Gaspard Ulliel e Isabelle Huppert em cena de "Eva" |
"Eva", de Benoit Jacquot, é inspirado no mesmo livro que, nos anos 60,
havia rendido um filme homônimo dirigido por Joseph Losey. Desta vez, sai
Jeanne Moreau e entra Isabelle Huppert, no papel de uma prostituta destrutiva,
capaz de arruinar a vida de quem se apaixona por ela.
O filme de Losey era tão ruim quanto um filme pode ser, mas
Jacquot consegue o inimaginável: supera o antecessor nesse quesito. A nova versão
é um thriller com toques cômicos tão cheio de inconsistências e equívocos de
base que chega a ser surpreendente que o projeto tenha um dia saído do papel.
Gaspard Ulliel (em uma atuação singularmente antipática) é
um michê que ganha uns trocados fazendo serviços sexuais a velhotes. Quando um de
seus clientes, um renomado autor teatral, morre pouco antes de fazer sexo com
ele, o rapaz rouba uma de suas peças inéditas e, meses depois, a lança como se
fosse de sua autoria. Faz, assim, sucesso com o espetáculo, firmando-se como
nome promissor das artes cênicas. Mas quando o jovem tenta escrever uma peça com
seus próprios recursos, não consegue nada além de diálogos rasos e situações cheias
de platitude; é um embuste que, cedo ou tarde, será descoberto.
Quando um dia ele conhece uma prostituta (Huppert) de
comportamento ousado e peculiarmente atrevido, o rapaz acredita que ela poderá
servir de inspiração para que ele possa criar um novo texto com mais qualidade.
Parece acreditar que uma “trama” interessante é suficiente para uma boa dramaturgia,
ignorando conceitos como “conteúdo” ou “forma” (mais ou menos como Jacquot parece
pensar sobre seu filme). Contrata a meretriz para usá-la como uma espécie de
musa, mas logo terá sentimentos mais fortes por ela.
Isabelle Huppert é uma atriz capaz de fazer quase tudo o que
quiser em cena, mas está completamente inadequada como a prostituta de luxo (e que
cobra 300 euros por programa) que dá nome ao filme. Não é tão mais jovem e não tem
o tipo de sensualidade carnal e óbvia que em geral costuma ser pré-requisito às
garotas de programa que faturam alto. Seu charme é frio e cerebral demais; ela
poderia até fazer fortuna como prostituta, mas apenas se explorasse o tipo de sexualidade
que lhe é tão particular: a do campo do mistério ou do fetiche. Mas sua Eva
está longe de ser esse tipo de mulher: não tem um lado obscuro que gere
fascinação.
É, sim, uma mulher fascinante, mas por outros motivos. Se Huppert
não convence como “mulher fatal”, funciona perfeitamente bem, sim, como musa para o teatrólogo. É sempre
delicioso observá-la em cena; quando ela janta pela primeira vez com Ulliel, com
os lábios vermelhíssimos, dando risadinhas inesperadas, mostra que de fato o
rapaz tem razão ao achar que ela pode fazer algum milagre e inspirar um
maravilhoso espetáculo. Mas não tem
relação alguma com sexo: o fascínio que ela causa é de outra natureza. Nessas
cenas "não sexuais", a personagem sobrevive bem, e o filme consegue seus
melhores momentos. Mas quando Eva quer passar por sedutora, o filme não decola
de jeito nenhum. (Mas pior ainda é quando Isabelle não está em cena: aí simplesmente rola ladeira abaixo). Jacquot, Ulliel e sobretudo Huppert já
tiveram momentos bem mais felizes em suas carreiras. Não precisavam (nem
mereciam) passar por esse constrangimento.
Milan Maric é o personagem-título de "Dovlatov" |
"Dovlatov" conta a história de um talentoso poeta russo que passou a vida tentando se destacar como escritor, mas que só conseguiu o sucesso depois de morto. Foi vítima da censura e sobretudo da burocracia soviética, que na década de 1970 (quando Dovlatov surgiu na cena literária de seu país) estava mais acirrada do que nunca.
O filme do russo Alexey German Jr. é uma revisita crítica à União Soviética daquele período, mas não investe apenas naquele tipo de denúncia amarga de tantos outros filmes russos, que visam apenas a desconstruir qualquer noção positiva sobre a experiência socialista no leste europeu. Parece antes uma forma de alertar para o fato de que muitos talentos são constantemente desperdiçados, muitas vezes por razões muito imediatistas e pouco inteligentes; a sociedade só tem a perder com isso.
