segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Crítica / ensaio: "Vazante"

(idem, 2017), de Daniela Thomas



A estreia mundial de "Vazante" se deu em uma sessão especial para pessoas da indústria do cinema – e alguns jornalistas, como eu – no Festival de Berlim 2017, e a reação não foi das mais efusivas. Ao longo do evento, porém, o filme que marca a estreia solo de Daniela Thomas foi ganhando certo respaldo e críticas positivas, saindo da mostra alemã com a promessa de uma bem-sucedida carreira. Mas a diretora mal podia imaginar que havia Brasília no meio do caminho, e no festival candango, sete meses após a Berlinale, o filme foi alvo de críticas tão virulentas, que impulsionaram debates tão controversos, que até hoje as discussões sobre o tema são assunto delicado.

Um resumo do que aconteceu: em um debate com a diretora no dia seguinte à estreia brasiliense, críticos e espectadores insatisfeitos disseram que o filme não trata com o devido peso a temática da escravidão e que deveria dar mais protagonismo aos personagens que interpretam escravos – quiçá o filme todo devesse ser narrado sob a perspectiva negra. O que é uma reivindicação justa e honesta... desde que feita a quem se proponha a (e tenha vontade de) fazer um filme que fale sobre escravidão a partir de uma perspectiva negra. Como não era o caso de Daniela Thomas, então a discussão, creio, deveria ter parado por ali, com os protestos dos insatisfeitos – bastante legítimos – devidamente registrados.

Mas não parou; há versões divergentes entre o que de fato ocorreu no tal debate, mas o que é inegável é que houve um clima tenso de cobranças por parte de críticos e grupos de defesas de minorias, com a equipe do filme surpresa e algo acuada diante de uma reação tão inesperadamente negativa (na sessão de estreia, havia sido amplamente aplaudido).

O que se seguiu ao debate é algo que não está à altura do filme nem das questões ali suscitadas: virou uma bola de neve de ressentimentos (muitas vezes mais antigos, pessoais e de outros contextos, mas que viram nessa catarse coletiva a oportunidade ideal para irromper com potência máxima), com discursos agressivos, deturpações das falas alheias e um cisma tão grande dentro do universo da crítica de cinema brasileira que talvez não se encontre nada comparável em toda a sua história. A discussão específica sobre o filme, embora traga à tona questões relevantes, chegou a um nível de desonestidade intelectual (de ambos os lados) tão elevado que o assunto se tornou algo desgastante e deprimente.

O pouco que tenho a falar sobre o que houve em Brasília, meu posicionamento diante dessa questão, registro aqui, sem me alongar. Antes de mais nada, fazer um filme do ponto de vista negro seria pedir para ter problemas: as repreensões por Daniela Thomas não ter "lugar de fala" (por ser branca e da elite), com alguma razão, não dariam sossego à diretora, que fez bem ao fugir dessa enrascada. Sobre o debate em si... da parte dos defensores do filme, creio ter havido acusações exageradas de uma pretensa "censura" vinda dos detratores; até houve ali sugestões na linha "melhor nem lançar o filme", mas elas me parecem antes recurso retórico para fortalecer uma argumentação que um veto ou desejo de interdição verdadeiro. 

Mas os excessos dos insatisfeitos com o filme me pareceram ainda maiores. A exigência de um ponto de vista menos "garota branca rica" foi muitas vezes feita em tom que beirava o da coação (eu não estava lá, mas ouvi parte dos áudios) – o que, em si, até é de certo modo compreensível: debates por vezes chegam, mesmo, a instantes de altíssima tensão. Mas quando você vê que as argumentações (do debate e do pós-debate) muitas vezes se valiam de frases claramente publicitárias, do tipo "o filme é máquina mantenedora do status quo" (como se "Vazante" tivesse um mínimo de potencial para ser uma grande bilheteria e influenciar a sociedade em qualquer aspecto que fosse... ou como se as discussões identitárias, nos moldes como têm sido debatidas, fizessem sequer cócegas à direita e ao poder) ou que o longa "é 'Sinhá Moça' ostentação" (se tem um filme que NÃO se parece com novela da Globo, em estética ou conteúdo, ele é "Vazante"), aí é sinal de que a coisa toda chegou em um nível não só delirante como também precário demais para se dar atenção à querela. Um debate promissor, originado por uma engenhosa opção da curadoria do festival (pelo contraste com outros filmes exibidos no mesmo dia), tomou rumos decepcionantes; como tantas outras, parece mais uma das coisas que nascem em Brasília e que deveriam morrer por lá.


