segunda-feira, 18 de julho de 2016

Crítica: "Florence: Quem É Essa Mulher?"

(Florence Foster Jenkins, 2016), de Stephen Frears

Meryl é Florence, a cantora desafinada
Eu não acho que a atuação de Meryl Streep em "Florence" seja boa: acho uma das melhores da carreira dela. É um alívio ver que essa atriz extraordinária, depois de iniciar um caminho (que parecia sem volta) lamentável, com filmes de qualidade duvidosa e atuações exageradas e maneiristas, tenha voltado a acertar o tom. Não só o tom: em "Florence", Meryl acerta em tudo. Desde "O Diabo Veste Prada" (há 10 anos) ela não se mostrava tão instintiva e inspirada como agora. Pena que a Academia já desperdiçou um Oscar com ela pelo filme mais errado possível ("Dama de Ferro"); era por este que ela merecia levar mais sua terceira estatueta.

Meryl interpreta Florence Foster Jenkins, uma milionária americana que, nos anos 40, decidiu se lançar como cantora. O problema é que ela não tinha talento musical algum – quando cantava, o som emitido por suas cordas era constrangedoramente desafinado. Sem ter muita noção da sua incapacidade vocal (o marido a poupava de qualquer crítica ruim), insistia em soltar a voz. Entrou para a história como a "pior cantora do mundo".

O filme, uma comédia com toques dramáticos, é dirigido por Stephen Frears, que, quando quer, é um gênio na arte de capturar boas performances. Desta vez ele quis, e o elenco quase todo de "Florence" está em estado de graça.

Hugh Grant, no papel do marido mais novo e dedicado de Florence, faz mais uma variação de seus personagens habituais, mas aqui ele está bem mais intenso; pensa menos em fazer de sua timidez algo charmoso e mais em encontrar os olhares e entonações verdadeiros, sinceros. Ele está comovente como o dedicado e amoroso homem que adula e protege sua mulher das maldades do mundo (ele é um ex-ator medíocre, que já sofreu muito no passado por não ter conseguido se tornar grande como sonhava ser). Simon Helberg está engraçado na pele do músico homossexual iniciante que acompanha Florence em suas patéticas performances; é um sujeito estranho, desajeitado - não tem lá muito mais talento musical que a própria Florence, mas sonha alto (Era um personagem promissor, mas que não tem aprofundamento devido pelo roteiro, que o utiliza de maneira superficial e leve demais, mesmo para uma comédia despretensiosa). E completa o elenco a divertida Nina Arianda, no papel menor, mas vital, de uma mulher meio grosseira que ridiculariza (e depois aplaude) os "espetáculos" de Florence.

Pode se atacar Frears de tudo, menos de que não seja corajoso; ele lança seu "Florence" com muita proximidade de outro filme com o mesmíssimo assunto, embora camuflado, em outro contexto, e com uma personagem de outro nome: o francês "Marguerite", de Xavier Giannoli (leia a crítica neste link). No final dos anos 80, Frears já havia corrido risco semelhante: ao mesmo tempo em que preparava "Ligações Perigosas", o tcheco Milos Forman concebia seu "Valmont", ambos inspirados no romance de Choderlos de Laclos.

Frears saiu vitorioso (quem se lembra de "Valmont" hoje em dia? quase ninguém – o que é uma pena, já que o filme, embora inferior ao de Frears, não seja nada desprezível). Desta vez, o britânico ganha novamente da concorrência, mas por muito pouco. "Florence" é mais homogêneo, fluido e ritmado, e funciona melhor enquanto comédia que "Marguerite". Por outro lado, é (por opção) também mais rasteiro - a versão francesa vai um pouco além (embora não muito) na abordagem de alguns temas, que às vezes não são sequer aludidos no longa de Frears.

Streep e Grant: excelentes em cena
É curioso perceber que o longa francês traz um questionamento mais original sobre a questão do artista: o que pode e o que não pode ser considerado como arte. Giannoli admite que se veja em uma figura como a de Marguerite habilidades que poderiam transformá-la em uma artista (como o grupo de dadaístas do filme consegue perceber); tudo é uma questão de ponto de vista. Já para Frears, não há exatamente "arte" no espetáculo vocal patético de Florence; mas há nela, sem dúvida alguma, um grande talento cômico: Florence é uma entertainer nata. Pode não ser "arte" o que ela faz, mas é um espetáculo divertido, que entretém e faz rir. Com gargalhadas algo depreciativas, por certo, mas respeitosas (ela não é a figura circo de horrores que eu temia que se tornasse no filme de Frears; está mais próxima de uma personagem de ópera bufa, do burlesco, ainda que a contragosto).

O ponto em que "Marguerite" perde a batalha para "Florence" é justamente nas cenas musicais, quando as duas piores cantoras do mundo mostram seus "dotes" vocais. A francesa Catherine Frot, que tem uma excelente performance em quase todas as cenas, tem um erro lastimável de approach da personagem quando ela precisa cantar; se em geral interpreta sua personagem como uma mulher digna de compaixão, no palco ela passa a ser subitamente uma palhaça proposital, procurando risos do público; o próprio estilo de atuar deixa isso evidente. 

Já Meryl é certeira: no palco, assim como fora dele, ela é uma mulher apaixonada pela música, que quando canta dá tudo de si – entrega-se de corpo e alma ao que ela acredita ser uma arte. Quando as pessoas gracejam dela, há uma decepção genuína em seu olhar; se ela é de fato divertida em cena, isso ocorre apesar da própria vontade dela. Não é a zombaria que Florence busca nem o que Meryl procura; tudo o que as duas querem é exercer sua paixão, da maneira mais honesta possível. (Apesar de a personagem ser excêntrica e exigir alguns exageros, Meryl o faz de uma maneira inusitadamente contida. E embora seja uma ótima cantora, a atriz encontrou uma estridência muito parecida com a da Florence Jenkins da vida real).

O roteiro se desenrola de maneira algo maceteada - há, por exemplo, uma tentativa desnecessária de tornar Florence mais simpática por meio de uma doença fatal. Mas o que fica do longa são os temas essenciais: a lealdade de um homem pela mulher que ele ama; o senso de proteção a alguém em situação de fragilidade como sintoma maior do amor espiritual que se sente opor essa pessoa. E a força de vontade como forma de se conseguir "milagres". Perto de sua morte, Florence diz algo como: "Apesar de todos os contras, eu cantei!". Florence, no fim das contas, foi uma grande vitoriosa, a despeito da alcunha pouco lisonjeira que recebeu. Porque, em vida, fez o que mais amava. E se viver fazendo o que mais se ama não é ser vitorioso, então o que é?

   

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