segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "Quase Memória"

(Brasil, 2015), de Ruy Guerra


Charles Fricks e Tony Ramos em cena de "Quase Memória"

Um homem se encontra com ele mesmo, 26 anos mais jovem, e juntos travam uma conversa em que relembram fatos do passado comum. A estrutura é indisfarçavelmente teatral, com os dois atores (Tony Ramos e Charles Fricks) se movimentando em um espaço cheio de marcações e spots de iluminação que sugerem o trabalho de luz feito nos palcos. Os procedimentos, porém, são amplamente cinematográficos: há toda sorte de movimentos de câmera (os travellings en avant rápidos e vigorosos são especialmente interessantes), ângulos de filmagem inusitados e uso constante de idas e vindas temporais.

“Quase Memória” é uma adaptação do famoso livro homônimo de Carlos Heitor Cony, e, em seus momentos mais inspirados, tem boas reflexões sobre a memória: os personagens se deparam o tempo todo com os mecanismos ardilosos que nosso cérebro utiliza para falsear algumas lembranças, recalcar outras, promover esquecimentos e escolher os detalhes de uma situação a serem lembrados. Esperto, está sempre rearranjando seu conteúdo da maneira que mais lhe convém.

Mas o exercício de rememoração que o “eu” velho e o “eu” jovem praticam é focado não nas lembranças da própria vida deles dois, mas sim na do pai, cuja imagem é (re)construída por ambos em um processo colaborativo de esforço memorial. E o filme se dedica a esse personagem (João Miguel), um jornalista de personalidade intensa, cheio de paixões e algo grandiloquente – na verdade, um grande e incorrigível sonhador.

Eu não li o livro de Cony, mas estou certo de que a intenção era a de homenagear a figura de seu pai – que, de fato, parece um personagem e tanto. Talvez no livro, na linguagem escrita, a transição do encontro dos dois “eus” para as suas lembranças do pai transcorra com fluidez e naturalidade, mas no filme, as duas coisas não casam muito bem. A opção pelo foco nesse personagem paterno soa como uma negligência das possibilidades que a trama vinha apresentando até então; se o velho e o moço se dedicassem a relembrar o próprio passado, em um exercício de luta de “versões” para o que aconteceu, o filme seria infinitamente mais interessante. É sempre decepcionante quando o longa abandona os dois “eus” para se dedicar às memórias das coisas que aconteceram ao pai deles (em eventos em que, muitas vezes, o “eu” sequer estava presente); o filme constantemente dá a impressão de ser um desperdício de uma ótima ideia.

“Quase Memória” é um longa dinâmico, que além de abordar questões instigantes e mostrar personagens ricos conta também com um visual repleto de estímulos – cores vibrantes, luzes fortes, atuações histriônicas; no entanto, é um filme estranhamente sem apelo, algo trôpego, que não estabelece com o espectador nenhuma sensação mais forte que uma leve simpatia (não muito distante de uma total indiferença). Nem o humor sempre presente consegue trazer mais vibração ao filme, e o saudosismo pela vida na primeira metade do século 20, que poderia ser algo comovente e poético, aqui soa antes de mais nada como algo frustrantemente antiquado.


Tony Ramos tem uma brilhante atuação como o “eu” idoso, sobretudo em um monólogo quase no fim do filme; já a performance de Charles Fricks, embora eficiente, não está no mesmo nível. Os demais atores estão apenas satisfatórios em seus personagens caricatos, e o roteiro, apesar de alguns bons momentos, tem descuidos (não sei se isso está no livro, mas o “eu” jovem, que vive em 1968, a certa altura cita um filme de Federico Fellini... só lançado na década de 70).

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