quinta-feira, 9 de março de 2017

Crítica: "Silêncio"

(Silence, 2016), de Martin Scorsese

Andrew Garfield em "Silêncio"

"Silêncio" se passa no século 17, quando Portugal e Espanha saíam pelo mundo impondo sua religião, como uma das (várias) formas de manter domínio das terras "bárbaras". A trama de Scorsese foca as missões jesuíticas portuguesas na Ásia; começa quando dois padres, Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver), se arriscam a ir ao Japão em busca de outro missionário, Ferreira (Liam Neeson), que desapareceu enquanto tentava converter os nipônicos ao cristianismo.

Mas como qualquer outra viagem, essa é também uma forma de os religiosos fazerem uma busca interior – o que, no caso específico, significa uma procura de um maior contato com Deus. Já no Japão, depois que os dois jesuítas se separam, Rodrigues cada vez mais percebe que, em um mundo em que os humanos sofrem incessantemente, o Criador parece responder com apenas uma atitude: o silêncio (daí o título).

Scorsese cresceu em uma família católica. Se continuou exercendo a fé religiosa depois disso (em entrevistas, já deu versões desencontradas sobre o assunto), pouco importa; ao menos em seu cinema, percebe-se com clareza a manifestação de uma forte influência cristã. Embora já tenha chegado ao extremo de narrar trechos da história de Jesus, em "A Última Tentação de Cristo", é no campo da moralidade de suas obras que o cristianismo se faz notar com mais força.

É bem provável que, com "Silêncio", a intenção do cineasta fosse fazer um estudo de caso sobre a "fé humana", em uma acepção bastante ampla, não apenas religiosa; seu sentido poderia se expandir para a fé na vida, a fé em si mesmo, a "fé no cinema" (vá lá...). Mas o que o longa mostra, no fim das contas, é fé puramente cristã – mais especificamente católica. Se antes a admiração pelo catolicismo surgia em Scorsese principalmente no que tange a julgamentos de ordem moral por parte dos personagens, em "Silêncio" ela virou o tema do filme (a "crise de fé" é antes uma premissa que faz a trama desembocar nesse seu cerne verdadeiro). 

É possível fazer bom cinema religioso? Grandes diretores já provaram que sim. Dreyer, por exemplo, expôs em filmes sua crença pessoal sem pudores, e mesmo se o espectador não compartilha da mesma visão dogmática, é improvável que fique indiferente a seus trabalhos, que são admiráveis em vários níveis. Porque o que mais toca e impressiona no cinema religioso bem feito não é sua eventual pregação hierática; é bem mais a capacidade desses filmes de transmitirem algum tipo de energia "mística" para além da transmissão da palavra religiosa em si.

(É curioso que um dos filmes mais reverenciados de Dreyer se chame "A Palavra", quando o que há de mais poderoso ali é tudo o mais que o longa contém para além do que é falado. Filmes como aquele têm um poder de uma ordem que escapa ao do palavrório proselitista; o sentido "espiritual" desses filmes existe graças a uma conjugação de artifícios cinematográficos, que incluem enquadramentos, sons [e silêncios], encenação, luz... Reforçados antes pela maneira como as palavras são ditas do que pelas palavras em si.)

É preciso ser um mestre para conseguir bons resultados nesse tipo de cinema, e embora Scorsese já tenha demonstrado várias vezes na carreira ser capaz de maestria, desta vez ele fracassou. Porque "Silêncio" não possui força "mística" de nenhuma espécie; sua força – se tem alguma – é de natureza antes "dramática". Afinal, compreende-se facilmente o sofrimento do protagonista, mas em nenhum instante o espectador tem acesso à dimensão espiritual do que ele sofre. A questão da crise da fé existe e persegue Rodrigues, mas ela se limita a aparecer no filme basicamente em um único aspecto: na atuação esforçada (e no geral boa) de Garfield. O ator até tenta transmitir seu drama ao público por um prisma menos terreno e mais "esotérico", mas o resto do filme é todo concebido a atuar em outra corrente. Mais que lidar com a necessidade de algum milagre que comprove a existência de Deus, o desafio de Garfield é lidar com um diretor que exige dele um milagre... Mas que não faz a sua própria parte.

O conflito interno de Rodrigues não tem ressonância em nenhum outro aspecto do longa. Cinematograficamente, Scorsese prioriza a busca do jesuíta por Ferreira, o missionário desaparecido, deixando a procura por respostas divinas em segundo plano; ou seja: o filme não seria lá muito diferente se não houvesse o contexto da "crise de fé" e Rodrigues estivesse apenas em busca de, digamos, um pote de ouro ou atrás de uma princesa raptada.

Para um longa que se pretende sobre a busca por Deus, Scorsese dá bizarramente pouca atenção à criação de uma atmosfera de dúvida ou "mistério" religioso. As elegantes e frias imagens em tom azul-petróleo (de Rodrigo Prieto) sugerem, sim, algum tipo de escuridão, de desconhecimento, mas as dúvidas que elas suscitam nada têm nada a ver com "sentimento religioso"; são meramente uma representação de um local exótico e sobre o qual se tem poucas informações. "Silêncio" é um filme que lida com um tema abstrato ao extremo, mas que o trata de maneira pobremente concreta. As referências visuais à Paixão de Cristo estão por todo o filme, dos cabelos do protagonista às cenas que remetem à crucificação - tudo de uma tediosa literalidade. A ponto de as poucas respostas divinas surgirem em eventuais vozes em off, em que o Criador, com boa prosódia e voz empostada, diz frases como "Eu sempre sofrerei contigo" (que poderiam ter saído de um CD narrado por Cid Moreira).