É lamentável que "Vazante" vá entrar para a história como um filme "nocivo" à causa das minorias (não me surpreenderia se daqui a pouco, como fruto do efeito "telefone sem fio", começassem a chamar abertamente o filme de "racista", também). Porque na verdade, ele defende exatamente o contrário de toda a reputação que deverá ganhar de agora em diante: faz uma bela e até contundente crítica a alguns parâmetros e comportamentos que geraram a sociedade brasileira, em seu patriarcalismo, machismo e racismo. A tese de Daniela Thomas é a de que o Brasil miscigenado, da gente bronzeada e "cordial", surgiu por meio de violências – físicas e simbólicas. Em termos práticos, foi por meio de casos sexuais sórdidos, em que senhores de terra abusavam de suas escravas, e em um pano de fundo em que as pessoas foram ensinadas desde cedo a agir da mesma forma, reproduzindo os mesmos padrões e comportamentos que os pais (querendo ou a contragosto). Os estupros recorrentes que geraram a nossa sociedade ocorreram na prática, mas também são uma metáfora usada pela diretora para mostrar a maneira truculenta, desrespeitosa e irresponsável como o Brasil enquanto sociedade nasceu e se formatou. Parte expressiva dos nossos problemas tem explicação aí.

É uma premissa arrojada, um projeto que levou décadas para ser finalizado. A história se passa na primeira metade do século 19, em Minas, onde o português Antonio abandona a exploração de minério e investe na agropecuária, com trabalho de mão de obra escrava recém-chegada da África. Após perder a mulher e o primeiro filho durante o parto, ele procura alguém que possa lhe dar um herdeiro – a escolhida é Beatriz, uma pré-adolescente que sequer teve ainda a primeira menstruação. 

O aspecto visual chama logo atenção: a fotografia em preto e branco do peruano Inti Briones é deslumbrante, e embora seja sempre questionável ver cenas de sofrimento sob lentes cosmetizadoras (e em "Vazante" o que não falta é gente sofrendo), no filme a beleza faz parte do conceito. Não se trata de uma plasticidade vazia, das imagens estonteantes pelas imagens estonteantes, apenas. Tampouco é uma tentativa salgadiana de mostrar que mesmo a pior das agruras pode ter seu fascínio estético. A beleza de “Vazante” existe como se a diretora quisesse dizer que as coisas são essencialmente belas, boas, e estão aí: basta se apropriar delas. O que torna o mundo terrível, problemático, "feio", é a maneira como o homem ocupa os espaços – e como estipula a interação com os demais. O longa defende que é possível ainda reencontrar a beleza: ela está ali, imutável, apenas à espera de ser redescoberta. Cabe apenas ao ser humano se dar conta disso (em alguns poucos momentos, os personagens parecem perceber tudo isso, e a atmosfera do filme fica bem mais leve, lírica; mas logo em seguida, cada um retoma seu padrão de comportamento, e tudo volta a ser angustiante, triste, opressivo). 

"Vazante" é um trabalho de uma diretora de certezas na cabeça e de uma grande firmeza nas mãos. É um filme muito burilado: percebe-se isso sobretudo na composição de época e no trabalho com os atores. A recriação do século 19 é de impressionante meticulosidade não apenas nos cenários ou figurinos: tudo em "Vazante" parece de um outro tempo, do gestual dos atores, ao se sentar à mesa ou comer, ao próprio tempo dos acontecimentos – arrastado. E não é apenas questão de trazer uma atmosfera mais próxima do que era a época retratada: a intenção era dar ao filme também um espírito, uma alma dos últimos anos do Brasil-colônia. Nesse sentido, é um caso talvez inédito no cinema (e sobretudo teledramaturgia) nacional.

A pobreza do estilo de vida nas casas-grandes é especialmente intrigante: eram moradias sem adornos, com enormes espaços vazios e muita madeira maciça – ambientes inóspitos. A alimentação nada tinha de sofisticado: o cardápio da matriarca da família (a grande Juliana Carneiro da Cunha) inclui 'iguarias' como um ovo cozido e uma espiga de milho – e era um luxo. Fora da casa-grande, tudo já é mais próximo do que nosso imaginário já esperava: os meios rurais mais pobres de hoje em dia não mudaram muita coisa desde então.

