segunda-feira, 4 de julho de 2016

Crítica: "As Montanhas se Separam"

(Shan he gu ren, 2015), de Jia Zhangke

Zhao Tao em cena antonionista do filme de Jia Zhangke

O longa do grande Jia Zhangke passou meio batido no festival de Cannes do ano passado: quase não se falou dele – ou quando se falou, não houve muito entusiasmo. Mas um ano depois, o filme chega aos nossos cinemas tido como uma obra-prima inconteste, como que em um esforço inconsciente de reabilitação. Da imprensa mais highbrow aos sites mais pop, a reverência a "As Montanhas se Separam" tem sido quase unânime.

Quem viu em Cannes e agora escreve sobre o longa deve ter sido traído pela memória (e os que só viram agora, como de hábito, devem ter seguido o comboio). Tem muita coisa boa, é inegável, mas é claramente um filme menor na obra de Jia. É dividido em três partes: a primeira (a melhor) se passa na China, em 1999. A segunda (sem muito brilho) acontece em 2014, no mesmo país. E a terceira (quase um constrangimento), na Austrália, em um moderadamente distópico 2025.

Acompanhando os dramas de uma moça e dois rapazes envolvidos em um triângulo amoroso, o cineasta faz o que é sua especialidade: usa as inquietações desses personagens como principal substrato para compor um quadro da China contemporânea. Um país contraditório, indefinido, com um pé no passado e outro no futuro – e a cabeça completamente perdida em algum lugar entre ambos.

A cabeça de Jia, porém, parece firme no lugar como nunca, e ele dirige seu longa de maneira sólida, autoconfiante; exibe a postura levemente presunçosa de um artista que tem ciência da própria capacidade de ir além de onde os apenas medianos conseguem chegar. Mas, desta vez, Jia não ultrapassa com muita folga a linha da mediocridade; "Montanhas" é um de seus filmes menos inspirados.

O filme tem toques de antonionismo (as perambulações; o contraste/ espelhamento dos ambientes com o espaço mental dos personagens) em vários momentos, mas sem a eficiência e autenticidade que Jia já conseguiu com esses mesmos procedimentos em filmes anteriores. Mas é no fundo um melodrama pesado, com personagens que tendem à caricatura – o que é de se estranhar, em se tratando de um diretor tão sutil e afeito a explorar a complexidade existencial de suas crias. A não ser pela protagonista feminina, os demais personagens são quase novelescos: um dos rapazes, íntegro e virtuoso, assume as dores do mundo e sofre até não poder mais (e morre de câncer); o outro é um vilão de existência vazia, que só pensa em dinheiro – abrirá mão de tudo na vida em nome do "vil metal".

A intenção do diretor talvez tenha sido traçar um paralelo de cada um com as duas faces da China atual: o sujeito honrado, mas pobre, resignado, sem lugar no mundo moderno, é a China rural, do passado, "oriental"; o mercenário, que prospera financeiramente, mas que é infeliz por vender a própria alma, é a China urbana, capitalista, ocidentalizada. Mas Jia já mostrou antes ser capaz de criar analogias bem mais sofisticadas e menos óbvias; o caricatural dos personagens predomina largamente sob seu caráter alegórico.

O filme começa com uma cena tão bela como simples – talvez a única que realmente se destaca: um grupo de jovens dança ao som de "Go West", dos Pet Shop Boys, com uma alegria viva e contagiante, à espera da chegada do terceiro milênio. Eu pessoalmente acho que inserir uma música que diz "Vá ao Oeste" para ilustrar aquele momento de ocidentalização chinesa é uma ideia antes banal do que genial (embora a crítica tenha sugerido essa segunda opção), mas é preciso reconhecer que a cena funciona maravilhosamente. Não tanto pelo "go west" em si; creio que mais pela bela melodia da canção, cujos gritos de "together" ("unidos") acentuam o espírito auspicioso, cheio de jovialidade, presente nos rostos e corpos daqueles garotos e garotas.

A dança ao som de "Go West" do início do filme

A cena é um pequeno momento mágico, que está à altura de outros breves instantes que Jia tantas vezes foi capaz de criar no passado (e que o colocam um degrau acima de tantos outros cineastas talentosos). Refiro-me aqui, por exemplo, a cenas como a do prédio que, do nada, vira um foguete e decola, em "Em Busca da Vida"; ou a do abraço comovido entre a chinesa e a prostituta russa, no banheiro, em "O Mundo"; esses breves segundos que são pequenos toques de Midas, que fazem toda a diferença em um filme.

Mas em "Montanhas se Separam", Jia procura mais desses "toques" do que de hábito, sem conseguir efeitos à altura das intenções. A cena final, também ao som de "Go West", tem sido reverenciada como uma obra-prima por si só. Nela, a personagem feminina, após uma vida dura e cheia de decepções, dança sozinha, emocionada, entre as tais montanhas do título – deveria ser uma espécie de Rosebud da protagonista: um breve retorno à alegria inocente da juventude, em um instante de adversidade. Mas a cena (apesar da excelência da atuação de Zhao Tao) é uma conclusão de filme piegas além do esperado. Pior: traz um ranço de afetação incomum na obra de Jia – não tem a mesma verdade, o frescor que sua sequência espelho-invertido (a do início do filme) esbanja. É apenas um clichê embaraçoso querendo se passar por grande arte.

Isso se estende, aliás, por toda a decepcionante terceira parte do filme, no futuro impessoal na Austrália. Ali, o filho dessa personagem feminina, há anos afastado da mãe, entra em contato com uma nova figura materna, uma personagem fraca interpretada pela atriz e diretora Sylvia Chang, diva do cinema taiwanês. O futuro pintado por Jia é muito caricatural e sem imaginação se comparado com o presente ambíguo e complexo que ele nos apresenta – ou será que ele quer dizer que o mundo que nos aguarda vai ser apenas de lugares-comuns e de pobreza criativa? (Neste terço final, quando o espectador imagina que Jia já chegou ao fundo do poço da simbologia barata, eis que ele é capaz de achar uma ainda pior: o vilão mercenário decide batizar o filho com o nome de 'Dollar'...).

O panorama da China atual que Jia traça em seus filmes é sempre interessante, mas aqui, isso por si só não confere excelência alguma ao filme. Mas o longa tem qualidades: o pulso firme do diretor, as soluções de enquadramento, o triângulo amoroso da primeira parte. Mas o melhor é mesmo a atuação de Zhao Tao: simplesmente formidável. Mas não vejo nada além disso que explique a exaltação tão exagerada a este filme sem brilho e de pouco charme, a não ser uma boa vontade por parte da crítica com um cineasta que, já há algum tempo, não encontra a inspiração de seus melhores momentos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário