terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Crítica: "Cartas da Guerra", "24 Weeks" e "Quand On A 17 Ans"


Cena de "Cartas da Guerra"
“Cartas da Guerra” é um filme perturbadoramente bonito. As palavras que descrevem os fatos são muito bem escolhidas, as vozes que narram são elegantes, os atores são extremamente fotogênicos. A direção de fotografia, então, chega a comover, de tão bonita (é o melhor preto e branco em anos). E no entanto...

O filme é de uma afetação impressionante. Mostra um soldado português que foi lutar em Angola, na guerra que terminaria com a libertação do país do domínio lusitano, na década de 70. O rapaz deixou em casa sua bela mulher grávida à sua espera, e enquanto eles não se reencontram, trocam cartas de amor e confidências.

O roteiro traz trechos inteiros do livro homônimo de António Lobo Antunes em que se baseia, e obviamente são palavras de muito bom gosto, poéticas. Mas são literárias demais – certamente quando lidas em uma folha de papel devem causar um forte efeito lírico. Mas quando declamadas por toda a duração de um filme por uma linda voz feminina, soam terrivelmente pedantes, excessivas, muitas vezes até cafonas.

E há no filme um grande desacerto: nada do que está escrito nas tais cartas equivale ao que a câmera do diretor Ivo Ferreira nos mostra. Ora, o protagonista passa o filme inteiro reclamando dos horrores da guerra, dizendo que não se aguenta de saudade da mulher, que o que restou dele é apenas um vestígio do homem que ele um dia já foi... e no entanto, o que vemos é um homem saudável, belo, calmo, que parece no máximo levemente entediado. Junto a ele, outros homens bonitos, contentes, rodeados por paisagens de uma plasticidade estonteante. Mesmo as cenas de violência são lindas; não há “horror de guerra” algum no filme.

A única possibilidade de este filme fazer algum sentido é se o entendermos como um estudo sobre uma narrativa e o quanto ela destoa da realidade; ou sobre o quanto a verdade e o discurso que uma pessoa faz sobre ela são coisas distintas. A África cosmetizada no preto e branco sebastião-salgadiano da câmera de Ferreira remete muito mais à ideia de paraíso do que do inferno que ele descreve nas cartas. Mas certamente essa não foi a intenção do diretor; seu filme é pura afetação, apenas.

Julia Jentsch em "24 Weeks"
O longa mais corajoso até o momento é o drama “24 Weeks”, da alemã Anne Zohra Berrached. Mostra uma comediante que engravida de um filho que, pouco depois, ela descobre ter síndrome de Down. Após hesitar um pouco, ela decide tocar a gravidez adiante, mas já em estágio avançado de gestação, fica sabendo que seu filho terá problemas cardíacos sérios, que talvez o comprometa para o resto da vida – e que certamente exigiria dos pais dedicação exclusiva.

Enquanto o Brasil mal ousa a falar em aborto em casos extremos descobertos no começo da gravidez, eis que a Alemanha nos vem com um filme em que a personagem chega ao fim dizendo em uma entrevista algo como: “Precisamos falar sobre o aborto aos sete meses de gestação”. Eu duvido que o longa sequer ganhe distribuição na maior parte do mundo – no Brasil, no entanto, eu acredito que talvez até venha (e se vier, fará bastante barulho).

Como realização cinematográfica, “24 Weeks” não é um êxito à altura do seu potencial polemista, mas é sem sombra de dúvida um filme bem melhor do que o dramalhão que poderia se tornar. O roteiro tem uma tendência a quase cair no estilo “filme para a TV”, mas antes de chegar a esse nível baixo, consegue se recolocar em vôo; é bastante assistível para um tema tão pesado. A diretora é esperta e inclui toques cômicos de forma a não tornar a cosia toda muito insuportável. Consegue que o filme seja uma experiência não muito sufocante por grande parte do tempo, mas nos minutos finais, quando a protagonista precisa tomar uma decisão, é inevitável: o filme se torna altamente angustiante. 

Se “24 Weeks” pisa em ovos no tratamento da questão do aborto, o da mulher enquanto única pessoa capaz de decidir se vai ou não interromper  a gestação não é sequer discutido; ali, é a figura feminina que toma a decisão, e ai de quem ousar rejeitar essa ideia (quando a personagem toma as rédeas sobre as próprias escolhas, houve um grito na sala – possivelmente de apoio a ela).

Julia Jentsch, uma das atrizes alemãs mais conhecidas fora de seu país, tem uma atuação bastante boa, intensa como a comediante que perde a graça ao enfrentar um enorme drama. Se ganhar o prêmio de melhor atriz, ninguém poderá chamar de injustiça.

"Quand On a 17 Ans"

O terceiro filme do quarto dia foi “Quand On A 17 Ans”, do francês veterano André Téchiné. É uma história de dois adolescentes colegas de classe que se detestam e vivem o tempo todo em conflito físico. O destino faz com que os dois rapazes precisem conviver por meses em uma mesma casa, mas demora até eles perderem a raiva que sentem um pelo outro.

Há uma máxima que diz: “Desconfie dos seus ódios” – a frase se aplica muito bem ao caso exposto no filme. Vou evitar aqui entrar em detalhes de trama, mas se eu contasse o que acontece não seria spoiler algum – desde o início, apesar de esforços do cineasta, já se imagina muito bem o que levou os dois jovens a se detestarem. E se prevê com clareza a que ponto essa aversão de um pelo outro os levará...

Téchiné já tem mais de 40 anos de carreira, e às vezes eu tenho a impressão de que a arte dele não evoluiu absolutamente nada nesse tempo todo. Ao contrário: ele já fez filmes bem mais frescos, inquietos, no passado. O que ele apresentou em Berlim parece um longa sobre descobertas adolescentes feito há 20, talvez 30 anos atrás. É um filme palatável, bonito, mas é “velho”, parecido com 300 outros sobre os mesmos temas. Sua escolha para a competição oficial é uma injustiça com vozes mais ousadas que poderiam estar ali.

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