Não haver trilha sonora é um acerto, não só porque imposição sentimental por meio de música arruinaria os efeitos obtidos pelo rigor visual mas também porque os sons ambientes ajudam a reforçar esses efeitos. Quando os escravos são conduzidos pelos campos, atados por correntes de um metal denso e pesado (as imagens, atordoantes, aludem ao transporte animal feito com requintes de crueldade), o tilintar desses grilhões proporciona ao filme uma dimensão de um novo "mundo antigo", que existia até então apenas nas recriações de imagens de artistas como Debret e Rugendas. As conversas em línguas e dialetos africanos que ninguém no Brasil compreendia é um complemento ao material. "Vazante" supre a carência de referências auditivas que tínhamos do Brasil-colônia até então, e isso o torna de extrema importância. O filme parece um documentário do estilo de vida na casa-grande e na senzala às vésperas da Independência do Brasil.

"Vazante" é um produto solidamente formatado e bem resolvido em termos estéticos; mas, apesar de Daniela Thomas já ter uma estrada como diretora, o filme carece de uma voz autoral mais definida. Enquanto projeto e, até mesmo, enquanto realização, é um filme inegavelmente único; mas em termos de estilo, não tem uma singularidade perceptível. O longa alterna cenas de grande originalidade (a do casamento é um triunfo; repare no olhar de cada uma das atrizes durante a fala do sacristão), mas outras de um academicismo pomposo que a diretora tinha condições o suficiente de se dar ao luxo de evitar (qualquer cena com Beatriz de camisola branca pelos campos escuros mineiros, por exemplo).

O que Daniela Thomas tem – ou ao menos tinha, até Brasília – é uma enorme autoconfiança. Seu filme é ambicioso em um nível em que poucos diretores de primeira viagem (solo) ousam se aventurar; chega às raias da autocongratulação (e em muitas cenas, o público há de concordar que o sentimento de orgulho próprio faz todo sentido). Mas é exatamente em sua ambição de querer abarcar coisas demais que o filme derrapa. Porque Daniela Thomas coloca em evidência, e ao mesmo tempo, duas questões extremamente sérias e que compõem duas das maiores chagas da sociedade brasileira: o racismo e o machismo.

O filme é um constante vai e vem entre a casa-grande e a senzala; quando está no ambiente dos escravos, mostra o horror que era a rotina dos africanos que chegavam ao Brasil. Quando está na casa da sinhazinha, mostra outro horror – o da vida de uma mulher naquela época (em qualquer época, mas ali era especialmente complicada). É horror demais para um filme só dar conta, mas Thomas assume o desafio assim mesmo. Mas o faz de uma maneira bastante complicada: no fim das contas, opta pela ênfase (talvez sem perceber) na questão feminina – e como a mulher que ela escolhe faz parte de um meio privilegiado, automaticamente a opção dá margem para críticas como muitas das que pulularam em Brasília.

Não é aqui questão de cair na armadilha – em que tantos caem – de fazer uma competição de sofrimento: o de um negro que trabalhava sem parar, levava chibatadas e sofria humilhações rotineiramente, ou a de uma garota que, quando não morria de tédio, era praticamente estuprada pelo marido. Horror é horror, e os dois são condenáveis e dignos de ser combatidos – e abordados pela arte. Mas o problema é que Thomas se atrapalha quando quer colocar o sofrimento da menina da casa-grande do mesmo tamanho que o das pessoas da senzala. Como eu já disse, discordo do teor de grande parte das críticas feitas em Brasília, de que ela deveria fazer o filme da perspectiva dos negros – acho que ela poderia tranquilamente fazer da sinhazinha, como fez. O que ela não poderia fazer (poder é óbvio que ela podia, mas não deveria) é traçar um paralelismo entre as duas coisas; porque aí, tudo se torna uma questão de referencial, e, da maneira como algumas situações são expostas, na comparação, o drama da menina rica é flagrantemente menor que o dos escravos (qual condição humana é pior que a de um escravo?). Há uma cena em especial em que isso salta aos olhos: quando Beatriz, suja, maltrapilha e quase louca pela monotonia da vida em seu lar burguês, sai de casa e perambula pelas proximidades da senzala, com lágrimas nos olhos. Ali, o filme por alguns instantes de fato perde seu sentido de denúncia de dois grandes dramas e se torna algo canhestro; beira até o cômico pelo ridículo da situação classe média sofre (é a única cena de fato moralmente condenável de todo o filme).

