segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Crítica: "Mad Max: Estrada da Fúria"

(Mad Max: Fury Road, 2015), de George Miller*

Tom Hardy e Charlize Theron em "Estrada da Fúria"

O quarto filme da franquia australiana retoma a história do guerreiro das estradas Max Rockatansky, em uma Austrália futurista de um planeta caótico. A trama conta com elementos ecológicos e tem um subtexto libertário (de inspiração esquerdista), mas o foco é mesmo na forma. As cenas de adrenalina são realmente de tombar o queixo, garantidas por uma montagem frenética, efeitos sonoros bem sincronizados e uma porção de ângulos de filmagem criativos, bem ao estilo do diretor. Miller usa de modo esperto alguns truques antigos, que o cinema parecia ter esquecido, como a aceleração de imagens; algumas cenas, além de ágeis, ganham comicidade com essa trucagem. 

O longa tem algo de operístico: tudo acontece em uma escala maior e mais impressionante do que se esperaria – talvez seja por isso que impressione tantas pessoas (ouvi de algumas que o filme é uma "revolução" no âmbito do cinema de ação; não chega a tanto). Esse aspecto de "ópera" é mesmo impactante, mas a verdade é que muitas vezes ele vai mais contra o filme que a seu favor. As sequências de batalha nas estradas, por exemplo, apesar do ritmo alucinante, me parecem um tanto mais longas do que deveriam ser; são como lindas árias cantadas por competentes tenores e sopranos, mas são árias quase intermináveis, que a certa altura cansam a plateia (mesmo gostando do filme, eu devo ter conferido o relógio umas três ou quatro vezes – e quando um espectador checa as horas durante um filme de ação, alguma coisa não está muito certa).

Mas em praticamente todos os outros pontos, o filme é um êxito. É preciso tirar o chapéu, por exemplo, para a opção de Miller por fazer um filme com imagens claras, com uma fotografia luminosa; ele vai na contracorrente da maior parte dos filmes repletos de efeitos especiais, que por razões técnicas abusam das tonalidades escuras/azul-petróleo. As cenas aqui são solares e reluzentes como pede um deserto, mesmo quando a ação é noturna. E o filme é cheio daquele tipo de detalhe visual inusitado, meio barroco, que Miller adorava incluir nos outros filmes da franquia.

Algumas imagens ficam na nossa retina: o guitarrista enlouquecido tocando riffs de estímulo a um pelotão de guerreiros; um grupo de mães rechonchudas doando leite de seus fartos seios; o bando de mulheres esguias que mais parecem divindades se refrescando com água no meio do deserto. Dos quatro "“Mad Max", eu ainda hoje gosto mais do primeiro, o de 1979. Não é, tecnicamente, o melhor da franquia, mas o filme tinha um certo primitivismo – e amadorismo – que davam um charme especial à trama; nunca gerava muita expectativa, e por isso mesmo seus pontos altos proporcionavam um prazer mais puro, mais genuíno do que o propiciado pelos filmes dos quais esperamos grandiosidade. Mas os dois seguintes também eram bons: "Mad Max 2" (1981) era estética e estruturalmente mais sofisticado que o primeiro – e também bem mais ensandecido; com mais dinheiro para a produção, Miller se deu ao direito de enlouquecer em um nível que o filme-piloto não permitia. O terceiro, "Além da Cúpula do Trovão" (1985), seguia esse mesmo esquema da dobradinha "insanidade e adrenalina".

Àquela altura, qualquer resquício de realismo já havia evaporado da série. Já havíamos entrado por completo no terreno da fantasia, mas isso não quer dizer que a saga tenha se desligado do mundo real. Ao contrário: jamais deixou de falar dele, só passou a fazê-lo por meio de alegorias – um tanto extravagantes, é bem verdade, mas sempre interessantes ilustrações de questões bem próximas à realidade humana da época de cada filme. E, como os antecessores, "Estrada da Fúria" fala muito sobre seu tempo. É curioso que a ideia do filme tenha surgido ainda nos anos 90, quando Miller se dedicava a projetos bem distintos (como o tristíssimo "O Óleo de Lorenzo" e a comédia-família "Babe, o Porquinho Atrapalhado na Cidade"). Mas mesmo tendo sido concebido há mais de quinze anos, o quarto "Mad Max" é atualíssimo. 

As 'deusas' guerreiras de George Miller

Por exemplo, o filme tem uma posição feminista que vem muito a calhar em tempos atuais, em que a nuvem negra do moralismo volta a pairar no ar – quando muitos de nós achávamos que era algo já superado. Pode parecer bizarro, mas nos anos 90, quando o projeto surgiu, talvez o caráter feminista do filme passasse batido, não fizesse muito barulho. Sim, leitor, por incrível que pareça, a necessidade de fazer uma defesa da mulher não era tão necessária naquela época como é hoje – regredimos muito nesse sentido (prova disso é que um grupo de homens se sentiu traído e ficou revoltado com o fato de o filme dar muito destaque para as personagens mulheres, chegando a pedir boicote ao longa; e eu que pensava que estávamos evoluindo enquanto sociedade...). De fato, Max é um herói discreto demais para os padrões dos filmes de ação recentes. Mas desde o segundo longa da série, ele já se inscrevia nessa mesma tradição do personagem que Clint Eastwood celebrizou nos faroestes de Sergio Leone: o herói forte, mas lacônico, solitário, que tem aversão por ligações afetivas – é uma espécie de guerreiro nômade e freelancer, cujo objetivo de vida é sobreviver.

