sexta-feira, 30 de junho de 2017

Entrevista: Tilda Swinton fala sobre "Okja"

Tilda Swinton e a garota Seo-hyun Ahn, em "Okja"

No começo de maio de 2017, eu entrevistei Tilda Swinton e Jake Gyllenhaal durante o Festival de Cannes, onde o filme "Okja", do sul-coreano Bong Joon-ho, disputou a Palma de Ouro (e, felizmente, não ganhou nada). A inclusão do longa na competição fez história e gerou muita controvérsia - afinal, pela primeira vez um filme com exibição apenas em um serviço de streaming, sem ir às salas tradicionais, concorria ao prêmio máximo em Cannes, o mais relevante evento de cinema do mundo.

Eis a questão: um filme que não é exibido em uma sala de cinema pode ser considerado "cinema"? Na minha cobertura para o UOL eu escrevi um texto falando sobre o assunto, que pode ser conferido no link. Vale a pena também entrar neste outro link, em que Pedro Almodóvar (presidente do júri em Cannes 2017), diz o que ele pensa sobre o assunto.

Segue, aqui, a entrevista que fiz com Tilda e Jake, para o UOL:


Minha opinião sobre "Okja"? Tem algumas poucas questões interessantes (a discussão do abatimento de animais para a nossa alimentação; a mistura de gêneros algo ousada para um filme blockbuster; a curiosa caracterização de Tilda Swinton). Mas é um filme desmedido, com uma articulação desastrada dos vários gêneros (ação, infantil, drama, aventura), sem se destacar em nenhum. Tem falhas de ritmo e uma visão meio superficial das coisas, além de incorrer em um sentimentalismo cansativo. Em suma: um filme dispensável, que não merecia de modo algum entrar para a história, mesmo que por motivos que não dizem respeito à suas qualidades fílmicas.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Afinal, o que define uma grande atuação no cinema?

Rod Steiger (O Homem do Prego), Meryl Streep (A Escolha de Sofia),
Al Pacino (Um Dia de Cão) e Katharine Hepburn (Longa Jornada Noite Adentro)

OBS: O texto abaixo foi escrito para o site Huffington Post Brasil (na época, Brasil Post), em 08 de agosto de 2014. O original está no link http://www.huffpostbrasil.com/bruno-ghetti/afinal-o-que-define-uma-grande-atuacao-no-cinema_a_21674168/