Eu diria que o longa tem um único outro momento problemático maior, ainda que por uma razão antes técnica que de "fundo": o fim. "Vazante" tem um final que parece ser aberto, com o grito ambíguo do protagonista após matar a escrava e o pai do filho de Beatriz. Houve quem achasse que o berro fosse uma forma de a diretora defender ou se compadecer da situação do português, o que é um erro de avaliação quase grosseiro (até porque é um tanto improvável que Thomas, que até então fez um filme tão cheio de sutilezas, se entregasse tão desbragadamente à linearidade de um segundo para o outro – e justo na cena conclusiva). Porque o grito final é um urro de desespero arrependido. A meu ver, se viesse em forma de palavras, o berro de Antonio soaria algo como: "O que eu fui obrigado a fazer!". E não é que a diretora defenda que o português fosse mesmo forçado a seguir tal "obrigação", de fazer o que a sociedade esperava dele (matar e preservar sua honra); apenas constata que, de fato, existe todo um peso e uma intimidação social que exigia que o personagem agisse de forma tão atroz. Ao seu modo impessoal, o filme condena fortemente as atitudes de Antonio. Mostrar uma coisa não significa defender o que se mostra, e isso está claro na sequência final; não perceber isso é pura má vontade de quem vê.

O que não esteve claro para mim (e aí eu reconheço que o erro de interpretação provavelmente foi meu) diz respeito a outra questão: quando Beatriz vai amamentar o filho de Feliciana. A rigor, é puro instinto materno: a mãe que acaba de dar à luz e que, ao escutar um choro, vai acalentar uma criança (em vez de sair louca atrás do próprio bebê desaparecido). Mas uma questão técnica me levou a uma interpretação talvez equivocada da situação. O bebê de Feliciana me pareceu ter o tom de pele um pouco mais claro que o do filho de Beatriz; assim, no final, quando a sinhá assume o filho da escrava, me pareceu que ela estaria levando para a casa-grande o bebê "menos negro", minimizando a tragédia familiar que seria ter um bebê com mais melanina que o desejado em casa (e reduzindo os comentários maldosos dos demais). O que acontece de fato naquela cena? Em certos aspectos, o "meu final" é até mais interessante, embora arriscado demais (se as pessoas já não entendem o caráter crítico do filme como ele de fato é, imaginem com essa outra versão); mas eu reconheço que possa ter sido um equívoco de percepção causado pelos tons imprecisos de cinza da fotografia em preto e branco; o que funciona maravilhosamente em termos estéticos nem sempre dá bons resultados em termos mais práticos.


Cabe dedicar algumas palavras ao personagem Antonio (o português Adriano Carvalho, em extraordinária composição). É um sujeito de feições rudes, quase nenhum humor e olhares que parecem que vão eclodir em atos de extrema violência a qualquer momento (o que nunca ocorre, a não ser na cena final). É olhado sempre com temor e reverência pelos demais personagens – menos pela jovem Beatriz, que no começo faz traquinagens com ele. Em uma cena de complexa, porém delicada sexualidade, a menina o observa curiosamente, sentada atrás de sua cadeira, durante uma refeição; ela olha os pés descalços do português e, sorrateiramente, esconde seus sapatos. A cena é rápida, mas tem uma carga de erotismo que em nenhum outro momento do longa se repetirá; porque é um erotismo inusitado, quase involuntário, e não consumado; opera em um nível de mera e vaguíssima sugestão de algo proibido (uma relação pedófila) que, ao que parece naquele instante, está longe de acontecer na prática. Pouco depois, quando Beatriz lhe devolve os sapatos – e os dois se entreolham, já frente a frente – a mesma atmosfera é retomada, com uma troca de olhares lírica e quase romântica entre ambos; é um homem adulto e uma menina, sim, mas a carga (sexual?) entre eles fica em um nível sempre dentro dos limites do que é "saudável"; o que predomina é o caráter lúdico daquele instante, de uma brincadeira banal e sem prolongamentos. A cena é um êxito, porque exprime uma sensualidade ainda sem aquele ranço doentio ou condenável de uma relação de pedofilia consumada; a aura de inocência predomina. Um diretor de mão mais pesada poderia tornar a cena grosseira, algo que Daniela Thomas consegue evitar, com uma competência admirável.

Posteriormente, Antonio observará a garota em outras cenas de viés altamente sensualizado, mas aí a diretora já permite que uma aura mais sufocante, pesada, chegando ao moralmente rejeitável, tome conta. Ela não erotiza (mal mostra) as cenas de sexo. A relação entre ambos (na cama ou fora dela) traz sempre algo de mal resolvido – e não tinha como ser diferente. Embora haja fascínio de Antonio por Beatriz, muito mais pela sua personalidade, sua irreverência e falta de temor – é a única que o desafia em todo o filme –, é difícil dizer se ele de fato tem algum forte desejo sexual pela garota. (Por que escolheria, então, entre as escravas uma mulher feita, e de formas já tão definidamente femininas, como Feliciana, para ser sua parceira sexual? Certamente optaria por alguma adolescente ainda em formação). Aliás, há uma sugestão bem sutil de que é provável que, se pudesse escolher, Antonio se uniria a Feliciana, a escolheria para mãe de seu herdeiro – mas aí, novamente, vêm as pressões sociais: um senhor e uma escrava, desde sempre, é algo fora de questão.

