segunda-feira, 7 de março de 2016

Crítica: "A Bruxa"

(The Witch, 2015), de Robert Eggers*

Anya Taylor-Joy, em cena tensa de "A Bruxa"

*[Este texto contém spoilers]

As pessoas têm feito a propaganda errada de "A Bruxa". Antes de assistir, eu já tinha ouvido frases como "é o filme que redefine o cinema de horror" ou então "você acha que já sentiu medo no cinema? Espera só até ver 'A Bruxa'...". O longa de Robert Eggers realmente é um terror acima da média, mas talvez isso seja o que de melhor se possa dizer sobre ele enquanto "filme de gênero". Seu grande diferencial não está aí.

A trama se passa nos EUA coloniais, no século 17. Uma família inglesa extremamente religiosa se afasta de uma comunidade de colonos e tenta a sorte plantando milho em uma área próxima a uma floresta. Mas a colheita vai mal, e fatos estranhos passam a acontecer. Quando o filho mais novo desaparece na mata (enquanto sua irmã mais velha, a adolescente Thomasin, cuidava dele), um clima de histeria toma conta do clã. Em breve, todos acharão que a primogênita é a culpada por todos os problemas: ela seria uma bruxa.

O filme é cheio daqueles detalhes que causam arrepios no público. Há uma cabra que solta sangue na hora da ordenha, há criaturas idosas e decrépitas que surgem do nada no meio da mata, não há sequer um dia de sol. Dois dos filhos do casal são gêmeos travessos e falastrões, que dizem coisas assustadoras e aumentam ainda mais o clima de paranoia naquele núcleo familiar. A fotografia é pouco iluminada, em tons austeros – o filme todo, aliás, é uma reconstituição de muito alto nível do que devia ser os EUA-colônia daquele período histórico: fala-se, move-se e age-se como em uma outra época.

Era uma terra em que pessoas tentavam triunfar por conta própria (e ali nascia o sentimento meritocrático que se tornou uma marca tão profunda na sociedade americana de hoje). E sobretudo um local onde o medo dava as cartas: conhecia-se muito pouco daquela nova terra, então tudo o que não possuía explicação lógica aparente caía na vala comum do sobrenatural, do satânico, da magia.

É aí que o filme se destaca: mostra como uma acusação, quando repetida ad eternum em uma terra dominada pelo obscurantismo, acaba se tornando uma verdade. No caso da jovem Thomasin, ela foi tão insistentemente acusada por todos de ser uma bruxa que acabou assumindo ela mesma esse discurso que lhe impuseram: por fim, se torna de fato uma, em uma extraordinária cena catártica. Também isso diz muito sobre a formação social americana, em que discursos variados sem base científica – mas não raro embasados na fé religiosa – acabam se tornando "verdades" de tanto que foram recorrentemente repetidos. Muitas das crenças mais sórdidas, desumanas e preconceituosas por parte dos americanos de hoje têm origem semelhante. E muitos dos que se assumem "bruxos" e "bruxas" hoje em dia mal se dão conta disso...

Para propor esse comentário sobre a América de hoje, o filme faz uso de contos e narrativas antigas envolvendo o medo de colonos ingleses nos EUA – histórias de bruxarias, fatos inexplicáveis e eventos sobrenaturais. Muitos deles surgem no filme como interessantes elementos metafóricos de algumas situações específicas do convívio familiar. Há, por exemplo, o desejo sexual de um irmão pela irmã – o que prontamente causará punição aos dois envolvidos: o garoto se perderá na floresta (e não resistirá ao flerte de uma feiticeira cruel – uma alegoria para a sedução da própria irmã), enquanto a menina será culpada pelas desgraças da família, sendo considerada uma bruxa. Há também uma curiosa abordagem do confronto muitas vezes problemático entre uma mãe a uma filha, com elementos fortemente freudianos em questão. O filme lembra nessas cenas "Carrie, a Estranha" (e em vários outros momentos, é impossível não pensar em outros longas famosos, como "O Exorcista" e "As Bruxas de Salém").

Nem tudo de sobrenatural no filme, porém, se encaixa no campo das metáforas, e a opção por simplesmente aceitá-las como parte das narrativas sobrenaturais antigas é uma saída em geral fácil, que não está à altura da proposta mais geral do longa de se pretender uma alegoria da formação social americana. O roteiro merecia um pouquinho mais de esforço nesse sentido, muito embora o que chegou à tela não seja de modo algum ruim.

O cineasta Robert Eggers mostra talento visual em seu longa de estreia, embora o filme tenha algumas falhas inesperadas – há uma cena estranhamente editada que envolve um bode atacando o pai da família que não consegue esconder as limitações econômicas deste filme de baixo orçamento (um dos produtores, aliás, foi o brasileiro Rodrigo Teixeira, que também está por trás de projetos indie bem conceituados, como "Frances Ha" e "Mistress America").

Embora o longa exija um ritmo mais lento que o habitual nos filmes de horror, às vezes Eggers leva essa ideia muito ao pé da letra; no meio do filme, quando as personagens se perdem na mata, o filme quase se perde junto a eles. Mas o vigor da história consegue ser recobrado posteriormente, e o longa chega ao fim com bastante força – aliás, termina com um grandioso clímax, que muitos talvez achem que é onde o filme de fato começa. O final realmente denuncia um começo, mas o da sociedade americana de hoje – o longa de Eggers, embora nos desperte o interesse como nunca antes nessa sequência final, termina no ponto exato onde deveria acabar.

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