O filme é longo, mas muito bem feito, com diversos planos-sequência de festas e saraus em que se fala muito sobre política e literatura russa. Nota-se o fascínio de German pela cultura de seu país. Pessoas entram e saem do campo o tempo inteiro, e o cineasta demonstra um invejável controle do que coloca em cena; é um encenador extraordinário (há algo de felliniano na entranha do longa e mesmo na mise en scène proposta pelo diretor). E o filme, embora por vezes reiterativo demais (algumas ideias são repetidas em excesso), consegue driblar uma certa tendência ao sufocamento, ao "peso", que o roteiro traz. Termina lírico, comovente.
O público lamenta a dor do escritor talentoso que não teve a chances que merecia. Para além do caso específico de Sergei Dovlatov, este belo filme nos faz pensar também no quanto milhões de outras pessoas também têm seus talentos e paixões abafados porque esses não servem ao mundo tal como ele é estruturado hoje em dia. Por pura falta de oportunidade, muita gente que poderia ter uma existência tão cheia de realizações pessoais e que poderiam prestar grandes serviços à sociedade, passam a vida subaproveitadas em atividades pelas quais não se interessam. Vivem frustradas, e essa, infelizmente, parece ser a regra. "Dovlatov" é um filme tristíssimo, no fundo.
Paula Beer e Franz Rogowski em "Transit" |
O badalado Christian Petzold trouxe à Berlinale o
filme que, até o momento, talvez mais tenha tido aplausos na sessão de imprensa. "Transit"
é um thriller agitado, de fundo político e que se passa em uma França de época
indeterminada – no filme, o país se encontra sob ocupação alemã. Mas não se trata
da Ocupação pela qual os franceses passaram na Segunda Guerra; seria como que
um retorno da França às mãos de forças nazistas (embora não se saiba exatamente
quando a trama se passa, provavelmente é em um futuro próximo).
A mensagem geral é óbvia: corremos o risco de voltar a viver
em um mundo dominado por forças reacionárias e desumanas, que quase se
impuseram no mundo durante a Segunda Guerra. Mas isso não é abordado
frontalmente, servindo antes como pano de fundo para uma trama mais complexa, que
envolve um homem que assume a identidade de um escritor para conseguir fugir
para um país livre da ameaça alemã.
O filme é protagonizado por Franz Rogowski, que lembra muito
Joaquin Phoenix, só que em versão com bem menos recursos dramáticos (ele é o que restaria de Phoenix se, além do talento, também lhe retirassem
o sex appeal). Petzold parece acreditar demais na capacidade do ator, mas seu
estilo minimalista nem sempre funciona; ele não consegue carregar o filme
consigo. Mas felizmente, Petzold pode contar com Paula Beer, que engrandece as
cenas em que aparece e injeta um pouco de vigor e charme no longa.
"Transit" é um filme dinâmico e, ao que parece, capaz de
prender a atenção de muitos espectadores. Não foi o meu caso: eu confesso que em
vários instantes me peguei pensando na vida do lado de fora da sala (e às vezes
quase cochilando); o compasso do filme e a maneira de Petzold abordar seus
temas tendem a me deixar mais exaurido do que propriamente interessado.Reconheço
que o filme tenha qualidades, mas para mim nenhuma delas foi o suficiente para
manter meu interesse até o fim.
Puxa, eu estava tão animada para assistir EVA, principalmente depois de ver o misterioso trailer. Que pena ler essa crítica, mas obrigada pelo toque, assim não assistirei ao filme com tanta expectativa. Acho Isabelle muito linda e sensual à sua maneira, vamos ver se esse jogo de sedução e mistério me convence ou não.
ResponderExcluirOi, Julie, concordo contigo: Isabelle é muito sensual (à maneira dela). Mas esse filme é um equívoco em vários níveis, nem ela consegue salvar, infelizmente - e olha que Isabelle consegue milagres...
ExcluirAlias, já leu meu artigo sobre ela? Se tiver interesse, dá uma espiada no link: http://www.abriroolhar.com.br/2017/10/ensaio-isabelle-huppert-e-o-que-esta.html
Obrigado, um abraço