quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Tiradentes 2019 - Crítica: "Tremor Iê"

(idem, dir. Elena Meirelles e Lívia de Paiva)

Cena de "Tremor Iê"
“Tremor Iê”, trabalho colaborativo de um grupo de mulheres cearenses, com direção assinada por Elena Meirelles e Lívia de Paiva, é um filme que parece ter sido feito sob encomenda para ilustrar o Brasil da era Bolsonaro.

Mostra uma Fortaleza distópica, em que um governo extremamente autoritário, higienista e controlador domina os cidadãos. As ruas vivem vazias, escuras, supervigiadas por câmeras e estranhos agentes de segurança pública chamados de Soldados de Bem. De tempos em tempos, vozes metálicas dão recados ao povo por meio de alto-falantes: “Você pode tudo, cidadão de bem!”.

A história tem início em 2013, quando um grupo de mulheres negras (algumas lésbicas) foi abordada por policiais durante uma das tensas manifestações políticas daquele ano. Todas são tratadas com agressividade, mas uma delas, Janaína, acaba sendo levada a um presídio sufocante e violento.
Anos depois, ela consegue fugir e planeja com as amigas um plano para resgatar outras colegas presas em situações injustas e truculentas. Para isso, arquitetam um plano: roubar os restos mortais do ex-presidente militar Humberto Castelo Branco e usá-los como moeda de troca das prisioneiras.

O filme é profundamente desigual e desbragadamente amador. Mas traz uma potência latente tão forte, uma energia não completamente dominada tão pulsante que mesmo em cenas longas, sem ação ou mal encenadas, há sempre alguma vibração que impede por completo que o tédio domine a experiência. É como se o longa, em algum momento, fosse explodir; a tela grande parece pequena demais para a fúria daquelas mulheres.

Há algo de naturalista e, ao mesmo tempo, performático nas atuações das protagonistas Deyse Mara e Lila M. Salu. Esta última é o que muitos chamam de “força da natureza”: quando ela fala, percebe-se uma musicalidade especial em sua voz, firme e máscula, que por vezes faz parecer que está entoando versos de hip hop. Aliás, o filme tem alguns trechos musicais (vários versos são cantados e compostos pela própria Salu) que o tornam ainda mais pungente, sobretudo o rap que marca logo a abertura do filme. “Politize-se!”, “Genocídio é projeto” e “Levo a cria nas minhas costas e uma faca em minhas mãos”, dizem alguns dos versos.

“Tremor Iê” tem todos os defeitos narrativos imagináveis, mas poucos deles vêm à memória quando nos lembramos do filme após a sessão; não é isso que fica. O que o espectador leva consigo é o canto desesperado, impaciente e furioso das mulheres negras, lésbicas e pobres, cansadas de ser maltratadas e de não ter voz na sociedade brasileira (de hoje ou de qualquer época). Ancestralmente machista e elitista, o Brasil chega ao auge dessas particularidades com o governo Bolsonaro. Mas também, como nunca, parece ter encontrado a mais poderosa resistência possível: é a partir de mulheres como as de “Tremor Iê” que mudanças fundamentais para o país hão de surgir.

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