quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Crítica: "Chatô, o Rei do Brasil"

(idem, 2015), de Guilherme Fontes




Na parte final de “Chatô”, o diretor Guilherme Fontes, caracterizado como um apresentador de TV à la Chacrinha, canta um jingle que diz: “Não sei se rei ou réu”. Ele se refere ao protagonista, Assis Chateaubriand, em uma cena em que ele é julgado em um programa de TV, mas bem que poderia se referir a si próprio. No filme cuja trajetória de produção foi a mais escandalosa e problemática na história da cinematografia brasileira (sobretudo por suspeitas de desvio de dinheiro), o próprio Fontes foi por anos um réu culpado de antemão pela opinião pública nacional por conta de um filme que muitos suspeitavam que sequer existia de fato.

Pois o filme existe, sim, e a julgar o que está na tela, o veredito sobre Fontes deve ser dado: ele é rei. Um rei controverso, imperfeito, mas soberano – obviamente, para um longa com produção tão problemática, não se poderia esperar nenhuma obra-prima, mas é um trabalho admirável em vários aspectos, inclusive a qualidade da produção e da direção.

“Chatô” é uma divertida e extasiante fantasia biográfica sobre o grande magnata das comunicações brasileiras. Tudo é em grande escala – podem dizer o que quiserem, mas o filme parece ter empregado cada centavo que arrecadou. Os cenários são grandiosos, há paisagens dos quatro cantos do país, os figurinos são bem cuidados e até os efeitos especiais são, em geral, satisfatórios. A grandiloquência do projeto se justifica: Chateaubriand era, ele também, um sujeito altamente ambicioso, amante de tudo o que era imponente, espetacular. Forma e conteúdo se unem muito bem aqui.

As biografias em geral tendem a uma decepcionante sacralização dos biografados – eles viram santos a despeito de seus deslizes e defeitos na vida real. Pois “Chatô”, nesse sentido, é uma antibiografia: é extremamente dura com Assis Chateaubriand, que é mostrado como um sujeito mulherengo, pedófilo, assassino, mercenário e obcecado pelo poder. Não há quase nada positivo sobre ele, a não ser um elemento, que, aliás, acaba sendo decisivo no sentido de tornar o filme tão poderoso: era um homem altamente carismático. O Chatô do longa é um grande sonhador, um homem ativo e onipresente, algo messiânico e com um invejável vigor. Amava as mulheres, as novidades tecnológicas e, sobretudo, o poder, mas sua paixão maior parecia ser pela vida, e Marco Ricca demonstra essa sede de viver com tanto empenho e brio que o personagem ganha uma dimensão épica; a atuação dele, excessiva, histriônica, com sotaque paraibano carregado, é extraordinária.

O elenco inteiro está muito bom, sobretudo Andréa Beltrão, e Leandra Leal (duas amantes de Chatô) e Paulo Betti, divertido no papel de Getúlio Vargas. (As participações de José Lewgoy e Walmor Chagas são pequenas, mas vê-los na tela em aparições inéditas é especialmente tocante).  

O filme tem uma estrutura bastante manjada. Começa com Chatô à beira da morte, relembrando, em meio a delírios, a própria vida. Tem clara inspiração em alguns grandes clássicos, como “Cidadão Kane” (a estrutura em flash back, a trama sobre um comunicador polêmico), “Lola Montès” (a figura do protagonista é exibida a escárnio em seus últimos dias, para julgamento público), “Oito e Meio” (em seus últimos momentos, Chatô revê em galeria as mulheres de sua vida). Mas em termos de humor, alinha-se mais a “O Auto da Compadecida”, com algumas cenas bastante divertidas e muito rápidas, com um humor sem medo de soar politicamente incorreto.

O ritmo do filme é alucinante, e o roteiro por vezes confuso, mas em geral isso é bastante positivo; reflete bem a personalidade delirante de Chateaubriand, sobretudo observada por ele próprio em seus últimos dias. Mas embora a edição seja criativa, em vários momentos ela é falha – há desajeito na união entre algumas sequências, e determinadas cenas parecem estar fora do lugar (para um filme que teve tanto tempo para ser finalizado, era de se esperar que esse tipo de erro fosse evitado). O filme só decai muito na última meia hora, quando tende ao caos. A última cena, no entanto, é de uma enorme audácia – não é o caso aqui de fazer nenhum spoiler, mas é, digamos assim, ao mesmo tempo sufocante e sexual.


No geral, Fontes exibe domínio narrativo e um humor ácido que, hoje em dia, talvez não tenha mais tanto espaço. Por incrível que pareça, tanta demora para estrear fez bem a “Chatô”. A confusão toda a respeito do filme adicionou a ele diversas camadas extras; hoje, é interessante em bem mais níveis que se estreasse há mais de uma década. Chatô e Fontes se confundem em vários momentos, entre acertos e erros. O filme, no final das contas, não é apenas uma cinebiografia sobre Chatô: tem também ares de “autobiografia”. No julgamento de Chatô no filme, ele não é absolvido; mas talvez na vida real, Fontes mereça veredito diferente.

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