quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "As Mil e Uma Noites" (volumes 1 a 3)

(Idem, 2015), de Miguel Gomes

Cena de "As Mil e Uma Noites 3 - O Encantado"


A crise econômica enfrentada por Portugal desde 2013 é o tema desta trilogia, que não é uma adaptação, mas apenas “se inspira na estrutura de ‘As Mil e Uma Noites’“, como um letreiro faz questão de deixar claro. De fato, o diretor português Miguel Gomes inclui sua bela Xerazade como uma estratégia para unir em um mesmo projeto pequenos episódios isolados que, sem um fio condutor, seria inviável em termos dramatúrgicos. 

Ou talvez a presença dela tenha outra explicação: em tempos tão horríveis, são necessários momentos de evasão, por meio de narrativas absorventes como as que ela narra ao marido, o rei Xariar. O projeto de três filmes semiautônomos é um enorme laboratório para que Gomes exerça da forma que achar melhor sua capacidade enquanto artista e enquanto observador social. Cabe de tudo nos longas – trechos encenados, registros documentais, cenas de docudrama, episódios surrealistas, metáforas óbvias e alegorias impenetráveis. Tudo é uma reelaboração da situação socioeconômica de hoje no país, mas também com referências à formação histórica da sociedade portuguesa.

O projeto é extremamente ambicioso e muito arriscado: podia tanto terminar como um fracasso retumbante como se tornar uma obra-prima inatacável. Há nos três volumes um pouco de cada coisa – os filmes são bastante irregulares, e Miguel Gomes não parece ter muita preocupação com o equilíbrio interno de cada um. Ainda assim, os grandes momentos de cada volume suplantam com enorme vantagem os trechos menos felizes. O projeto de Gomes já é uma das grandes realizações cinematográficas do ano de 2015.

O Volume 1, “O Inquieto”, começa com imagens e depoimentos de trabalhadores de estaleiros em dificuldades financeiras, que cedem espaço a um divertido trecho metalinguístico, em que o próprio Gomes surge como ele mesmo, um cineasta desesperado diante de suas responsabilidades para fazer um filme sobre a crise portuguesa; ele sai literalmente correndo e abandona as filmagens – o humor está sempre presente na trilogia, embora no âmago sejam filmes duríssimos e até dolorosos.

Demora uma eternidade até que surja Xerazade e a premissa do filme seja explicitada. Os episódios que ela narra incluem um que é puro escárnio, sobre autoridades econômicas que sofrem de um priapismo incontrolável, outro sobre um galo que incomoda a vizinhança por seu canto estridente e, o mais triste de todos, um sobre desempregados narrando o caos de suas vidas após a perda de seu trabalho. Em vários instantes, o filme fica parecido com aqueles sonhos sobre os quais a gente não tem controle, quando alguma coisa importante cede espaço a uma digressão, e enquanto nosso inconsciente não se livra dessa “subtrama”, é impossível voltar ao que inicialmente nos interessava. E talvez Gomes use esse artifício como um exercício de poder: mostra que é ele quem manda - é o senhor de seu filme.

O volume 2, “O Desolado”, é o mais regular. Começa com uma pungente história de um bandido que se torna ídolo, mas o ponto alto é um julgamento alegórico em que a figura da Justiça (Luísa Cruz, em performance superlativa) percebe que é impossível uma sociedade progredir enquanto a corrupção, a falta de empatia e o egoísmo ocuparem lugar central no comportamento das pessoas. Mas o trecho final não fica muito a dever, na trama simbólica que se passa em um condomínio de classe média baixa, em que um cachorrinho (uma alusão ao povo português?) troca constantemente de dono. Há também um inesperado caráter espiritual nesse trecho, que o enriquece para além da questão social.

O volume 3, “O Encantado”, tem um começo brilhante, focado em Xerazade enquanto personagem – é o trecho mais dominado e satisfatório de todo o filme. Une prazer visual, sensorial (há muita música brasileira) e intelectual – é o auge da trilogia. Mas aí Gomes paga o preço da própria ambição: inicia uma aborrecidíssima história envolvendo passarinheiros que ocupa bem mais da metade do longa. O trecho se pretende uma súmula de toda a situação social crítica pela qual Portugal passa hoje e como isso vem em um processo já histórico. Como conceito, é muito interessante; cinematograficamente, porém, o trecho é morto.

Pouco após ultrapassar a metade das 1001 noites, Xerazade para de narrar seus casos - a voz dela em off some, e a narração passa a ser toda por escrito. Até desaparecer de vez (a culpa certamente é dos passarinheiros: o rei Xariar deve ter ficado tão entediado com a trama que resolveu, por fim, matá-la de uma vez). Para quem soube contar tantas histórias instigantes até então, a bela narradora teve um final imerecidamente patético. Pobre Xerazade...  

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