quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Crítica: "Pasolini"

(idem, 2014), de Abel Ferrara



Uma grande parte dos filmes de Abel Ferrara tende à controvérsia. E como seu longa mais recente fala da vida de um homem ainda mais polêmico do que ele, o cineasta Pier Paolo Pasolini, então já está quase que por definição fadado a reações de amor e ódio.

"Pasolini" mostra o último dia de vida do diretor/poeta/ intelectual italiano, quando ele encontra amigos, dá entrevistas e fala sobre projetos. De noite, ele faz "cruising" em um subúrbio romano, pega um rapaz e dirige rumo à própria morte em uma praia em Ostia, onde seria assassinado depois de manter relações sexuais com o jovem, de 17 anos.

A morte de Pasolini ainda hoje é cercada de mistérios, quase 40 anos depois do ocorrido; muitas pessoas acreditam que ele foi assassinado pelo perigo que ele, intelectual de esquerda, representava para grupos poderosos - ele trabalhava em um livro sobre o petróleo quando morreu. Outros acham que sua morte foi o curso natural do estilo de vida que ele levava - o cineasta recorrentemente saía com garotos de programa pobres e violentos, muitos sem nem se assumirem homo ou bissexuais, e isso, na Itália conservadora dos anos 70, significava problemas.

Mas Ferrara não compra a tese do crime político. Em seu filme, Pasolini morre vítima de homofobia. Mas este também é um crime político, e como Pasolini dificilmente seria o homem que foi se não fosse homossexual (qualquer um que ler alguma de suas biografias vê isso com clareza), então ele morreu por ser quem ele era. Mais do que acreditar que não havia um fundo político em sua morte, Ferrara usa a homofobia como forma metafórica de dizer que a razão específica pela qual ele foi morto não é tão importante; Pasolini morreu por ser Pasolini e pelo que "ser Pasolini" significava na Itália daquela época. Pode até ser irresponsável da parte de Ferrara em termos de factualidade histórica, mas é uma escolha poética e muito corajosa da parte dele.

O longa é muito bonito, Ferrara mostra grande compreensão do objeto de seu filme. É uma obra rápida, tem menos de uma hora e meia, então muitos temas e pensamentos de Pasolini não são nem mencionados. Mas o essencial sobre Pasolini está ali: um homem doce e problemático, furioso pelos caminhos que o mundo estava tomando.

Ferrara até se atreve a filmar algumas cenas que Pasolini nunca teve a chance de rodar. São cenas pasolinianas em espírito e com elementos típicos da obra do italiano (a movimentação dos atores e o foco na beleza masculina, por exemplo), mas jamais se trata de "imitação" do estilo de Pasolini - são, aliás, cenas bem ferrarianas.

O uso da linguagem é engenhoso: fala-se em inglês, língua nativa do ator principal, Willem Dafoe, mesmo quando estão em cena só personagens italianos. Mas quando Pasolini fala com rapazes da periferia, a conversa é em italiano - um italiano com sotaque americano. Pode soar com o algo ridículo, mas é uma ilustração do esforço que Pasolini tinha de se comunicar com pessoas de outros meios que não o seu, sobretudo dos mais pobres - é como se no filme o inglês fosse o "italiano culto" e o italiano fosse algum dialeto ou linguagem popular (e essa escolha tem algo de reflexão colonialista, o que tem total relação com os pensamentos de Pasolini).

Willem Dafoe tem o mesmo tipo de rosto cheio de vincos que Pasolini tinha e mostra uma boa performance. Mas sua voz é muito mais grave e viril que a do cineasta. Uma das coisas mais interessantes sobre Pasolini era que quando falava, com seu timbre meio assexuado, era uma pessoa suave, gentil e paciente - uma contradição com o conteúdo de muito do que ele dizia, que podia ser feroz e violento. Dafoe é suave até onde consegue ser, mas observá-lo dizendo o que Pasolini dizia não tem o mesmo efeito de estranhamento; fica claro que ele não era a pessoa mais apropriada para o papel.

O ator favorito de Pasolini (e seu ex-amante), Ninetto Davoli, interpreta um personagem de um filme nunca realizado do diretor. Como já não é mais tão jovem, ele não mais interpreta o papel típico de Nineto Davoli nos longas de Pasolini - ele tem uma movimentação mais próxima de Totò, seu colega de elenco no filme "Gaviões e Passarinhos"; no filme dentro do filme, o personagem que seria de Davoli é vivido pelo talentoso Riccardo Scamarcio (que também interpreta o Davoli da vida real). Adriana Asti, amiga pessoal de Pasolini, interpreta sua mãe Susanna, e a portuguesa Maria de Medeiros tem uma cena ótima como a amalucada e extravagante atriz Laura Betti.

O filme é pequeno e seria um equívoco exigir dele coisas que ele não se propõe a tratar. Tem um ou dois momentos menos inspirados, mas no geral é realmente belo. Talvez não seja tão virulento como Pasolini muitas vezes era, mas é tão suave e poético como o diretor italiano era capaz de ser.

[*texto publicado originalmente no site "Brasil Post", na cobertura de Bruno Ghetti do Festival de Veneza de 2014]

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