivo. O longa é puro fetiche do diretor: pelo tédio das elites, por Marina Lima, por Alfredo Castro, por roupas fashion, pela casa à beira-mar, por uma pretensa sexualidade fluida, pulsante e irrefreável da alta burguesia. Mas o filme é de uma assepsia inacreditável. E para um longa sobre a incomunicabilidade, cheio de meio-tons, símbolos vagos e silêncios estratégicos, eis que de repente o roteiro tem a pachorra de ilustrar o isolamento da protagonista com música de versos da literalidade de um “Tudo o que eu posso te dar/É solidão com vista pro mar”

 

#eagoraoque (dir. Jean-Claude Bernardet, Rubens Rewald)

Parece uma versão brasileira 2020 do “A Chinesa”, do Godard: a esquerda tenta planejar uma revolução, mas é atrapalhada demais pra se articular. É um filme pequeno e pouco ambicioso, então tem leveza – é um filme sobre política que desliza. Mas o personagem vivido pelo Bernardet é de uma melancolia atroz. Safatle é um excelente ator ruim – ele está simplesmente perfeito na pele de “Vladimir Safatle interpretando ele mesmo”

 

MASTERS IN SHORT (dir. vários)

Que conceito amarra esse longa formado por 5 curtas, sem a menor relação formal ou temática entre um e os outros? (resposta provável: pra juntar os filmes curtos em um produto que estimulasse o público a pagar R$ 6). O do Jia Zhangke vale pela atualidade, mas após a pandemia, seu sentido deve evaporar tão rápido como o filme da nossa memória. Os dois de Guy Maddin competem entre si: qual deles é mais pavorosamente ruim? (como alguém ainda pode se deixar envolver pela vulgaridade estética de Maddin?). O de Loznitsa já está um patamar acima, e tem alguns bons instantes garantidos pelo material de arquivo, com celebridades das artes e da política e os rituais da ida para a ópera -- nos faz pensar no quanto de ridículo e ultrapassado certas convenções sociais possuem. Mas a montagem é às vezes meio atrapalhada e sem a inventividade que os filmes do cineasta sobre “found footage” costumam ter -- sem contar que, aqui, ele claramente não sabia como encerrar o curta. O melhor é mesmo o de Jafar Panahi, sobre a cantora escondida -- é de fato deprimente ver o quanto a sociedade iraniana é capaz de tolher as possibilidades da vida de uma mulher. Bem triste


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