quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Crítica: "Carol"

(idem, 2015), de Todd Haynes

Rooney Mara e Cate Blanchett em "Carol"

A questão da "culpa" sempre foi um dos grandes temas na obra de Patricia Highsmith, e não é por acaso que em todos os seus romances ela sempre incluiu pelo menos um assassinato – e se dedicou a estudar a personalidade do "culpado" pelo crime. Seu único livro sem homicídios é "Carol", história lésbica lançada nos anos 50 (sob pseudônimo e com outro título*), que agora vira longa dirigido por Todd Haynes. No livro e no filme, a consciência culpada não é a de um assassino, mas a de duas mulheres que se entregam cegamente a uma forma de amor proibida – o que, na época, também era uma espécie de delito.

Haynes faz uma adaptação bem fiel ao romance, inclusive em sua atenção à questão da culpa e da dificuldade para lidar com uma sexualidade interdita em uma sociedade castradora. Mas sua preocupação primordial em "Carol" é formal: salta aos olhos o cuidado extremo do cineasta em jamais soar apelativo ou açucarado na maneira como aborda esse caso de amor homossexual. Seu desafio enquanto cineasta é fazer um filme cheio de delicadeza, e para conseguir esse efeito, Haynes abstém-se de qualquer excesso e não acentua nada: faz um filme todo em semitons.

Sob esse aspecto, o longa é um êxito: "Carol" é mesmo (e acima de tudo) um filme delicado. Mas há um efeito colateral inesperado: tamanho exercício de contenção e elegância resulta em uma obra cinematográfica muito pouco envolvente – ou, ao menos, um filme longe de ter o nível de "envolvimento" que a premissa dramática possibilitaria caso recebesse outro tratamento. Claro, o público torce pelas protagonistas, mas nunca chega a se comover de fato com o drama das duas amantes e nem a se empolgar verdadeiramente quando o romance das duas finalmente se concretiza – há um constante distanciamento emocional entre o espectador e o que está na tela.

As imagens do filme parecem páginas de alguma revista americana bem comportada dos anos 50 que de repente ganharam movimento. A textura captada em película de 16mm, as cores (o vermelho natalino predomina) e o desenho de produção fazem o público mergulhar naquela época, efeito que o próprio ritmo (algo arrastado) do filme também colabora para conseguir. Nesse sentido, o filme é vitorioso – é uma das reconstituições de época mais precisas feitas em Hollywood nos últimos anos. (É necessário registrar, porém, que às vezes a câmera 16mm é um tanto traiçoeira; a granulação típica desse tipo de bitola aparece muito marcada quando algumas cores surgem na tela, sobretudo os tons próximos ao bege, o que é um problema sério quando há closes nos rostos das personagens – os grãos da imagem parecem manchas na pele).

De qualquer forma, Haynes mais uma vez consegue arrastar o espectador para dentro de uma época, como já havia feito com os excessos glam no setentista “Velvet Goldmine” e nas cores sirkianas do também cinquentista “Longe do Paraíso”. Em "Carol", Haynes retoma os anos 50 para mostrar a relação entre Therese (Rooney Mara), uma jovem vendedora de uma loja de departamentos, e Carol (Cate Blanchett), uma dona de casa burguesa. Tudo começa como um flerte mais ou menos velado, evolui para o que parecia ser uma amizade ou um “encontro de almas” até virar, por fim, um romance altamente passional entre as duas.

Bom, ao menos era o que deveria acontecer... O problema é que Haynes não consegue promover essa gradação na passagem entre o estágio da "amizade" para o da consumação do sexo. A parte central do longa, quando Therese e Carol fazem uma (tediosa) viagem de carro rumo à Costa Oeste, dramaturgicamente deveria ser o instante de uma gradual evolução no envolvimento entre as personagens. Mas não há evolução alguma - por problemas de montagem ou de direção, o que surge na tela parece um apanhado meio aleatório de cenas com as "boas amigas" (é o que elas eram até então) conversando dentro do carro e em quartos de hotel. Não há um "crescendo" na aproximação entre as personagens, e quando as duas se beijam pela primeira vez, a cena parece totalmente fora do lugar, incluída antes da hora por algum equívoco de edição; não houve preparação de terreno para ela. O público, que devido ao ritmo lento do filme já aguardava com alguma impaciência por esse encontro carnal, acaba até levando um susto pela forma abrupta como ela acontece. 

As atrizes não parecem ter sido devidamente orientadas e estão meio perdidas nesse miolo de filme. É uma pena, porque na primeira parte do filme, Rooney Mara vinha tendo momentos extraordinários, com uma atuação particularmente rica nas sutilezas. Nos instantes logo após conhecer Carol, ela arregala os olhos, sempre assustados e cheios de curiosidade e medo. No primeiro almoço juntas, Carol lhe diz: "Que garota estranha você é!", palavras que fazem Therese engolir a seco uma porção generosa de comida e quase engasgar – a expressão facial de Mara nessa cena é indescritível; sua atuação é quase perfeita. Mas a partir da metade, a personagem Therese deixa de evoluir como prometia, e Mara não parece saber muito bem o que fazer. Blanchett, mais experiente, passa a dominar o filme, ainda que também a personagem dela não evolua dentro do esperado. Na dúvida sobre como criar suas cenas, Blanchett vai sempre no caminho mais sem erro, talvez até um pouco "no automático", mas ela é tão talentosa em cenas dramáticas que consegue segurar o filme nos momentos mais críticos; ela se torna uma presença mais encorpada e o pilar que impede que o longa desmorone por completo nas horas mais falhas. Haynes só consegue reaver o controle sobre o filme no terço final, mas aí o estrago já está feito; o espectador vê tudo com algum encantamento, mas sobretudo com frieza.

Eu não me lembro muito bem de como os personagens masculinos são delineados no livro de Highsmith, mas no filme eles são criados de forma a parecerem completos idiotas (será que Haynes ficou tão possuído pelo espírito dos anos 50 que acha que precisa tornar os homens imbecis como forma de justificar ao público o interesse de Therese por outra mulher?). Mas a textura das imagens, aliada ao carisma e ao talento das atrizes, ao menos é algo que não se esquece com facilidade. Quem leu o livro sabe muito bem o quanto "Carol" poderia resultar em um filme melhor, mais marcante, mas o que Haynes nos oferece não é pouca coisa, não.

*O misterioso título do livro quando lançado originalmente, em 1952, era "The Price of Salt" - o "preço do sal", certamente uma referência ao valor alto que se precisa pagar para ter acesso ao prazer ou ao "sal" da vida; embora menos cativante e comercial que "Carol", é ao menos um título mais poético

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