O que é uma lástima, porque Scorsese já foi capaz de criar um certo tipo de atmosfera repleta de uma dimensão espiritual – mesmo em filmes "não religiosos", como "Taxi Driver". No longa de 1976, há algo de atordoantemente messiânico no puritanismo maníaco de De Niro (e de satânico no canhestro personagem interpretado pelo próprio Scorsese, em uma ponta, como um passageiro de táxi). E a obsessão pela virtude e a crença na capacidade de salvar os impuros do Travis Bickle de De Niro é sensitivamente percebido pelo público por meio de elementos fílmicos outros (a trilha sonora ajuda sobremaneira) que não só a brilhante perfomance do ator. Mas em "Silêncio", cabe unicamente a Garfield (que apesar de talentoso, não é em nada um De Niro) tentar tornar uma abstração (a fé) em algo palpável – ou minimamente sensível; já Scorsese, no que lhe cabe, enquanto diretor, se vale apenas de concretudes. "Silêncio" é a prova de um embotamento artístico em um nível constrangedor. 

E Scorsese não tem a menor preocupação de contrabalancear as coisas; ele não apresenta nada de minimamente negativo nas missões jesuíticas – ele parece não ver problemas sequer no princípio de se impor uma religião a um povo que tem outras crenças (ou que não crê em nada). Parece de fato achar que o catolicismo é salvação – os padres que ele nos mostra são apenas pessoas cheias de boa vontade de mostrar a "verdade" a quem ainda não a encontrou (o espectador, talvez?). 

Mas eu estaria sendo mentiroso se dissesse que "Silêncio" faz proselitismo ou tem a intenção de converter o público não católico. Mas o filme tem uma visão religiosa tão unilateral que é difícil chegar ao fim sem ter a impressão de que talvez Scorsese queira, no fundo, salvar a humanidade pela via da fé cristã (uma espécie de Travis Bickle menos insana e mais afável).

Uma das referências visuais à história de Cristo

"Silêncio" tem sido acusado de longo demais, arrastado e algo chato, e eu preciso dizer que concordo só parcialmente. Acho o que o filme tem um bom andamento, apesar de meio reiterativo (ou seria repetitivo?); podia mesmo ser mais curto. As imagens de Rodrigo Prieto são de fato esplendorosas (foi a única indicação ao Oscar que o longa recebeu), mas não trazem muito mais ao filme que não seja beleza meramente estética. Há, no entanto, um outro problema que me incomoda mais, de natureza linguística. Ora, ninguém que for fazer um filme sobre Jesus precisa exigir dos atores que falem em aramaico (como Mel Gibson fez em "A Paixão de Cristo"); o público pode ouvir o Sermão da Montanha em qualquer língua moderna e não se importar com essa infidelidade histórica. Mas quando se convenciona que o japonês é de fato o japonês, mas o português é o mais puro inglês hollywoodiano, alguma coisa soa mais falsa do que deveria. E quando os japoneses (vários deles) começam a travar longas conversas em português (na verdade, inglês) com os exploradores, aí o radar das regras de verossimilhança apita com força total (e Driver, cujo personagem era totalmente dispensável no filme, parece ainda forjar um sotaque meio latino para que seu inglês soe algo "aportuguesado"; difícil fazer vistas grossas para algo tão ridículo). 

"Silêncio" não tem aquele tipo de inventividade visual e de montagem criativa que o velho Scorsese trazia a cada nova produção, mesmo quando seus filmes não rendiam tão bem. Sua carreira viu um notório esgotamento artístico após "Cassino" (1995). Com "O Lobo de Wall Street" (2013), seu último filme, em alguns momentos se tinha a impressão de se iniciava um período de retorno do diretor à boa inspiração perdida. Mas seu novo trabalho vem corroborar que, no bojo do Scorsese pós-"Cassino", aquele longa era antes uma exceção que uma nova tendência. O Scorsese de hoje, infelizmente, é ainda aquele capaz de filmes pouco empolgantes como "Silêncio".

2 comentários:

  1. Silêncio é um filme que certamente não agradará a todos e ele tem mesmo seus defeitos, notadamente uma duração que tenta emular a passagem de tempo da obra de Endō, mas que acaba criando elipses mal resolvidas e arrastadas, além da presença de diversos “falsos finais” que agravam a impressão de que o filme é ainda mais longo do que seus mais de 160 minutos. Liam Neeson foi meu favorito do filme, lembro dos seus papeis iniciais, em comparação com os seus filmes atuais, e vejo muita evolução, mostra personagens com maior seguridade e que enchem de emoções ao expectador. Eu amo os filmes com Liam Neeson e desfrutei muito sua atuação neste filme 7 Minutos Depois da Meia Noite cuida todos os detalhes e como resultado é uma grande produção e muito bom elenco.

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    1. sempre gostei do Liam, também. Quanto ao filme, é um dos mais fracos do Scorsese

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