Mais de uma vez ao longo do filme, Antonio demonstra algum problema não explicado com a sola dos pés: está quase sempre descalço – talvez seja alguma simbologia meio barata, do tipo "não se sentir bem nos próprios calçados", mas melhor pensar que é uma maneira figurada de dizer que o personagem sente necessidade de algum contato com algo mais natural, verdadeiro. (A ideia também é sugerida em outra cena – não muito bem-sucedida, aliás – quando ele tenta tocar as mãos com alguma delicadeza no gado de seu curral). Na reta final, o personagem parece decidido a se tornar um sujeito melhor: deixa de passar tanto tempo fora, é mais atencioso com a mulher e evita os encontros sexuais com Feliciana – a rigor, por pena do suplício que impõe à jovem Beatriz... Mas a escrava está grávida, e talvez isso também contribua; o roteiro não deixa claro o que exatamente deu o estalo na cabeça do português. Mas o que importa é que ele ensaia uma mudança.

No fim, no entanto, Antonio não consegue se desvencilhar de sua sina enquanto homem branco colonizador: precisa ser violento se deseja "manter o status quo" (para usar a já citada expressão com ares de slogan). E assim se formou a nossa sociedade, com pessoas de natureza não tão malévola quanto parece, mas que se veem socialmente impelidas a reproduzir situações terríveis - e se tornar seres abomináveis.

O grande incômodo de "Vazante" é que o filme mostra certos personagens não tão ruins como gostaríamos que fossem. A sensibilidade moderna, principalmente de uns três anos para cá, tornou quase ultrajante para um certo público de esquerda (e eu me incluo aí) ver um opressor secular ter lá suas razões de oprimir. Percebam: não é o mesmo que defender essas razões, mas dizer que nem tudo vem de maldade da alma, pura e simples. A diretora mostra de forma sutil e colateral (esse não é o centro do filme) que um homem branco hétero também pode ter algum resquício de pureza e inocência na alma e não ser um monstro por completo – e eu tendo a acreditar que parte da aversão que muitos em Brasília tiveram ao filme é explicável por conta disso. É uma das grandes teses do filme: que os seres humanos agem condicionados pelo meio, pelo sistema. Em vários momentos, é perceptível nos rostos dos personagens da casa-grande o quanto estão agindo a contragosto (logo no começo, o semblante de uma das sinhás denota grande mal estar quando passa diante de uma escrava; certamente não concorda com aquilo). Mas agem, assim mesmo, reproduzindo comportamentos, sem questionar – e aí está o nosso mal enquanto sociedade. Por sofremos ao reproduzir o que nos foi ensinado, mas reproduzirmos assim mesmo, sem mudar esse padrão. Pode parecer Rousseau de enciclopédia, mas a base da visão sobre sociedade do filme é bem essa: as pessoas não são ruins em si, é o meio em que estão inseridas que as torna assim.

"Vazante" não é incisivo em seu posicionamento contrário ao que mostra – e muita gente toma isso por conivência. Mas o julgamento existe (é forte) e está subentendido. A opção estética pela frieza e da impessoalidade é válida; um filme pode ter uma posição política sem ser ostensivo – existe espaço para a sutileza na arte. O apenas mostrar é, muitas vezes, o mesmo que denunciar. E conclamar a mudar isso. Em sua "falta de mensagem", o recado de "Vazante" me parece simples: é preciso combater a falta de empenho em ir contra o que é imposto, sob o risco de a sociedade brasileira continuar como está. Nesse sentido, ao seu modo, o filme, embora não tenha um engajamento revolucionário, está bem longe de defender qualquer manutenção de status quo.


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2 comentários:

  1. O trailer havia me enganado então. Que pena. Perdi o tesão de ver. Vai achar bobeira eu deixar de ir ver um filme depois de ter lido um crítica. Criei um expectativa de que seria um filme numa outra perspectiva que não a do branco. Que saco.

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    1. Eu não vi o trailer, então não sei como estão "vendendo" o filme ali. Mas de modo algum é um filme da perspectiva negra (a própria diretora diz que sequer teve essa intenção). Acho que vale ver independentemente disso: o filme tem questões bem interessantes, que têm sido deixadas de lado desde que essa polêmica do Festival de Brasília surgiu. O que é uma pena

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