Dia desses, uma amiga americana, jornalista, quebrava a cabeça tentando elaborar um ranking com as dez maiores atuações da história do cinema. Já exausta, pediu minha opinião, e imediatamente me vieram à mente tantas performances, de atores tão diferentes e de estilos e épocas tão distintas, que, dois minutos depois, em vez de uma lista, eu quase apresentei a ela meus pêsames por ela ter uma tarefa tão complicada pela frente.
Ao pensar em "grande atuação", me vieram logo à cabeça as três maiores atrizes em atividade: Meryl Streep, Isabelle Huppert e Judi Dench. A Meryl de A Escolha de Sofia, claro, mas também as de A Mulher do Tenente Francês e Silkwood. A Isabelle de A Professora de Piano, que poderia liderar a lista, e a Judi de Notas sobre um Escândalo. Depois pensei nas grandes damas do passado: Bette Davis, em A Malvada, Katharine Hepburn, em A Mulher que Soube Amar e Longa Jornada Noite Adentro, Olivia de Havilland, em Tarde Demais.
Entre os homens, vários Jack Nicholsons (Cada Um Vive Como QuerChinatownUm Estranho no Ninho), Robert De Niros (Taxi DriverTouro IndomávelCabo do Medo) e Al Pacinos (Um Dia de CãoSerpico). Também muitos (quase todos) Rod Steigers e Marlon Brandos, claro, e pelo menos um Laurence Olivier (Ricardo III), outro que poderia facilmente estar no topo do ranking. Dos mais modernos, Daniel Day Lewis (Meu Pé Esquerdo) e Joaquin Phoenix (O Mestre).
Mas logo deixei o assunto de lado e fui cuidar da vida. Dias depois, a amiga me mostrou a lista dela - até interessante, por sinal. Peter O'Toole (O Leão no Inverno) e Viven Leigh (E o Vento Levou) estavam no topo. Senti-me péssimo por ter esquecido O'Toole no meu ranking (como eu pude??) e também achei estranho deixar passar batido a Scarlett de Leigh. Mas para quem havia esquecido gênios como Anna Magnani, Gérard Depardieu e Ingrid Bergman, nada de mais... Sem contar os brasileiros (mas aí, tenho uma desculpa - meio esfarrapada, mas ainda assim um álibi: a amiga era americana, então a não ser pela Marilia Pêra de Pixote ou a Fernanda Montenegro de Central do Brasil, de nada adiantaria eu mencionar gigantes como Lilian Lemmertz ou Jofre Soares: ela não os conheceria). Em comum, nossas listas traziam apenas Meryl Streep.
Mais do que eleger realmente as maiores atuações da história, esse exercício (que não leva rigorosamente a lugar nenhum) me fez pensar em uma série de questões sobre como avaliamos os atores e suas performances. Nossas escolhas dizem muito sobre valorizarmos certos tipos de atuação em detrimento de outros.
Pesquisando outras listas na internet, percebi que a tendência é dar melhores posições no ranking a atuações em filmes de língua inglesa, de dramas e de atores que são também grandes estrelas. Performances em comédias ou filmes de gênero são raras. É como se confundíssemos sofrimento na tela com competência artística: quanto mais dramática a trajetória do personagem, mais impressionados tendemos a ficar. A chance de o ator nos ganhar (e de ganhar prêmios) aumenta consideravelmente se ele passa por mudanças físicas radicais e se o personagem que interpreta existe na vida real (gostamos de observar atores se metamorfoseando em seus biografados).
Mas como definir tecnicamente o que é uma boa atuação? Desde que o teatro existe, discutem-se procedimentos e até se teoriza sobre os caminhos para os intérpretes serem bem-sucedidos. Por muito tempo, o ator mais valorizado era aquele que conseguia sentir de fato o drama do personagem, sendo como que possuído por ele. Foi Diderot, no século 18, quem inaugurou a visão da primazia da técnica sobre o sentimento: um grande ator era quem enganava o público, fazendo-o crer que sente algo, quando, no fundo, é dono do próprio corpo. Essa visão influenciou uma vertente muito forte do teatro, o britânico sobretudo.
Foi a partir dos anos 30 que a representação começou a ter contornos mais próximos de como é hoje. Lee Strasberg, inspirado por Stanilavski, defendia a fusão entre o ator e o personagem - o intérprete deveria compreender a psicologia do seu papel e se apropriar dela usando a sua própria memória afetiva; os gestos deveriam vir de uma motivação interior. No cinema, Brando capitaneou essa tendência - e revolucionou toda uma arte. Hoje em dia, os atores tendem a mesclar estilos de atuação, recorrendo mais a um ou outro método quando acha mais apropriado. Talvez por isso, já faz algum tempo que o nível das performances no cinema (ao menos o de Hollywood, nem tanto o do Brasil) é felizmente bastante bom.
Mas a escola de onde vem um ator pouco importa: o método escolhido pelo intérprete, aliás, nem sempre é perceptível pelo público. O gosto de cada um conta muito na hora de julgar uma performance. Tenho um amigo que, sem nenhuma razão em especial, não gosta de Fernanda Montenegro, e já li por aí gente que não entende por que Brando é tão badalado. Eu mesmo tenho lá opiniões das quais muitos discordam. Sou particularmente imune, por exemplo, às atuações que vêm juntas ao ganho ou perda excessiva de peso do ator; nesses casos, não só acho que ele usa a transformação corporal como uma muleta como tenho minha atenção desviada da performance em si para a alteração física. Não raro fico com pena do ator, pois sei que ele jamais voltará ao que era antes (após emagrecer para O Operário, Christian Bale perdeu para sempre o sex appeal que seu rosto tinha antes, e Renée Zellweger é capaz de morrer de inanição antes de perder um milímetro que seja das bochechas que adquiriu ao engordar para Bridget Jones)*.
Também tendo a rejeitar performances muito maneiristas, intensas sem necessidade, "larger than life". Acho Daniel Day-Lewis e Meryl Streep não apenas grandes atores: são os dois maiores. O que não me impede de achar a performance dele em Sangue Negro um dos casos mais extremos de "overacting" da história do cinema (Lewis é operístico quando deveria ser apenas contido); e vejo a atuação de Streep em Dama de Ferro como simplesmente um equívoco, do início ao fim (é muito pré-calculada e dolorosamente afetada). As pessoas em geral, porém, tendem a se impressionar muito com atuações assim, e o Oscar que ambos ganharam é prova disso.
Ora, a atuação não é uma ciência exata: é uma arte. E não só seu julgamento passa por gostos pessoais como também tem relação direta com o projeto estético do filme como um todo. Sir Anthony Hopkins ou dame Maggie Smith certamente seriam péssimas escolhas para os propósitos ultrarrealistas dos filmes de um Bruno Dumont, assim como os atores não-profissionais de Robert Bresson (que ele chamava de "modelos") dariam um vexame homérico se escalados para um filme de William Wyler.
Mas deixemos os casos específicos e muito experimentais e fiquemos no cinema mais convencional. Em geral, é possível considerar uma atuação como "boa" quando o ator convence o espectador daquilo que representa. Se o público chega a esquecer que está vendo uma performance, então, melhor ainda.
O grande público aprendeu com os anos a diferenciar muito bem as atuações ruins das medianas. Mas as "boas" e as "grandes" ainda confundem as pessoas. É improvável que alguém em sã consciência tenha Ben Affleck ou Kristen Stewart** como modelos de boa atuação, mas há pessoas que juram que George Clooney e Anne Hathaway estão no mesmo nível de excelência de um Willem Dafoe ou uma Melissa Leo; tomam estrelato por proeminência artística (eu, pessoalmente, adoro Joan Crawford, mas sei muito bem que ela não tinha os recursos dramáticos de uma Irene Dunne***, atriz pela qual sempre tive indiferença).
Clooney e Hathaway são bons atores, até acima da média, e com a vantagem de terem mais charme que 90% dos demais. Ele nos impressiona ao urrar de dor durante uma tortura em Syriana, e ela nos comove ao cantar e chorar ao mesmo tempo em Os Miseráveis. Mas quantos atores não seriam capazes de urrar de dor de forma mais ou menos semelhante em uma cena de tortura? E quantas atrizes não poderiam cantar e chorar ao mesmo tempo, de modo tão comovente quanto (e com até mais afinação)?
O que diferencia uma atuação competente de uma "grande atuação" está em algo para além da representação em si; é um "algo mais" que um ator consegue transmitir pelo seu personagem - um brilho muito próprio no olhar, um gesto surpreendente, uma maneira inusitada em dizer alguma palavra. A grandiosidade de uma atuação está na peculiaridade que o ator confere a ela; está no intérprete que faz algo que nunca foi visto antes - e talvez jamais será visto novamente. É o grito "mudo" de Rod Steiger em O Homem do Prego; são as expressões de inveja de F.Murray Abraham em Amadeus; é Gena Rowlands afastando as pessoas com os dedos em cruz em Uma Mulher sob Influência. Ou o caminhar de Giulietta Masina na mansão do galã em Noites de Cabíria; a impostação da voz de Jane Fonda nas sessões de análise de Klute; o sorriso forçado e tenso no rosto de Maximillian Schell em Julia. Essas atuações são convincentes pelo ponto de vista dramático, mas vão além: nelas, os atores fazem algo inimitável e acrescentam novas camadas à interioridade dos personagens, que muitas vezes inexistiam no roteiro original. Nesses casos, os atores são quase tão importantes para o resultado final do filme (e seu significado) como o roteirista ou o diretor.
Há ainda algumas atuações que pouco ou nada acrescentam ao que já estava no script, mas que são feitas de modo tão autêntico ou tão singular que transcendem o que um ator comum (ou meramente competente) poderia fazer. Quem poderia ter ataques de fúria tão acima do tom e "camp" como os de Faye Dunaway em Mamãezinha Querida? Ou ser tão engraçado em suas brigas com um fantasma como Whoopi Goldberg em Ghost? (Talvez só Steve Martin, mas de uma maneira também completamente própria, em O Espírito Baixou em Mim). Ou ser tão brilhantemente autoirônico como Bill Murray em Feitiço do Tempo? São também atuações extraordinárias, únicas em seu tipo e imbatíveis. Mas dificilmente irão ao top 10 de alguém, por não serem suficientemente "solenes". Ou, sendo mais direto: por preconceito. Palavra de quem reconhece essas atuações como do mais alto nível de originalidade - e (por que não?) grandeza. E de quem faz aqui seu mea culpa por nem ter passado perto de cogitá-las para seu ranking inicial das maiores da história.

