terça-feira, 27 de outubro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "Ralé"

(Brasil, 2015), de Helena Ignez


Simone Spoladore vive a Helena Ignez em versão 2015

Helena Ignez foi casada com Glauber Rocha, já namorou Júlio Bressane e foi por décadas companheira de Rogério Sganzerla. Mas em seus filmes como diretora, embora haja muito de Sganzerla e Bressane (não vejo quase nada de Glauber), ela mostra uma voz bastante pessoal, única. É uma pena que só tenha passado oficialmente à direção anos após a morte de Sganzerla, em 2004.

Em “Ralé” ela adapta a peça homônima de Maxim Gorki para o contexto social brasileiro de hoje. Mostrando personagens marginalizados, faz uma exaltação à liberdade de escolha pessoal e ao prazer; é uma ode ao hedonismo, mas sobretudo ao respeito pelo outro e pelas maneiras que cada um escolhe de ter prazer. O filme é disforme, irregular, cheio de tropeços e elementos que não se encaixam muito bem. Mas essa é a parte da pedra bruta a ser lapidada pelo espectador; há um diamante reluzente ali. É um longa recheado de grandes, lindos momentos. Um filme com alguma dureza, mas que exala ternura.

Começa com uma inserção de um trecho de “Sem essa, Aranha” (dirigido por Sganzerla e estrelado pela própria Helena, em 1970), em que Luiz Gonzaga diz: “Vivemos um período de anti-Brasil”. A situação no país mudou bastante de lá pra cá, mas é inacreditável como a fala soa atual. Helena dá uma resposta aos tempos negros atuais de ressurgimento do reacionarismo nos costumes por meio de um cinema de alta carga de poesia; a ralé que ela mostra são gays, travestis, mulheres “vadias”, pobres, indígenas, bichos-grilos e mais vários outros tipos que não se encaixam na sociedade careta e consumista do Brasil moderno. São os marginais do cinema de Sganzerla, sim, mas em versão 2015. E eles deixam claro a quem quer abafar suas vozes: não vão retroceder.

“Viva a vida!”, diz a personagem de Simone Spoladore (extraordinária!), antes de dar uma piscadela marota para a câmera. Ela encarna uma versão atualizada da personagem que Helena Ignez tantas vezes viveu nos tempos do cinema marginal, principalmente as de “O Bandido da Luz Vermelha”, “A Mulher de Todos” e os longas da fase Belair (sobretudo “Família do Barulho” e “Copacabana Mon Amour”). Deste último, aliás, a personagem Sonia Silk reaparece em cenas de arquivo – e também com a própria Helena se vestindo da personagem, em um momento especialmente bonito e comovente. Há outra forte referência ao seu próprio passado: há um filme sendo rodado dentro do filme, que se chama “A Exibicionista”, derivado de “Carnaval na Lama (ou Betty Bomba, a Exibicionista”), longa da fase Belair que se perdeu.

O elenco inclui Ney Matogrosso, o diretor de teatro Zé Celso Martinez Correia, o músico Dan Nakagawa, Djin Sganzerla (filha da diretora) e mais diversos amigos pessoais de Helena. O personagem de Ney diz a certa altura: “Está tudo muito replay dos anos 60 e 70; é como se não houvesse a necessidade de criar mais nada”. Ele tem razão, mas certamente não se refere ao cinema de Helena Ignez. Porque ele, embora revisite temas e estéticas do passado, reflete uma criação nova e com os pés no presente.

Um comentário: