segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Crítica: "Artista do Desastre"

(The Disaster Artist, 2017), de James Franco

James Franco dirige e estrela "Artista do Desastre"
É tentador traçar paralelos entre "Artista do Desastre" e "Ed Wood" (1994), de Tim Burton – afinal, ambos falam de cineastas que realizaram o que se poderiam chamar de piores filmes do mundo (cada um a sua época). Mas uma analogia bem mais adequada ao filme dirigido por James Franco talvez fosse com um mais recente, "Florence: Quem É Essa Mulher?" (2016), de Stephen Frears. Porque nos dois longas o foco é o mesmo: personagens que habitam realidades ilusórias, que sonham com a grandeza artística, mas que não têm o menor talento para atingi-la.

Em "Artista do Desastre", temos Tommy Wiseau, um homem que ama o cinema acima de tudo. No entanto, sem ter a menor noção do quão pouco talentoso de fato é, insiste em se achar capaz de fazer filmes do mais alto nível. Em "Florence", a cantora desafinada, também por amor à música, ilude-se de que com muito treino é capaz de cantar com a mesma perícia das grandes intérpretes líricas. Tanto Tommy quanto Florence são esforçados: sabem que não se chega longe sem empenho. Mas são dois casos em que a vontade de vencer na profissão não basta: a completa inaptidão de ambos para o ofício que tanto adoram não permite que se tornem grandes.

E, no entanto, ambos conseguem momentos de êxito e ser reverenciados... mas não pelos motivos que gostariam. A "arte" que produzem é ridícula a tal nível que acaba os tornando pessoas risíveis – se não exatamente "artistas", viram ao menos entertainers de espetáculos grotescamente divertidos. E conseguem fãs.

Mas a maneira como encaram o sucesso por vias inusitadas é diferente em Florence e em Tommy. A cantora vivia em uma época em que predominava uma visão aristocrática, elitista, da arte; os artistas prestigiados eram os que mostravam capacidade técnica e inspiração criadora – então Florence, após ficar ciente de não ser apreciada por esses méritos, sofre intensamente. Mas ao fim, sente-se vitoriosa, porque apesar de tudo, fez ao longo da vida o que amava: "Eu cantei!", ela diz, no leito de morte.

Já Tommy é fruto de uma outra época, em que a sensibilidade pop tornou o que é de “bom gosto” muitas vezes pedante e antiquado; hoje em dia, o tosco e o grotesco têm por vezes um status ainda maior do que uma arte mediana – ou boa, porém não inovadora. E Tommy compreende isso (ainda que a contragosto, já que seu sonho era ser um gênio) e aceita a maneira como é exaltado; passa, inclusive, a capitalizar em cima de sua própria fraqueza – e explorar isso.

Mas talvez o maior elo entre os dois personagens venha do fato de serem blindados de suas incompetências por uma redoma de ilusão. Muitos aspirantes a artista desistem da carreira ao notarem que não levam jeito para a coisa, mas não Florence e Tommy – pelo simples fato de não saberem de sua incapacidade. No caso de Florence, ela vive isolada da realidade graças ao amor do marido, que, com pena do sofrimento que a realidade dura poderia lhe causar, a deixa completamente alienada a respeito de suas potencialidades musicais. Já Tommy, certamente por em algum momento ter jogada na cara a sua própria incompetência, forja para si um mundo fantasioso muito particular – que ele chama de “meu universo” – no qual ele é um gênio.

Cria inclusive uma carapaça: a persona excêntrica e autoconfiante, que na cara dura rejeita as críticas “injustas” que recebe pela frente. Quando vemos Tommy no set de filmagem repelindo as sugestões do resto de uma constrangida equipe, a recusa vem de uma crença genuína de que ele de fato tem a razão. E quando, no começo do filme, o personagem urra “Stellaaaa!” (uma cena hilária) em um workshop de teatro, fica claro que Tommy tem certeza de que está fazendo uma arte da mesma estatura da que Marlon Brando fazia.

