sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Crítica: "BR 716"

(idem, 2016), de Domingos Oliveira

Caio Blat é a versão birrenta do diretor em "BR 716"

Assistir a "BR 716" é como ir sóbrio a uma festa cheia de gente chata, mas de um amigo muito querido: suportável, porém penoso. O tal amigo é Domingos Oliveira, o diretor que tantas vezes nos entregou momentos e filmes deliciosos, fontes de diversão, inteligência e leveza, que na memória estão guardados com muito afeto. Em "BR 716", ele parece se divertir a valer em sua (auto)celebração, mas os amigos que chamou para participar da noitada são intragáveis. E o que é pior: ele mesmo, a razão da nossa presença ali, não dá as caras. Fisicamente e em espírito: falta Domingos Oliveira ao filme.

O que é algo estranhíssimo, já que "BR 716" é uma obra bastante personalista, que vasculha a juventude do cineasta. E que, em teoria, se parece com todos os outros que ele já fez; nem precisava do seu nome nos créditos para sabermos que ele é o diretor. Mas desta vez, nunca compartilhamos daquele estado de embriaguez dos personagens de seus filmes (e ao qual nos deixamos levar com prazer); seguimos sóbrios, o que nos força a observar algo para que, antes, fazíamos vistas grossas: os defeitos do filme.

Todos os filmes de Domingos são imperfeitos, mas aqui, é como se os problemas se exibissem sob lente de aumento: a imprecisão técnica, as falhas de ritmo, o protagonista autocomplacente, a ladainha que não cessa. E várias frases, que sempre passavam por brilhantes, aqui se revelam ocas (levanta nossa suspeita de que sempre o foram, mas apenas eram ditas de forma mais sedutora, quando nas bocas do próprio Domingos ou da fantástica Priscilla Rozenbaum).

Todas essas falhas sempre foram perceptíveis antes, mas sempre preponderava nos filmes um certo charme autobenevolente de Domingos – sua lábia e o zest daquela galeria de personagens humanos até demais; seus filmes eram um prazer exatamente nessas imperfeições, na sua (carioquíssima) nonchalance diante da seriedade ou mesmo da competência técnica.

Aqui, não há charme algum; seus personagens, que antes pareciam "humanos", agora são pessoas imaturas e mimadas. E birrentas. Há apenas uma sensação de déjà vu – sendo que o já visto antes era bastante melhor. 

O longa revisita a juventude boêmia de Oliveira, quando morava no número 716 na rua Barata Ribeiro (o BR do título), em Copacabana. Bebia muito e vivia dando festas a amigos que se embriagavam tanto quanto (ou até mais que) ele próprio. Como sempre, é um longa sobre a amizade e as dificuldades do amor.

Oliveira disse que o filme é em preto e branco porque, em cores, ficariam muito evidentes as falhas impostas por limitações financeiras para uma reconstituição de época. Não adiantou nada: o filme continua sem ter absolutamente nada da década de 60 – dos detalhes de cenografia aos estilos de atuação. E a fotografia, que ele diz ser em P&B, na verdade é de um cinza pálido que torna o filme ainda menos instigante. Há de vez em quando alguns efeitos interessantes, como quando uma personagem, no meio de um diálogo com Caio Blat (o alter ego de Domingos), se vira para a câmera e, brechtianamente, fala com o público/a câmera subjetiva. Ou quando o personagem de Blat, ao se afastar da câmera, se desfaz em um efeito óptico e vira uma mancha negra pixelada, em um fundo branco estourado. Mas fora isso, pouco se salva; tudo é de uma enorme chatice.   

Caio Blat é tão bom ator e imita o cineasta tão bem que, em cena, é como que um Domingos Oliveira melhorado – com maior potencial dramático, melhor fluência verbal e mais domínio técnico que o original (só o sotaque paulista ele não consegue disfarçar). Mas sua composição é completamente desprovida de naturalidade; é como um espelho, com uma imagem aperfeiçoada da pessoa verdadeira, mas também uma imagem sem vida, sem dimensão e nem o magnetismo que só os seres viventes possuem. O personagem é um martírio (nos faz pensar o quanto talvez os outros vividos pelo próprio Oliveira também não deviam ser e apenas não reparávamos - ou perdoávamos por simpatia pelo Oliveira original). 

Os outros atores também estão decepcionantemente ruins – a talentosa Lívia de Bueno é subaproveitada, no papel de uma lesbian chic sessentista, e Sérgio Guizé tem uma presença vibrante como um revolucionário de esquerda (dos Jardins), mas seu texto é chato demais para ele segurar as cenas que tem. Já Sophie Charlotte está completamente equivocada – deslocada, até; ela não capta em nada o espírito da Copacabana dos anos 60. O que, na verdade, nem é lá um problema em si, já que todo o resto do filme também destoa – e muito – daquela época.

Logo no começo do filme, uma narração em off (a voz de Domingos? ou a de Caio Blat imitando o diretor?) faz um alerta - algo parecido com: "Foi muito difícil escrever este roteiro porque eu bebia demais na década de 60 - e em memória de bêbado não se pode confiar". Nem precisava ter avisado: certamente ele teve uma juventude bem mais interessante que a que ele nos mostra.

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