quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Tiradentes 2019 - Crítica: "Seus Ossos e Seus Olhos"

(idem, dir. Caetano Gotardo)

Cena de "Seus Ossos e Seus Olhos"

Há tantas boas ideias, tantos diálogos (e monólogos) interessantes e tantos detalhes significantes em “Seus Ossos e Seus Olhos” que chega a ser assombroso o quanto um mesmo filme pode trazer tanta inteligência. O diretor, Caetano Gotardo, fez uma excelente síntese sobre o próprio longa em sua apresentação, no palco da estreia do filme, na Mostra Aurora: “É [um filme] sobre conversa, encontros, a dificuldade e a beleza de estar com outras pessoas no mundo.”

O longa é um apanhado de situações mais ou menos aleatórias na vida de João (interpretado pelo próprio Gotardo), um rapaz de classe média em termos financeiros, mas de uma certa elite intelectual, que mora com o namorado, com o qual tem um relacionamento aberto.

O filme se distribui em cenas em que João se encontra com diversas pessoas (uma amiga, o namorado, um amante, desconhecidos) e conversa com elas. Nos assuntos, há de tudo: banalidades variadas, confissões sexuais, reflexões intimas sobre amor e a paixão, conversas de cunho social. Nenhuma delas leva a lugar nenhum ou modifica radicalmente nenhum dos envolvidos no diálogo, mas sempre se leva alguma coisa dali.

“Alimenta todo o resto do processo”, diz a certa altura o namorado de João, que vive um ator, sobre seus aparentemente vãos ensaios rotineiros para uma peça. Mas ele poderia estar se referindo ao tema central do filme: tudo o que experimentamos em um encontro, em maior ou menor escala, servirá de alimento para um processo maior, que podemos chamar de formação individual – ou simplesmente de vida.

O filme mostra o quanto em nossas conversas nós repetimos padrões, posturas, narrações, estilos narrativos e mesmo conteúdos absorvidos em encontros que temos ao longo da vida. Gotardo apresenta isso com perspicácia na repetição de várias situações e em papos recorrentes filme afora, mas que surgem sempre com algumas alterações; a vida é uma eterna mesma coisa, porém sempre recriada.

O longa é fascinante ao mostrar isso, mas também quando Gotardo faz considerações mais específicas sobre os encontros: na melhor cena do filme, João perde vários minutos em busca de uma posição confortável para conversar com uma amiga que foi buscar uma cerveja. Há também excelentes instantes em que os personagens ficam em silêncio, buscando controlar o mal-estar da situação com piscadelas, viradas de pescoço, coçadas nas pernas etc. Gotardo é um excelente observador.

O filme, no entanto, tem uma propensão à reiteração de ideias que o enfraquecem lastimavelmente. Quando já se compreendeu muito bem do que o longa fala, o diretor repete procedimentos cuja recorrência nada mais têm a acrescentar (mesmo sendo um filme justamente sobre recorrências); aborrecem, apenas. E há uma camada extra não muito bem explorada sobre o fazer cinematográfico, quando o próprio Gotardo aparece editando o som de cenas do seu filme, mostrando o quanto algumas situações poderiam desembocar em conclusões distintas se não fosse por algum mísero detalhe (a falta de cerveja na geladeira, por exemplo). Essa ideia aparece também quando os diálogos são quase 100% repetidos em situações distintas (uma conversa na sala de estar é deslocada para um museu), mas ela nunca passa de um nível abstrato demais e acaba apenas sobrecarregando desnecessariamente o filme.

Gotardo não é mau ator e traz uma certa naturalidade às cenas em que aparece, mas o contraste da atuação dele com a de outros colegas de elenco por vezes opera contra seu personagem, que se torna algo maçante. “Seus Ossos e Seus Olhos” é um filme claramente pessoal, mas (talvez até por isso) provavelmente funcionasse melhor se o diretor tivesse cedido o personagem a algum outro ator – ou editasse com mais precisão as cenas em que João aparece. Estranhamente, porém, a presença dele em cena parece fundamental para que o filme tenha a consistência que possui. Uma situação irremediável.

“Seus Olhos e Seus Ossos” teria muitíssimo a ganhar se voltasse à ilha de edição e, ali, fossem cortadas partes excessivas de certas cenas (com meia hora menos, o filme seria quase perfeito). Mas mesmo em suas limitações, o longa é uma joia e com algumas das melhores ideias colocadas em palavras do cinema nacional recente. Ajuda a desfazer a pecha de que o Brasil não é capaz de gerar bons roteiristas.


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