O estilo de atuação dos atores do Método, sempre de fundo freudiano, cheio de pathos e dramas interiorizados, tende a ficar no fio da navalha entre a genialidade e o ridículo. Como há poucos Marlon Brandos e James Deans pelo mundo, muitas vezes Stanislavski levado às últimas consequências resulta em grandes vexames. É preciso muita cautela ao utilizá-lo.

James Franco sabe disso muito bem, e a grande prova disso foi quando ele próprio deu vida a Dean, no início de sua carreira, no telefilme "James Dean" (2001). Ali, nas cenas de choro, ele mostrava ter ciência de que não podia ir longe demais no extravasamento de seus fantasmas pessoais. Ia até onde seu potencial conseguia e parava por ali – mesmo que ficasse claro que um abismo distanciava seu talento daquele do ídolo morto nos anos 50. Mas Franco tratava de compensar suas fraquezas justamente naquilo em que ele tem de mais valioso enquanto ator: o charme. Quando seu Dean abria o sorriso, Franco sabia que estava em pé de igualdade com o Dean original, e era nessas cenas que ele se redimia dos pontos mais frágeis de sua performance. Franco é um ator esperto e bastante inteligente.

Em grande parte de seus filmes, aliás, o defeito de Franco é confiar em excesso no próprio magnetismo, como se fosse algo infalível e sempre irresistível; muitas vezes, porém, soa arrogante e cansativo. Mas em "Artista do Desastre", ele não precisa recorrer tanto ao charme pessoal para que sua atuação seja cativante; sabe que tem um personagem extraordinário nas mãos e (como diretor do filme) compreende exatamente até onde deve ser "simpático". Desta vez, o ator não precisa seduzir o público abrindo seu amplo sorriso (que é exatamente o que faz seu irmão, Dave Franco, que ainda depende muito dos atributos físicos para conquistar o espectador; ainda tem muita técnica a aprender). James Franco sabe que possui outras ferramentas ao seu dispor para compor seu personagem (a fisicalidade, por exemplo) e está ciente de que as domina.

Os irmãos Dave e James Franco em cena
O papel de Tommy Wiseau é dificílimo porque pode pender para o excesso, o caricatural. E exige do intérprete uma autoconfiança que existe na personagem a partir de uma total falta de razões para ser autoconfiante. E além disso, o que talvez seja mais desafiador: pede que ele tenha uma boa performance ao imitar um ator... tendo uma performance ruim. E Franco acerta praticamente em todas as cenas, sem soar uma caricatura do caricato Tommy Wiseau da vida real – no fim do filme, quando cenas do original são exibidas lado a lado com as versões de Franco e sua equipe, fica evidente o quanto bons atores, ainda que interpretando maus intérpretes, são um espetáculo bem mais rico e interessante. Porque há arte na imitação bem feita, que não pretende apenas reproduzir ou se apropriar do imitado, mas recriá-lo em um a nova visão, autoirônica mas respeitosa, que é exatamente o que Franco faz. Seu Tommy Wiseau é mais que um simples entertainer malgré lui, como o da vida real: é de fato uma criação artística.

A atuação tem, no entanto, uma falha: o sotaque "indefinido" de Tommy parece em certas cenas mais pronunciado (e com mais erros gramaticais) que em outras partes do filme. E enquanto diretor, Franco nem sempre consegue ir além de uma encenação sem diferencial – falta-lhe um estilo visual mais apurado. Mas o roteiro é ótimo e acerta em não mostrar Tommy como mero personagem de circo de horrores; percebemos sua humanidade. E o filme também acerta no que "Florence" também era certeiro (e "Ed Wood", ao contrário, não debatia tanto, por ter outros interesses): o quão justo é roubar de alguém a chance de lutar por seus sonhos? E, afinal, cada um não deveria ter o direito de fazer o que gosta?

No final, por pior que seja a qualidade da obra de Tommy (como foi a de Florence), ambos entraram para a posteridade – ao passo que muitos que compreensivelmente desistiram antes da hora, sucumbindo às exigências da vida (e do mercado), são mais um na multidão. Ainda que por vias tortas, a persistência é muitas vezes realmente capaz de tornar as pessoas vitoriosas.

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