terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Crítica: "Coração de Cachorro"

(Heart of a dog, 2015), de Laurie Anderson

Uma das Lolabelles (a original?) de "Coração de Cachorro"

Em 2007, João Moreira Salles fez muito sucesso com seu documentário "Santiago", em que usava o excêntrico mordomo de sua infância como desculpa para revisitar sua própria história familiar. A crítica achou tudo lindo (e qual filme sobre as dificuldades de um cineasta para criar ela não acha lindo?), e não deu muita atenção para o fato de o pobre serviçal ser usado da maneira mais exploratória possível, talvez até predatória, utilizando-o como elemento "humanizador" em uma narrativa no melhor estilo egotrip – que, sem ele, talvez não causasse maiores comoções.

O novo filme da multiartista Laurie Anderson não é nem de longe tão artisticamente desonesto como o documentário de Moreira Salles, mas parte de um princípio semelhante: também faz uso de um elemento de fácil apelo com o público (um cão) para camuflar uma narrativa bem mais narcisista. O filme se chama "Coração de Cachorro", mas se a diretora quisesse ser realmente sincera talvez devesse batizá-lo de "A Cabeça de Laurie". Porque embora em teoria o centro do filme seja sua cachorrinha (falecida) chamada Lolabelle, no fundo o longa é sobre a mente da artista: o que ela pensa das coisas, como apreendeu as experiências de vida que já teve, como ela reage diante do que a cerca.

Anderson começa o filme narrando um sonho inusitado que já teve: um dia, ela estava grávida e dava à luz Lolabelle. De repente, passava a se sentir estranha e culpada, não pelo fato de ter tido uma filha não-humana, mas sim porque na vida real ela jamais havia conhecido sua cadelinha quando bebê (ela adotou Lolabelle já adulta). É a última coisa que se esperava enquanto "reação" de alguém diante de um sonho como esse, e o filme é o tempo todo Anderson apresentando ideias e divagações também assim incomuns, a maior parte bastante curiosa, que o filme engrena a partir desse sonho. A narrativa segue em um fluxo livre, sem nenhuma regra, só de vez em quando retornando a Lolabelle, mas sem que a presença da cachorrinha seja algo obrigatório – a diretora fala do que bem entende.

A certa altura, a narradora/cineasta faz especulações sobre a morte. Chega a uma interessantíssima conclusão (a mais enriquecedora de todo o filme): o que a torna um assunto tão difícil não é o fato de significar o fim da vida de alguém; ela é algo horrível pelo que a ausência da pessoa morta acarreta em nós. Ou, colocando de uma maneira mais direta: o ser humano é uma criatura tão egoísta que redireciona para si até o que menos lhe diz respeito, como o fim da vida dos outros; se não gostamos de saber da morte de alguém é antes pelo desagradável sentimento de dor que vamos sentir (e que vai nos desestabilizar) que por lamento pelo término da vida do falecido.

É um insight e tanto, mas talvez Anderson tenha incluído essa ideia no filme como uma referência (ou talvez mea culpa) ao seu próprio egoísmo, quando usa sua cachorra como desculpa para falar dos verdadeiros temas de seu filme: ela, ela e ela mesma. Mas as impressões de Anderson são em geral tão interessantes, inteligentes, que o espectador se pergunta: por que raios, então, o artifício do cachorro? (a saga da família Moreira Salles também era interessante o suficiente para "segurar" um documentário – o "recurso" Santiago era completamente desnecessário).

A própria Anderson é a narradora em off do filme, e ela fala de uma maneira agradável, vagarosa, com as palavras pronunciadas com muita clareza. A voz dela é limpa, sensual, mas não poderia ser menos sexy; é impessoal ao extremo (se algum dia ela desistir da carreira artística, poderia muito bem tentar a de locutora de aeroporto). As imagens que ela nos mostra são bonitas, estilizadas. Algumas são abstratas, no mesmo estilo das que vários videomakers da mesma geração dela (dos anos 80) adoravam criar. Há muitas coisas de arquivo pessoal, que incluem a presença de artistas e amigos da diretora (seu ex-marido, Lou Reed, surge muito rapidamente em apenas uma cena); a própria Lolabelle aparece pouco, sendo em geral substituída por outras cachorras que a "interpretam" em cena. Uma artista inventiva como Anderson certamente evitaria o clichê de mostrar imagens de elementos da natureza enquanto fala de questões metafísicas, mas quando ela aborda esses assuntos o que vemos na tela são justamente imagens de céu, chuva caindo e paisagens de neve; são o que o filme tem de pior.

Anderson fala de tantas coisas diferentes que a impressão é de que o filme dura bem mais que seus breves 75 minutos. É um filme-ensaio envolvente, que às vezes parece ampliar nossa própria visão sobre todos os temas sobre os quais a diretora discorre. Mas quando o filme acaba, percebemos que não vamos sair da sala muito diferentes de quando entramos; a verdade é que "Coração de Cachorro" parece não chegar a lugar nenhum. No fim das contas, não está muito longe do mero exercício de narcisismo que parecia ser.

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