quarta-feira, 19 de abril de 2017

Crítica: "Joaquim"

(idem, 2017), de Marcelo Gomes

Júlio Machado em cena de "Joaquim"

"Joaquim" se dedica a mostrar um dos maiores heróis brasileiros, Tiradentes, como uma das pessoas menos heroicas possíveis. Na maior parte do tempo, o Joaquim José da Silva Xavier da tela é acima de tudo um bronco, um mercenariozinho egoísta que não vai muito além dos limites do senso comum de sua época.  O filme se concentra sobre o período antes de ele se engajar na luta pela Independência do Brasil: a ideia é mostrar justamente sua tomada de consciência, o "clique" que o distanciaria de ser apenas mais um caçador de ouro no interior de Minas para se tornar um revolucionário.

Mas "Joaquim" termina antes de vermos essa transição acontecer por completo – e mesmo se o filme continuasse, é provável que o Tiradentes de Marcelo Gomes não se tornasse nem de perto o "grande homem" que a História com H maiúsculo se ocupou de torná-lo. Uma atitude desrespeitosa, dirão uns, mas deixe que falem: é justamente esse espírito iconoclasta do filme que o torna fundamental no mundo de hoje. Afinal de contas, é importante que cada vez mais obras questionem e coloquem em crise o próprio conceito de "heroísmo" – sobretudo nestes tempos, em que as pessoas, sedentas de ídolos, chegam ao extremo de alçar grandes empresários (justo quem) à posição de modelos de seres humanos ou exemplos a serem seguidos (claro: o que eles fazem de melhor, a "qualidade" de acumular riqueza, se tornou um grande valor – talvez o maior – na nossa sociedade... mas isso é uma outra história).
  
A rigor, o longa de Marcelo Gomes poderia ter um alcance universal nessa desconstrução de um herói, mas a verdade é que o filme talvez não possua uma real capacidade comunicativa com outras culturas. "Joaquim" foi apresentado na competição do último festival de Berlim e teve uma recepção fria, algo desinteressada (na sessão para a imprensa, muita gente deixou a sala no meio – e após a projeção, houve quem se referisse ao longa com risadinhas jocosas).

Uma injustiça, porque o filme tem predicados – e muitos. Mas a culpa é toda de Gomes: ele investe grande parte do tempo de seu filme em narrar a trajetória de Tiradentes como se ela fosse uma simples aventura em busca de ouro. O filme até apresenta já no prólogo do que se trata a história do alferes da Inconfidência e promete desde então apresentar sua passagem de um simples pé rapado até se tornar um homem sedento de mudar os destinos de seu país. Em um começo à la "Memórias Póstumas de Brás Cubas", a cabeça de Tiradentes exposta em praça pública "narra" (por uma voz em off) a própria história. Ele nos diz, em tom sarcástico, que seu fim trágico se deu ao fato de, entre os rebeldes com os desmandos portugueses, ter sido o único a "perder a cabeça".

Mas o filme demora demais até o personagem começar a tomar a tal consciência política. O público brasileiro certamente há de permanecer ávido na expectativa pelo momento em que essa mudança de rumo acontecerá. Mas os estrangeiros, até isso ocorrer, possivelmente já terão se esquecido do prólogo e passarão a achar que "Joaquim" é um reles filme de aventura sem muita ação – um longa de caça ao tesouro banal, com a desvantagem de ser lento demais para os padrões hollywoodianos.

Não é exatamente que o filme tenha um ritmo arrastado; ele flui a contento. E há sempre algo interessante de se ver: a inspirada atuação de Júlio Machado no papel-título (em alguns momentos, e sobretudo em algumas fotos de divulgação do filme, ele parece uma figura de Rembrandt); a presença luminosa de Isabél Zuáa (como uma escrava em fuga); as paisagens do interior mineiro (valorizadas pela bela fotografia de Pierre de Kerchove). Em uma das cenas de maior destaque, um indígena e um escravo negro, em um raro momento de descanso, começam a cantar juntos, em uma espécie de hip hop sertanejo do século 18. Uma espécie de ilustração do surgimento da cultura miscigenada do Brasil (enquanto ideia, é uma cena demasiado pré-calculada; mas na prática, enquanto acontece, é extremamente efetiva, mágica; é o ponto alto do filme).

A figura algo rembrandtiana do protagonista

Mas "Joaquim", ao perder tempo demais não cumprindo o que a premissa prometia, pode ser uma experiência frustrante para muitos. Na realidade, parte da politização de Tiradentes se dá em um processo cumulativo, a partir de suas experiências com a realidade nacional. De fato, era preciso algum tempo para que acontecessem. E esse engajamento se dá basicamente em três etapas. Primeiro, pela própria desilusão com a corrupção dos governantes; em seguida, pelo acesso a ideais libertários, a partir do convívio com um poeta/intelectual; por fim, pela experiência na própria pele de Joaquim com grupos excluídos (o Tiradentes do filme passa algum tempo vivendo em um Quilombo). Está aí a gênese do novo Tiradentes, da parte final do longa: mais revoltado, querendo sangue.

Para além da questão da discussão sobre heroísmo, "Joaquim" é também um filme sobre tomada de consciência política. E é sobre pessoas enraivecidas com um mundo injusto que não sabem o que fazer para aplacar a própria raiva. Quer retrato melhor do sentimento do brasileiro de meados dos anos 2010? O Tiradentes do filme reproduz comportamentos diversos predominantes da sociedade brasileira (de então e de hoje): é um sujeito racista, dado ao machismo e individualista ao extremo. A certa altura, ela resume o que pensa sobre os conterrâneos brasileiros: "Todos bandidos, corruptos e vadios".

E há espalhadas pelo filme algumas falas estrategicamente incluídas no roteiro de forma que ele tenha enorme atualidade; fala-se daquele época, mas poderiam ser palavras ditas pro qualquer um de nós. "Joaquim" dialoga com a plateia politicamente desiludida de hoje; há um discurso subversivo à situação brasileira atual mais ou menos disfarçada na situação vivida por Tiradentes.

Quando Tiradentes vê na violência a única saída e decide partir para o ataque, o filme termina. Um final brusco demais e que não dá ao filme um sabor de completude; compreende-se que muitos o rejeitem. No entanto, talvez a escolha de Gomes tenha sido a mais sábia; não por algum risco de o projeto iconoclasta do filme se perder caso o Tiradentes "de ideais elevados" se prolongasse em cena, mas justamente pelo contrário. Pelo andar da carruagem, ele poderia se tornar um revolucionário truculento em excesso, o que poderia ser interpretado como uma apologia à radicalidade (e aí o filme ultrapassaria os limites da simples iconoclastia e chegaria à raias da irresponsabilidade). 

Ou será que essa era a mensagem pretendida por Gomes? Não é o que o diretor tem dito em entrevistas (e nem combina com a de seus outros filmes), mas em tempos abertos a pouca ponderação, em nada surpreenderia se "Joaquim" fosse visto como um clamor popular em busca de sangue derramado. O que, ao menos no nível da simbologia, não seria nada mal.

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