*Para minha surpresa, Zellweger conseguiu, sim, perder as bochechas - mas acabou perdendo também os traços naturais do rosto (em um provável procedimento facial, sabe-se lá qual ele foi)
**Depois de eu escrever este texto, Kristen Stewart vem surpreendendo a todos a cada papel; estranho quanto possa parecer, se tornou uma das atrizes mais interessantes de sua geração
***No texto original, eu mencionava Geraldine Page, o que era um grande despropósito; achei melhor substituir por uma atriz contemporânea de Crawford, como Irene Dunne (até porque, desde quando o texto foi escrito, vi performances de Page que não me deixaram em nada indiferente)

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Crítica: "Joaquim"

(idem, 2017), de Marcelo Gomes

Júlio Machado em cena de "Joaquim"

"Joaquim" se dedica a mostrar um dos maiores heróis brasileiros, Tiradentes, como uma das pessoas menos heroicas possíveis. Na maior parte do tempo, o Joaquim José da Silva Xavier da tela é acima de tudo um bronco, um mercenariozinho egoísta que não vai muito além dos limites do senso comum de sua época.  O filme se concentra sobre o período antes de ele se engajar na luta pela Independência do Brasil: a ideia é mostrar justamente sua tomada de consciência, o "clique" que o distanciaria de ser apenas mais um caçador de ouro no interior de Minas para se tornar um revolucionário.

Mas "Joaquim" termina antes de vermos essa transição acontecer por completo – e mesmo se o filme continuasse, é provável que o Tiradentes de Marcelo Gomes não se tornasse nem de perto o "grande homem" que a História com H maiúsculo se ocupou de torná-lo. Uma atitude desrespeitosa, dirão uns, mas deixe que falem: é justamente esse espírito iconoclasta do filme que o torna fundamental no mundo de hoje. Afinal de contas, é importante que cada vez mais obras questionem e coloquem em crise o próprio conceito de "heroísmo" – sobretudo nestes tempos, em que as pessoas, sedentas de ídolos, chegam ao extremo de alçar grandes empresários (justo quem) à posição de modelos de seres humanos ou exemplos a serem seguidos (claro: o que eles fazem de melhor, a "qualidade" de acumular riqueza, se tornou um grande valor – talvez o maior – na nossa sociedade... mas isso é uma outra história).
  
A rigor, o longa de Marcelo Gomes poderia ter um alcance universal nessa desconstrução de um herói, mas a verdade é que o filme talvez não possua uma real capacidade comunicativa com outras culturas. "Joaquim" foi apresentado na competição do último festival de Berlim e teve uma recepção fria, algo desinteressada (na sessão para a imprensa, muita gente deixou a sala no meio – e após a projeção, houve quem se referisse ao longa com risadinhas jocosas).

Uma injustiça, porque o filme tem predicados – e muitos. Mas a culpa é toda de Gomes: ele investe grande parte do tempo de seu filme em narrar a trajetória de Tiradentes como se ela fosse uma simples aventura em busca de ouro. O filme até apresenta já no prólogo do que se trata a história do alferes da Inconfidência e promete desde então apresentar sua passagem de um simples pé rapado até se tornar um homem sedento de mudar os destinos de seu país. Em um começo à la "Memórias Póstumas de Brás Cubas", a cabeça de Tiradentes exposta em praça pública "narra" (por uma voz em off) a própria história. Ele nos diz, em tom sarcástico, que seu fim trágico se deu ao fato de, entre os rebeldes com os desmandos portugueses, ter sido o único a "perder a cabeça".

Mas o filme demora demais até o personagem começar a tomar a tal consciência política. O público brasileiro certamente há de permanecer ávido na expectativa pelo momento em que essa mudança de rumo acontecerá. Mas os estrangeiros, até isso ocorrer, possivelmente já terão se esquecido do prólogo e passarão a achar que "Joaquim" é um reles filme de aventura sem muita ação – um longa de caça ao tesouro banal, com a desvantagem de ser lento demais para os padrões hollywoodianos.

Não é exatamente que o filme tenha um ritmo arrastado; ele flui a contento. E há sempre algo interessante de se ver: a inspirada atuação de Júlio Machado no papel-título (em alguns momentos, e sobretudo em algumas fotos de divulgação do filme, ele parece uma figura de Rembrandt); a presença luminosa de Isabél Zuáa (como uma escrava em fuga); as paisagens do interior mineiro (valorizadas pela bela fotografia de Pierre de Kerchove). Em uma das cenas de maior destaque, um indígena e um escravo negro, em um raro momento de descanso, começam a cantar juntos, em uma espécie de hip hop sertanejo do século 18. Uma espécie de ilustração do surgimento da cultura miscigenada do Brasil (enquanto ideia, é uma cena demasiado pré-calculada; mas na prática, enquanto acontece, é extremamente efetiva, mágica; é o ponto alto do filme).

A figura algo rembrandtiana do protagonista

Mas "Joaquim", ao perder tempo demais não cumprindo o que a premissa prometia, pode ser uma experiência frustrante para muitos. Na realidade, parte da politização de Tiradentes se dá em um processo cumulativo, a partir de suas experiências com a realidade nacional. De fato, era preciso algum tempo para que acontecessem. E esse engajamento se dá basicamente em três etapas. Primeiro, pela própria desilusão com a corrupção dos governantes; em seguida, pelo acesso a ideais libertários, a partir do convívio com um poeta/intelectual; por fim, pela experiência na própria pele de Joaquim com grupos excluídos (o Tiradentes do filme passa algum tempo vivendo em um Quilombo). Está aí a gênese do novo Tiradentes, da parte final do longa: mais revoltado, querendo sangue.

Para além da questão da discussão sobre heroísmo, "Joaquim" é também um filme sobre tomada de consciência política. E é sobre pessoas enraivecidas com um mundo injusto que não sabem o que fazer para aplacar a própria raiva. Quer retrato melhor do sentimento do brasileiro de meados dos anos 2010? O Tiradentes do filme reproduz comportamentos diversos predominantes da sociedade brasileira (de então e de hoje): é um sujeito racista, dado ao machismo e individualista ao extremo. A certa altura, ela resume o que pensa sobre os conterrâneos brasileiros: "Todos bandidos, corruptos e vadios".

E há espalhadas pelo filme algumas falas estrategicamente incluídas no roteiro de forma que ele tenha enorme atualidade; fala-se daquele época, mas poderiam ser palavras ditas pro qualquer um de nós. "Joaquim" dialoga com a plateia politicamente desiludida de hoje; há um discurso subversivo à situação brasileira atual mais ou menos disfarçada na situação vivida por Tiradentes.

