quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Crítica: "Os Oito Odiados"

(The Hateful Eight, 2015), de Quentin Tarantino


Kurt Russell e Samuel L.Jackson em "Os Oito Odiados"

[ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS]
Quentin Tarantino não gosta de falar de política – a ponto de, aliás, proibir jornalistas de lhe perguntarem sobre o assunto em entrevistas. Vendo os seus filmes, dá para entender o motivo: definitivamente não é o forte dele. Ao longo da carreira, por anos o cineasta preferiu evitar uma abordagem mais politizada sobre seus temas preferidos (a vingança, a violência, as relações de poder). Mas recentemente, até pelas constantes críticas a uma certa alienação (talvez até "frivolidade") de sua filmografia, Tarantino tem preferido incluir aspectos mais engajados em seus longas.

A proposta vem sendo feita desde "Bastardos Inglórios", com resultados nem sempre satisfatórios. Em seu penúltimo filme, por exemplo, "Django Livre", a ideia era criar um protagonista que fosse um grande líder negro, precursor da luta pelos direitos dos afrodescendentes – mas em seu banho de sangue revanchista, o "herói" vivido por Jamie Foxx nada mais era do que um monumento vivo ao individualismo (conceito tão caro à sociedade americana – a mesma que Tarantino pretendia criticar no longa). Em "Os Oito Odiados", o diretor volta a mostrar uma pretensão mais crítica, engajada: quer apresentar ao público um retrato da podridão da sociedade estadunidense a partir de sua gênese.

Tarantino volta ao universo do faroeste para falar dos EUA atuais. Fez um filme em grande escala, filmado em bitola de 70mm e com seu usual baú repleto de estratégias cinematográficas (das citações a outros filmes aos irresistíveis e criativos travellings). O filme, curiosamente, se passa a maior parte do tempo em ambientes fechados, claustrofóbicos – é um "western huis clos", digamos assim. Os personagens são forçados por uma nevasca a ficar presos em uma taberna isolada, no Estado do Wyoming. São facilmente reconhecíveis como elementos da sociedade americana, alguns deles formadores daquela nação: há um inglês, um negro, uma mulher, um mexicano, um mercenário, um militar ultraconservador, um xerife despreparado e alguns outros proscritos.

Ninguém confia em ninguém, e todos os personagens centrais são odiosos, cruéis e assassinos. Em alguns momentos, uns se mostram mais nobres do que outros – logo se verá, porém, que seu rompante de "nobreza" é apenas uma forma de justificar o crime que pretende cometer a seguir. Se o filme tem um herói, é o caçador de recompensas vivido por Samuel L. Jackson – ele é um ex-militar que trocou correspondências com Abraham Lincoln durante a Guerra de Secessão. Mas também ele comete atrocidades; é talvez um "herói", mas de modo algum um "mocinho".

A ideia é ótima: mostrar um bando de pessoas altamente condenáveis brigando entre si e se matando mutuamente, até não sobrar nenhum; no final, na taberna ensanguentada, restam apenas os ecos das belas palavras de  Lincoln sobre o árduo caminho que a sociedade americana tinha pela frente se quisesse se tornar uma nação justa. Mas o problema de um diretor como Tarantino querer incluir um final moralizante em seu filme é que seu estilo vai no sentido oposto ao que suas ideias pregam. O roteiro indica que tudo não passa de uma enorme ironia, que Tarantino desta vez faz uso de uma violência extrema para tecer comentários sobre uma sociedade que é violenta ao extremo. Mas basta ver a câmera de Tarantino em ação para compreender que a truculência espalhada pelo longa tem outra origem. 

Antigamente, Tarantino assumia sem pudores que usava e abusava da violência em seus filmes porque via beleza e fascínio na brutalidade. Era muito criticado, mas jamais se deixou coagir pelos detratores. Com o tempo, parece ter se tornado cada vez mais sensível às cobranças dessa natureza, e agora ele dá a impressão de constantemente procurar desculpas para justificar (legitimar?) a violência de seus filmes.

No geral, os derramamentos de sangue tarantinescos não são atos de violência crua e/ou realista, mas de violência estilizada; por isso causam no público muito mais admiração do que repulsa. Pode-se até questionar o quanto eles têm de gratuito, chocante ou perverso, mas o fato é que as cenas sangrentas não têm como função primordial serem agressivas ou repugnantes; são puro espetáculo. Um espetáculo talvez perverso demais, mas são acima de tudo o trabalho de um grande esteta – obra do grande "poeta da brutalidade" do cinema moderno. Os melhores filmes de Tarantino são aqueles em que ele assume a violência como parte do "show", sem arranjar desculpas esfarrapadas para empregá-la.