Em "Estrada da Fúria", Max não chega a ser um coadjuvante, mas ele é menos ainda o centro do filme; em grande parte das cenas, divide o protagonismo com personagens menos importantes, e com isso (creio eu) o diretor pretende passar uma mensagem humanística muito bonita e relevante no mundo atual: a da necessidade de as pessoas se unirem. É o bom e velho "a união faz a força" – ninguém é melhor do que ninguém quando precisamos lutar por uma causa maior. É uma deixa para refletirmos sobre nosso mundo, em que o capitalismo avançado levou as pessoas a pensarem só em si e a quererem o tempo todo se distinguirem das demais. Um aviso de que o mundo, pelo jeito que vai indo, talvez não demore muito a se tornar algo como a grande Wasteland que Miller prenuncia na tela. 

Se a superioridade e o heroísmo de Max fossem sempre predominantes, o filme não teria nem metade da graça – estaria a meio caminho de ser apenas "mais um filme de herói" entre os tantos (e pavorosos) lançados nos últimos anos por Hollywood. E o leitor há de concordar que tem sido difícil aguentar a excessiva oferta de produções com super-heróis no mercado, sobretudo porque tais filmes têm passado longe de qualquer modo de inovação ou risco (o único tipo de novidade que trazem são os efeitos especiais – aliás, cada vez menos interessantes, de tão visivelmente computadorizados). A Marvel tem dado imensa contribuição para tornar o mercado de blockbusters cada vez mais repetitivo e infantilizado; nesse cenário, aparecer um filme como "Mad Max" é quase uma bênção.

Para as intenções do filme de realçar a noção de "trabalho em grupo", a escalação de Tom Hardy foi bem acertada. Ele é bonito, musculoso e possui talento dramático – tem a imagem necessária a um herói. Mas o ator não tem uma imagem suficientemente magnética para ser sempre dominante em cena (como o Mel Gibson dos anos 80 tinha). De uma maneira cavalheiresca, Hardy praticamente "cede" o filme a Charlize Theron, extraordinária como a Imperatriz Furiosa; mesmo estando o tempo todo suja, mal vestida, sem um braço e com os cabelos raspados, ainda assim ela é uma deusa, tão ou mais deslumbrante que as outras beldades que a acompanham.

Hardy é simplesmente incapaz de se sobrepor a Charlize, é fato, mas ele tampouco se anula diante dela; seu Max pode ser discreto, mas nunca é um herói desbotado ou insosso. Ele tem vigor. O ator foi a escolha perfeita para o papel – ele e Charlize mal trocam olhares, mas há sempre uma tensão sexual eletrizante entre ambos; os dois formam um dos "não-casais" mais românticos e sexies da história do cinema. Nicholas Hoult é uma presença divertida – ele ainda mostra aquele mesmo espírito de traquinagem nos olhos azuis-claros de quando ainda era criança, em filmes como "Um Grande Garoto" (2002); seu personagem, Nux, é um war boy, uma espécie de jovem kamikaze capaz de sacrificar a própria vida em nome da emoção. O personagem, porém, não evolui da maneira que poderia e fica menos interessante com o avançar do filme, mas a atuação de Hoult é tão enérgica que suplanta qualquer falha do papel. 

Por outro lado, Hugh Keays-Byrne, o vilão Immortan Joe, tem uma máscara no rosto que o impede de fazer muita coisa por seu fraco personagem; é um vilão frustrantemente sem graça, que tem pouca ressonância – o público tem sempre a sensação de que o grande inimigo de Mad Max é outro: as condições adversas do mundo em que vive, ou mais propriamente todo um “estado de coisas” daquela época. E com razão: superar esse mundo em que a barbárie impera é o verdadeiro desafio do herói e de seus companheiros. De uma certa forma, os nossos inimigos de hoje não são muito diferentes dos de Max. Mas será que teríamos o mesmo ânimo e coragem de nos unirmos e irmos contra nossos vilões?

*[Texto originalmente publicado na coluna de cinema do site da MTV, em 21.mai.2015]

2 comentários:

  1. Meu preferido é o clássico de 1979, mas não é um filme perfeito, é sujo!
    A Estrada da Fúria? Literalmente achei uma bela duma bosta! Por que? Não tem narrativa alguma, só personagens urrando e gritando V8!

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  2. Eu também prefiro o de 79, Anônimo. ;) Mas gosto do "Fúria", embora ache um tanto supervalorizado

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