Quando Tiradentes vê na violência a única saída e decide partir para o ataque, o filme termina. Um final brusco demais e que não dá ao filme um sabor de completude; compreende-se que muitos o rejeitem. No entanto, talvez a escolha de Gomes tenha sido a mais sábia; não por algum risco de o projeto iconoclasta do filme se perder caso o Tiradentes "de ideais elevados" se prolongasse em cena, mas justamente pelo contrário. Pelo andar da carruagem, ele poderia se tornar um revolucionário truculento em excesso, o que poderia ser interpretado como uma apologia à radicalidade (e aí o filme ultrapassaria os limites da simples iconoclastia e chegaria à raias da irresponsabilidade). 

Ou será que essa era a mensagem pretendida por Gomes? Não é o que o diretor tem dito em entrevistas (e nem combina com a de seus outros filmes), mas em tempos abertos a pouca ponderação, em nada surpreenderia se "Joaquim" fosse visto como um clamor popular em busca de sangue derramado. O que, ao menos no nível da simbologia, não seria nada mal.

quinta-feira, 30 de março de 2017

Crítica: "Os Belos Dias de Aranjuez"

(Les Beaux Jours d'Aranjuez, 2016), de Wim Wenders*

Cena do longa, que estreou no Festival de Veneza, em 2016

Foi entre aplausos comedidos e bocejos que Veneza recebeu "Os Belos Dias de Aranjuez", filme do alemão Wim Wenders, exibido na disputa pelo Leão de Ouro. Adaptado de uma peça de Peter Handke (que colaborou com o cineasta em "Asas do Desejo"), o longa foca basicamente uma cena: um homem e uma mulher conversando em um jardim.

Wenders cria uma espécie de Éden (há até uma maçã em cena) como cenário para o "bate papo". Em geral, o homem faz perguntas – muitas delas sobre experiências sexuais da mulher. Ela responde, mas sem detalhes eróticos; narra suas relações de modo abstrato, em falas literárias que transitam entre o descritivo e o filosófico. E o filme se prolonga sobre esse diálogo, sempre partindo de ideias promissoras sobre a diferença entre os sexos, mas que pouco são desenvolvidas.

"Essa diferença [entre sexos] já causou guerras, mas também a coisa mais bela do mundo, que somos nós", disse Wenders, na coletiva de imprensa. "Gostei do texto por que mostra como um sexo vê o outro. E, a cada dia, em vez de respostas, temos mais perguntas sobre isso."

O longa é em 3D e, a priori, é difícil pensar em um filme que necessitasse menos dessa tecnologia. "O 3D me faz levar o público para dentro da obra. Não poderia ter conseguido isso de outra forma", explicou o cineasta.

Mas a tridimensionalidade tem outros efeitos, como ampliar a beleza estival das imagens e reforçar o caráter teatral do longa; embora a câmera fluida de Wenders atue no sentido oposto, libertando o material do formato para o qual o texto foi criado, o 3D resgata sua teatralidade – experiência semelhante à de ver atores de carne e osso. O procedimento não resulta em muita coisa, mas esse estranhamento causado por esse "retorno" ao teatro talvez seja o que o filme tenha de mais interessante. 

Primeiro filme em francês de Wenders, o longa tem o que o cinema da França traz de melhor –inteligência e ousadia –, mas também de pior: a afetação e a tendência ao falatório; o filme é pura verborragia. Às vezes lembra "Le Camion", de Marguerite Duras, e "O Ano Passado em Marienbad", de Alain Resnais, mas quase sempre sem ir aonde prometem suas pretensões.

Wenders é um homem inteligente e talentoso (e autor de ao menos uma obra-prima: "Paris, Texas"), mas talvez autoconfiante demais nessas suas duas qualidades, a ponto de achar que um longa tão insatisfatório pudesse ser comprado como “grande filme”. A crítica, que no passado costumava cair na lábia do diretor em projetos pretensiosos, mas inócuos, desta vez, felizmente, soube perceber isso: a repercussão foi, no geral, negativa. É mais uma vez um Wenders inquieto e cheio de "pontos de partida". Mas inquietude apenas e ideias não desenvolvidas não fazem bom cinema.

*Texto adaptado do originalmente publicado na Folha de S.Paulo, detentora dos direitos de reprodução; o original foi publicado na cobertura feita para o jornal, em 02.set.2016, e está no link http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/09/1809314-filme-de-wim-wenders-e-recebido-entre-aplausos-e-bocejos-em-veneza.shtml

quinta-feira, 9 de março de 2017

Crítica: "Silêncio"

(Silence, 2016), de Martin Scorsese

Andrew Garfield em "Silêncio"

"Silêncio" se passa no século 17, quando Portugal e Espanha saíam pelo mundo impondo sua religião, como uma das (várias) formas de manter domínio das terras "bárbaras". A trama de Scorsese foca as missões jesuíticas portuguesas na Ásia; começa quando dois padres, Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver), se arriscam a ir ao Japão em busca de outro missionário, Ferreira (Liam Neeson), que desapareceu enquanto tentava converter os nipônicos ao cristianismo.

Mas como qualquer outra viagem, essa é também uma forma de os religiosos fazerem uma busca interior – o que, no caso específico, significa uma procura de um maior contato com Deus. Já no Japão, depois que os dois jesuítas se separam, Rodrigues cada vez mais percebe que, em um mundo em que os humanos sofrem incessantemente, o Criador parece responder com apenas uma atitude: o silêncio (daí o título).

Scorsese cresceu em uma família católica. Se continuou exercendo a fé religiosa depois disso (em entrevistas, já deu versões desencontradas sobre o assunto), pouco importa; ao menos em seu cinema, percebe-se com clareza a manifestação de uma forte influência cristã. Embora já tenha chegado ao extremo de narrar trechos da história de Jesus, em "A Última Tentação de Cristo", é no campo da moralidade de suas obras que o cristianismo se faz notar com mais força.

É bem provável que, com "Silêncio", a intenção do cineasta fosse fazer um estudo de caso sobre a "fé humana", em uma acepção bastante ampla, não apenas religiosa; seu sentido poderia se expandir para a fé na vida, a fé em si mesmo, a "fé no cinema" (vá lá...). Mas o que o longa mostra, no fim das contas, é fé puramente cristã – mais especificamente católica. Se antes a admiração pelo catolicismo surgia em Scorsese principalmente no que tange a julgamentos de ordem moral por parte dos personagens, em "Silêncio" ela virou o tema do filme (a "crise de fé" é antes uma premissa que faz a trama desembocar nesse seu cerne verdadeiro). 