critica Oito Odiados
Jennifer Jason Leigh: violência com fins cômicos

Mas em “Os Oito Odiados”, ele quer fazer crer que utiliza a violência de forma a denunciar a truculência do mundo real. Mas a câmera dele na maior parte das vezes deixa entrever um prazer de natureza bem mais sádica. E o que é pior: agora, muitas vezes ele utiliza a violência para fins meramente cômicos – sobretudo no que diz respeito à personagem de Jennifer Jason Leigh, na pele de uma bandida condenada à forca. Ela já surge em cena com um olho roxo e será até o último frame um verdadeiro saco de pancadas. Entre bruscas cotoveladas, jatos de vômito no rosto e golpes que lhe arrancam os dentes, as violências que ela sofre constantemente no filme são vendidas como uma denúncia da opressão contra a mulher, naquela época e hoje. Mas da maneira como estão na tela, são usadas como gags, como piadas mecânicas para arrancar risos – são qualquer coisa, menos uma delação.

Quando Tarantino enterrou Uma Thurman viva em "Kill Bill – Vol. 2", também havia uma certa comicidade na cena, mas estava claro o tempo inteiro que Uma era a heroína e que estava sendo injustiçada; nos termos de “Oito Odiados”, quando Leigh apanha, imediatamente em seguida ela se comporta de forma a justificar a agressão que sofreu. Tem um olhar cínico, falas vulgares e, mais tarde na trama, mostra-se uma bandida da pior espécie. Há uma recorrente justificativa para a sua agressão; o público pode até odiar o personagem de Kurt Russell e sua extrema misoginia, mas é induzido a pensar que ele tinha alguma razão em seus espancamentos (mesmo o pior dos bandidos não mereceria um tratamento tão horrível).

Quando o outro grande poeta da violência nas telas, Sam Peckinpah, mostrava Steve McQueen esbofeteando Ali MacGraw, ele não condenava a brutalidade desse ato; ao contrário, é possível até que se divertisse com a cena (e concordasse que Ali merecesse mesmo uns tabefes). Mas também não fazia disso uma cena de comédia. E muito menos incluía tal imagem para denunciar a agressão de alguns homens a suas namoradas; Peckinpah, enquanto personalidade artística, era brutal e misógino – um talentosíssimo artista que criava movido por sua enorme atração pela violência. Tarantino é da mesma linhagem artística, mas parece refutar se assumir como tal. Oras, basta assistir a seus filmes: a quem ele quer enganar? Não quero de forma alguma dizer aqui que o indivíduo Quentin Tarantino tenha uma índole ruim, ou que seja um sujeito misógino, racista ou sanguinário na vida real; mas enquanto personalidade artística, também ele é inquestionavelmente misógino, racista e sanguinário – seus filmes estão aí e não me deixam mentir. (Ao menos Peckinpah não pretendia enganar o espectador.)

A cena final, com os dois homens moribundos lendo a carta humanista de Lincoln, enquanto enforcam a bandida, possivelmente foi escrita para soar como uma enorme ironia. Mas mais uma vez, da forma como Tarantino encena, não é; parece muito justificável a condenação da personagem. Tarantino estabelece um jogo muito perigoso, com o qual ele não tem habilidade o suficiente para lidar. Seu cinema anda muito no fio da navalha para encerrar um filme com uma situação tão ambígua.

A personagem de Leigh por vários momentos quase consegue nossa piedade. Mas não por causa de Tarantino, mas pela performance da atriz, que é excelente. Samuel L. Jackson e Kurt Russell também têm momentos notáveis, assim como Channing Tatum, no pouco que aparece. Por outro lado, Tim Roth, Michael Madsen e sobretudo Demián Bichir não parecem ter encontrado o tom de seus personagens; são caracterizações frágeis, pouco marcantes. A trilha musical do gênio Ennio Morricone é eficiente, embora também não seja das mais memoráveis.


O roteiro é o melhor escrito por Tarantino em anos, embora às vezes deixe muito evidente que as idas e vindas temporais parecem mais formas de disfarçar falhas que um ato de irreverência com as regras clássicas de script. Embora alguns diálogos sejam longos demais, o filme é fluido, parece ter menos minutagem que as quase três horas de duração. Há um momento especialmente poderoso: a cena em que Jackson relata como teria matado o filho do militar conservador (Bruce Dern), forçando-o antes a fazer uma felação – possivelmente, algo que nunca aconteceu de fato, mas é o único momento de "vingança" do filme que realmente funciona e tem real ressonância política. De resto, é mais do mesmo, aquele Quentin Tarantino de sempre, com tudo o que isso possui de bom e de ruim. 

2 comentários:

  1. Concordo algumas coisas, achei o filme chato até o encontro na taverna, mas depois achei o velhor Tarantino de sempre. Só queria corrigir que os personagens são 8 sim. Tirando o Tatum (que só aparece depois) os outros odiados são 8 (os outros personages não são bandidos então não são odiados, certo?)

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  2. xiiiii, percebe-se que matemática nao é meu forte... já tirei fora a parte errada, brigadão pelo toque! ;)

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