É possível fazer bom cinema religioso? Grandes diretores já provaram que sim. Dreyer, por exemplo, expôs em filmes sua crença pessoal sem pudores, e mesmo se o espectador não compartilha da mesma visão dogmática, é improvável que fique indiferente a seus trabalhos, que são admiráveis em vários níveis. Porque o que mais toca e impressiona no cinema religioso bem feito não é sua eventual pregação hierática; é bem mais a capacidade desses filmes de transmitirem algum tipo de energia "mística" para além da transmissão da palavra religiosa em si.

(É curioso que um dos filmes mais reverenciados de Dreyer se chame "A Palavra", quando o que há de mais poderoso ali é tudo o mais que o longa contém para além do que é falado. Filmes como aquele têm um poder de uma ordem que escapa ao do palavrório proselitista; o sentido "espiritual" desses filmes existe graças a uma conjugação de artifícios cinematográficos, que incluem enquadramentos, sons [e silêncios], encenação, luz... Reforçados antes pela maneira como as palavras são ditas do que pelas palavras em si.)

É preciso ser um mestre para conseguir bons resultados nesse tipo de cinema, e embora Scorsese já tenha demonstrado várias vezes na carreira ser capaz de maestria, desta vez ele fracassou. Porque "Silêncio" não possui força "mística" de nenhuma espécie; sua força – se tem alguma – é de natureza antes "dramática". Afinal, compreende-se facilmente o sofrimento do protagonista, mas em nenhum instante o espectador tem acesso à dimensão espiritual do que ele sofre. A questão da crise da fé existe e persegue Rodrigues, mas ela se limita a aparecer no filme basicamente em um único aspecto: na atuação esforçada (e no geral boa) de Garfield. O ator até tenta transmitir seu drama ao público por um prisma menos terreno e mais "esotérico", mas o resto do filme é todo concebido a atuar em outra corrente. Mais que lidar com a necessidade de algum milagre que comprove a existência de Deus, o desafio de Garfield é lidar com um diretor que exige dele um milagre... Mas que não faz a sua própria parte.

O conflito interno de Rodrigues não tem ressonância em nenhum outro aspecto do longa. Cinematograficamente, Scorsese prioriza a busca do jesuíta por Ferreira, o missionário desaparecido, deixando a procura por respostas divinas em segundo plano; ou seja: o filme não seria lá muito diferente se não houvesse o contexto da "crise de fé" e Rodrigues estivesse apenas em busca de, digamos, um pote de ouro ou atrás de uma princesa raptada.

Para um longa que se pretende sobre a busca por Deus, Scorsese dá bizarramente pouca atenção à criação de uma atmosfera de dúvida ou "mistério" religioso. As elegantes e frias imagens em tom azul-petróleo (de Rodrigo Prieto) sugerem, sim, algum tipo de escuridão, de desconhecimento, mas as dúvidas que elas suscitam nada têm nada a ver com "sentimento religioso"; são meramente uma representação de um local exótico e sobre o qual se tem poucas informações. "Silêncio" é um filme que lida com um tema abstrato ao extremo, mas que o trata de maneira pobremente concreta. As referências visuais à Paixão de Cristo estão por todo o filme, dos cabelos do protagonista às cenas que remetem à crucificação - tudo de uma tediosa literalidade. A ponto de as poucas respostas divinas surgirem em eventuais vozes em off, em que o Criador, com boa prosódia e voz empostada, diz frases como "Eu sempre sofrerei contigo" (que poderiam ter saído de um CD narrado por Cid Moreira).

O que é uma lástima, porque Scorsese já foi capaz de criar um certo tipo de atmosfera repleta de uma dimensão espiritual – mesmo em filmes "não religiosos", como "Taxi Driver". No longa de 1976, há algo de atordoantemente messiânico no puritanismo maníaco de De Niro (e de satânico no canhestro personagem interpretado pelo próprio Scorsese, em uma ponta, como um passageiro de táxi). E a obsessão pela virtude e a crença na capacidade de salvar os impuros do Travis Bickle de De Niro é sensitivamente percebido pelo público por meio de elementos fílmicos outros (a trilha sonora ajuda sobremaneira) que não só a brilhante perfomance do ator. Mas em "Silêncio", cabe unicamente a Garfield (que apesar de talentoso, não é em nada um De Niro) tentar tornar uma abstração (a fé) em algo palpável – ou minimamente sensível; já Scorsese, no que lhe cabe, enquanto diretor, se vale apenas de concretudes. "Silêncio" é a prova de um embotamento artístico em um nível constrangedor. 

E Scorsese não tem a menor preocupação de contrabalancear as coisas; ele não apresenta nada de minimamente negativo nas missões jesuíticas – ele parece não ver problemas sequer no princípio de se impor uma religião a um povo que tem outras crenças (ou que não crê em nada). Parece de fato achar que o catolicismo é salvação – os padres que ele nos mostra são apenas pessoas cheias de boa vontade de mostrar a "verdade" a quem ainda não a encontrou (o espectador, talvez?). 

Mas eu estaria sendo mentiroso se dissesse que "Silêncio" faz proselitismo ou tem a intenção de converter o público não católico. Mas o filme tem uma visão religiosa tão unilateral que é difícil chegar ao fim sem ter a impressão de que talvez Scorsese queira, no fundo, salvar a humanidade pela via da fé cristã (uma espécie de Travis Bickle menos insana e mais afável).

Uma das referências visuais à história de Cristo

"Silêncio" tem sido acusado de longo demais, arrastado e algo chato, e eu preciso dizer que concordo só parcialmente. Acho o que o filme tem um bom andamento, apesar de meio reiterativo (ou seria repetitivo?); podia mesmo ser mais curto. As imagens de Rodrigo Prieto são de fato esplendorosas (foi a única indicação ao Oscar que o longa recebeu), mas não trazem muito mais ao filme que não seja beleza meramente estética. Há, no entanto, um outro problema que me incomoda mais, de natureza linguística. Ora, ninguém que for fazer um filme sobre Jesus precisa exigir dos atores que falem em aramaico (como Mel Gibson fez em "A Paixão de Cristo"); o público pode ouvir o Sermão da Montanha em qualquer língua moderna e não se importar com essa infidelidade histórica. Mas quando se convenciona que o japonês é de fato o japonês, mas o português é o mais puro inglês hollywoodiano, alguma coisa soa mais falsa do que deveria. E quando os japoneses (vários deles) começam a travar longas conversas em português (na verdade, inglês) com os exploradores, aí o radar das regras de verossimilhança apita com força total (e Driver, cujo personagem era totalmente dispensável no filme, parece ainda forjar um sotaque meio latino para que seu inglês soe algo "aportuguesado"; difícil fazer vistas grossas para algo tão ridículo). 

"Silêncio" não tem aquele tipo de inventividade visual e de montagem criativa que o velho Scorsese trazia a cada nova produção, mesmo quando seus filmes não rendiam tão bem. Sua carreira viu um notório esgotamento artístico após "Cassino" (1995). Com "O Lobo de Wall Street" (2013), seu último filme, em alguns momentos se tinha a impressão de se iniciava um período de retorno do diretor à boa inspiração perdida. Mas seu novo trabalho vem corroborar que, no bojo do Scorsese pós-"Cassino", aquele longa era antes uma exceção que uma nova tendência. O Scorsese de hoje, infelizmente, é ainda aquele capaz de filmes pouco empolgantes como "Silêncio".

domingo, 5 de março de 2017

Crítica: "Logan"

(idem, 2017), de James Mangold

O texto abaixo é uma reprodução da reportagem crítica escrita por mim e publicada no site UOL no dia da première mundial de "Logan", que encerrou o festival de Berlim 2017. O link para a matéria original, publicada em 17 de fevereiro de 2017, está aqui.

Hugh Jackman em "Logan"

----
Bruno Ghetti
Colaboração para o UOL, em Berlim (Alemanha)

A desilusão com o mundo moderno e o mal-estar do homem de hoje foram a grande marca deste Festival de Berlim. Não à toa, o evento chega ao fim com a exibição de "Logan" (exibido fora da competição), de James Mangold, longa que põe fim à trajetória de Hugh Jackman na pele do mutante Wolverine, personagem que o tornou uma grande estrela mundial. E o Wolverine que se vê em cena é a desilusão encarnada.

Foram 17 anos em que Jackman volta e meia retornava ao herói, em geral sempre roubando a cena, com seu temperamento estourado e seu (mau) humor peculiar. Em "Logan", ele continua o Wolverine que já conhecemos, com essas mesmas características, só que desta vez surge com um desânimo perturbador. Nada parece realmente lhe dar prazer. O Logan do último filme da franquia é um sujeito deprimido, que quando não faz cara feia de insatisfação com o que o rodeia, faz de raiva – muita raiva, de praticamente tudo.

Por que tanta angústia? A trama se passa em 2029 e, a certa altura do longa, o próprio Logan diz: "O mundo não é mais como já foi". Claro: as chances de ele estar no fundo se referindo ao planeta de 2017 são altíssimas. Mas há outras questões a respeito deste Wolverine que explicam sua crise: é um poço de culpa, pela própria natureza violenta e por todo dano (e mortes) que já causou ao longo de sua trajetória.

Mini-Wolverine

A trama começa com Logan sendo procurado por uma mexicana que quer que ele a conduza e à sua filha para um local escondido, no estado de Dakota do Norte. A princípio, o espectador não entende muito bem do que se trata, mas logo descobrirá que a menina é uma das diversas crianças frutos de uma experiência financiada por grupos poderosos interessados em desenvolver pequenos soldados a partir do material genético de mutantes. A garota, que se chama Laura, tem estranhamente (ou nem tanto assim) exatamente os mesmos poderes de Wolverine: lâminas bastante afiadas nas mãos, além de muita ira e uma força descomunal. Apesar do aspecto frágil, é uma pequena e perigosa homicida. De alguma forma, porém, é ela que vai trazer algum alento a Logan.

"Eu estava muito nervoso, mas o filme ultrapassou minhas expectativas". disse Hugh Jackman, em conversa com a imprensa. "Amo esse personagem. Não posso dizer que vou sentir falta, porque estará sempre comigo. É parte de quem eu sou e as pessoas vão sempre me abordar na rua por causa dele", diz.

O filme ganha estrutura de road movie quando Logan cai na estrada com Laura pelos Estados Unidos (acompanhados no carro de um decrépito Charles Xavier, com a saúde bastante fragilizada). Wolverine faz o que o público espera dele: tem boas tiradas com seu humor cínico e dizima os inimigos que encontra pela frente. E quando se diz aqui "dizima", não é exagero: o filme é de uma truculência pouco habitual a um blockbuster de heróis, geralmente pensado para atingir o público de todas as idades.

"Logan" é mais do que violento: é sanguinário. Como nunca, Wolverine assassina, desfigura corpos e rostos dos oponentes, até decepa cabeças. E a pequena Laura não fica muito atrás: faz um estrago terrível em seus inimigos. No começo, é até engraçado ver uma figura tão miúda lutando e matando (enquanto dá pequenas urradas), mas chega um ponto em que o espectador se pergunta: o quão saudável – ou normal – é ver uma criança agindo como uma assassina? Ou mesmo o próprio Wolverine: é mesmo tão "divertido" assim ver esse banho de sangue todo?

Mas essa é exatamente uma das intenções do longa: uma visão crítica sobre a violência. "Uma das coisas que me empolga é falar com grandes audiências, então acho importante usar essa plataforma para tratar de outros assuntos em vez de vender camisetas", disse o diretor James Mangold. "Só usei crianças inteligente e com pais inteligentes, que pudessem orientá-las. Não é um filme para crianças, simples assim. [Com essa premissa] O estúdio nos deu o aval e liberdade para que o filme fosse feito pensado em adultos. Temas como vida e morte puderam ser explorados com um nível de sofisticação que se usa geralmente para plateias com idades acima de 14 anos".

"O filme é sobre decidir se é mais seguro viver sozinho ou, apesar de isso poder ser perigoso, manter conexões com os outros. Não interessa se é um faroeste, comedia romântica, filme de herói: o importante é transmitir a história", disse Jackman, elogiando a capacidade de Mangold de fazer isso.

De fato, o filme é bastante fluido para as 2h16 de duração. Há algumas cenas mais divertidas, sobretudo quando Logan (justo quem!) tenta ensinar modos para a pequena Laura, que, por ter passado a vida inteira em um laboratório, não tem sequer noções básicas de boas maneiras. Mas fora isso, o que predomina no filme é um tom algo soturno, às vezes até triste. E os fãs da série que não esperem ser poupados de acontecimentos trágicos: não é um filme "feito para agradar". Tem uma proposta reflexiva, não evita abordar assuntos desagradáveis, mas que fazem parte da vida; e é isso que o torna mais maduro do que praticamente todos os filmes de herói já lançados até agora.

Política
Obviamente, a conversa com a imprensa teve um tom politizado. Sir Patrick Stewart fez questão de pedir desculpas. "Estou aqui com um sentimento de vergonha de morar em um país cuja metade da população votou no Breakfast [café da manhã], digo... o Brexit [risos]. Desculpem... a diferença é que o Brexit é mais difícil de engolir", disse, tirando risos dos jornalistas. "Em nome dos que querem continuar na Europa, peço desculpas", disse.

Jackman afirmou que não poderia sequer imaginar um filme como "Logan" há quatro anos. "É um sinal de que esses caras [roteiristas] viram que algo estava acontecendo", disse, se referindo ao movimento que desembocaria na confusa realidade política atual. "Só desta vez senti que percebi a essência do personagem. Quando, no futuro, me perguntarem qual filme devem assistir para compreendê-lo, eu vou responder: é este. É um filme que mesmo quem nunca leu uma HQ na vida pode aproveitar alguma coisa."

É uma dupla verdade: ninguém precisa ter visto nenhum outro filme da franquia nem lido os quadrinhos para acompanhar "Logan". E percebe-se que, de fato, ele compreendeu como nunca seu personagem. Falar de grande interpretações de atores em filmes de ação ou de heróis não é algo corriqueiro, mas a de Jackman neste último longa sobre Wolverine surge como uma grande exceção. Sua atuação é preciosa: seus olhares nunca estiveram tão intensos, desesperados. Pelos seus olhos, entendemos que, de fato, Jackman já não poderia mais continuar dando vida a Wolverine – de certo modo, virou um fardo ao seu potencial como ator. E, afinal, tudo, em algum momento, chega ao fim, nos diz o filme. E, neste caso, o fim não poderia ser no momento e da maneira mais acertada.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

"La La Land - Cantando Estações"

(La La Land, 2016), de Damien Chazelle


O texto abaixo é uma reprodução da reportagem crítica escrita por mim e publicada no site UOL no dia da première mundial de "La La Land". O longa abriu a competição do Festival de Veneza, em agosto de 2016. Saiu de lá premiado com a Copa Volpi de melhor atriz para Emma Stone (escolha a meu ver injusta, já que havia concorrentes de mais categoria, como Natalie Portman, por "Jackie"). Confira, abaixo da imagem, o texto na íntegra (que pode ser também encontrado no link: https://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2016/08/31/ryan-gosling-e-emma-stone-espalham-musica-e-romance-na-abertura-de-veneza.htm ).

Ryan Gosling e Emma Stone em cena do musical

------
Bruno Ghetti
Colaboração para o UOL, em Veneza (Itália)

O 73º Festival de Veneza começou nesta quarta-feira (31) em clima de romance e saudosismo, mas também com toques de transgressão. Todos esses elementos fazem parte do musical “La La Land – Cantando Estações”, do americano Damien Chazelle (de “Whiplash – Em Busca da Perfeição”), que abriu, pela manhã, a mostra competitiva. E que também deu o que talvez seja seu primeiro passo para uma provavelmente bem-sucedida temporada de prêmios em Hollywood.

Mesmo antes da estreia, o filme vinha sendo apontado como nome forte nas premiações americanas, que começam no trimestre que vem. O longa de Chazelle tenta aproveitar o caminho trilhado nos últimos três anos por “Gravidade”, de Alfonso Cuarón, “Birdman”, de Alejandro G. Iñárritu, e “Spotlight – Segredos Revelados”, de Tom McCarthy, todos exibidos em Veneza e, em seguida, bastante premiados nos EUA – alguns, inclusive, com o Oscar. Nome em ascensão em Hollywood, Chazelle, 31, parece ter sido escolhido a dedo pela curadoria do festival para dar prosseguimento a essa nova tradição veneziana.

A trama não tem nada de novo: é sobre uma garçonete (Emma Stone) que sonha em se tornar uma estrela de Hollywood. Ela conhece um aspirante a músico (Ryan Gosling), que só aprecia o jazz à moda antiga, mas que precisa viver de bicos tocando hits comerciais em restaurantes de gosto duvidoso. Há alguma tensão sexual entre os dois, que logo se apaixonam, vivendo um romance que será comprometido quando um deles alcançar o sucesso.

O filme é um manancial de referências cinematográficas, sobretudo aos musicais clássicos americanos. Mas não apenas – aliás, talvez seja um longa francês, “Os Guarda-Chuvas do Amor” (1964), de Jacques Demy, o grande eixo de inspiração sobre o qual a obra de Chazelle foi construída. “La La Land” traz o mesmo tipo de cores berrantes, um estilo semelhante de romance melancólico e até canções à la Michel Legrand (as músicas são de Justin Hurwitz, autor da trilha de “Whiplash”).

“Hoje em dia, mais do que nunca, precisamos de romance e esperança”, disse Chazelle, durante conversa com jornalistas, justificando a escolha pelo gênero musical. “A música sempre me inspirou muito. No filme, mesmo nas partes sem canções, eu queria que também elas soassem musicais, como que em um grande contínuo em que a música nunca parasse”, explicou o diretor, ressaltando o cinema enquanto “linguagem dos sonhos”.

“O filme não tem nada de cínico”, completou Emma Stone. “É sobre ter sonhos e esperanças e ir à luta para realizá-los. Os jovens de hoje são céticos demais. Tudo o que espero com esse filme é que os [jovens] que assistirem mantenham seus sonhos e trabalhem duro”, arrematou.

O longa começa com um alucinante número musical em um engarrafamento de uma avenida de Los Angeles, todo filmado em plano-sequência (ou seja: uma cena sem cortes). Entre coreografias inesperadas e gente dançando em cima de carros, a cena traz pessoas “normais” que, de repente, se entregam à música no meio do congestionamento. Na letra, expressam sua vontade de se dar bem na capital mundial do show bizz. A cena arrancou calorosos aplausos da imprensa.

Mas, depois, o filme se torna mais convencional – ao menos aparentemente. Os números musicais são pouco marcantes (e está aí o grande problema de se começar um filme de forma tão explosiva como aqui). Em muitos deles, chega a ser intrigante a falta de coreografias, mas quando finalmente vemos Stone e Gosling tentando sapatear e fazendo um desajeitado duo no Griffith Park, entendemos por que Chazelle as evitou o quanto pôde.

É justamente isso um dos pontos mais interessantes do filme: o escapismo existe, mas pela metade. A vida real está sempre à espreita, seja na falta de jeito dos atores ao dançar e cantar, seja nas desilusões das personagens. O filme é uma grande fantasia, mas com os pés no chão; apesar do aspecto de faz de conta, traz elementos realistas, efeito que Chazelle diz ter procurado propositalmente.

“Quais as emoções do mundo moderno podem gerar música? É isso que eu quis fazer com o meu filme”, disse o cineasta. “Quisemos fazer algo poético a partir dos problemas reais das pessoas”, completou, deixando claro o cuidado para não fazer um musical fora de seu tempo, mas preservando a magia inerente a esse gênero cinematográfico.

Em “Whiplash”, Chazelle já havia mostrado ser é um cineasta de sentimentos fortes; o melhor do seu cinema está nos rompantes, nos excessos. Não é muito dotado para a leveza, o equilíbrio, e por isso mesmo “La La Land” funciona mal nas cenas mais delicadas, sutis. A primeira metade traz vários tropeços, mas o filme cresce muito em seguida e consegue forjar uma personalidade mais autêntica a partir da metade, quando os dramas dos protagonistas se intensificam. Termina como um belo musical com toques transgressores.

À imprensa, Emma Stone fez questão de elogiar o colega de elenco Gosling, que não pôde estar em Veneza para promover o longa: “Ele conduz uma dança como ninguém”. E foi ainda mais efusiva nas palavras dirigidas ao diretor: “Damien é jovem, talentoso e também o diretor e roteirista mais colaborativo com quem já trabalhei. É sempre aberto a ideias. E isso sem perder sua visão de artista sobre o filme”, disse. Em seguida, como que notando um tom excessivamente elogioso em seu comentário, encarregou-se ela mesma de quebrar o tom solene: “Estou brincando: a verdade é que ele é um lixo!”. Os jornalistas gostaram mais dessa segunda linha de comentário e caíram na gargalhada.

No geral, “La La Land – Cantando Estações” parece ter causado uma boa impressão nos críticos. O longa já tem distribuição garantida no Brasil, com previsão de estreia para janeiro, época do ápice da temporada de prêmios americanos.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Top 5 alternativo de 2016


Todo ano costumo fazer no Facebook um Top 10 com os melhores filmes do ano, mas também uma lista mais descontraída, com alguns Top 5 com categorias alternativas, destacando filmes que foram ou supervalorizados ou pouco badalados ao longo do ano. A lista obviamente se concentra em filmes que tiveram destaque crítico, e não em projetos natimortos ou muito pequenos; a escolha dos piores filmes, por exemplo, tem mais a ver com a excessiva pretensão do projeto (e com a injustamente boa recepção que tiveram por alguns críticos) que propriamente com a qualidade fílmica em si (a ausência de blockbusters de herois é prova disso; como nem considero objetos criticamente relevantes, estão fora do jogo). Seguem as listas

Os “não rolou” (não são lá "ruins", mas ou foram supervalorizados pelos colegas ou meu radar de “truque” apitou forte): 
- "Carol" (preocupação formal demais, paixão/amor/calor de menos) 

- "Boi Néon" (o filme que devia operar no nível do instintivo, mas que é intelectualizado, pré-calculado, superescrito em excesso)  

- "De Longe te Observo" (outro que talvez funcionasse quando era roteiro – mas, como filme, não ‘acontece’) 

- "A Chegada" (uma gigantesca ‘bar forçation’ [como diriam os britânicos, rsrs]) 

- "Na Ventania" (oh, que lindo preto e branco estetizzzzzado zzzzzz)

As decepções (expectativa alta, mas quebrei a cara)
- "As Montanhas se Separam" (não dá pra aceitar um filme com simbolismos do naipe: ‘Para representar a ganância capitalista, vou batizar um personagem de... Dólar!’. Sério, Jia: tu é capaz de coisa BEM melhor) 

- "O Filho de Saul" (filme de quem espera na porta da sala pra receber os cumprimentos pelo grande aporte à ‘Arte com A maiúsculo’) 

- "Youth" (wtf Sorrentino?? Vontade de bandear pro lado dos haters) 

- "O Botão de Pérola" (a fórmula deu megacerto em "Nostalgia da Luz", mas aqui o malabarismo do roteiro simplesmente não funciona) 

- "BR 716" (Domingos Oliveira é um chato genial e adorável, mas "Caio Blat imitando Domingos Oliveira" é das coisas mais insuportáveis do mundo)

As surpresas (não dava nada por eles, mas adorei)
- "Elis" (super assistível e com Andréia Horta carregando o mundo nas costas)

- "Nise, o Coração da Loucura" (simples e muito tocante; cinema convencional da mais alta qualidade) 

- "Rua Cloverfield 10" (o blockbuster [sem ser] do ano)

- "Amor e Amizade" (simplesmente delicioso – talvez o melhor filme que ninguém viu do ano)

- "Florence, Quem É Essa Mulher?" (ri bastante; traz um ótimo Hugh Grant e a melhor Meryl em anos)

A lista da desonra (nem precisa de comentários) 
- "O Demônio de Néon"

- "Joy"

- "Tudo Vai Ficar Bem"

- "A Grande Aposta"

- "Capitão Fantástico"


 


sábado, 17 de dezembro de 2016

TOP 10 de 2016


O dez melhores filmes de 2016 (que entraram em circuito comercial no Brasil ao longo do ano).

1. "Cemitério do Esplendor" (A Weerasethakul)
2. "As Mil e Uma Noites: Volume 2, o Desolado" (M. Gomes)
3. "Elle" (P. Verhoeven)
4. "Sangue do Meu Sangue" (M. Bellocchio)
5. "Fogo no Mar" (G. Rosi)
6. "A Corte" (C. Vincent)
7. "Animais Noturnos" (T. Ford)
8. "É Apenas o Fim do Mundo" (X. Dolan)
9. "O que Está por Vir" (M. Hansen-Love)
10. "Mate-me por Favor" (A.R. Silveira)

Menções honrosas:
"Curumim", "Spotlight", "Que Viva Eisenstein", "Amor e Amizade", "Ralé"

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

TOP 10 nacional de 2016


Ao menos no cinema nacional, 2016 foi um ano bem bom. A irregularidade continua um problema generalizado, mas todos os desta lista vieram com trechos muito inteligentes, instigantes, comoventes (alguns até brilhantes). 

O meu TOP 10 nacional de 2016 seria algo assim (alguns deles já foram resenhados neste site; os links estão nos títulos):

Cena do sensacional "Mate-me por Favor", campeão nacional


1- "Mate-me por Favor" (Anita Rocha da Silveira)
4- "Fome" (Cristiano Burlan)
5- "Meu amigo Hindu" (Hector Babenco)
7- "Cinema Novo" (Eryk Rocha)
8- "Aquarius" (Kleber Mendonça Filho)
9- "São Paulo em Hi-Fi" (Lufe Steffen) 
10- "Nise, o Coração da Loucura" (Roberto Berliner) e "A Despedida" (Marcelo Galvão)

Menção especial: "A Paixão de JL" (Carlos Nader)