segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Mostra 2015 - Crítica: "O Filho de Saul"

(Saul Fia, 2015), de László Nemes


Géza Röhrig em "Saul Fia"

A acolhida ao filme de László Nemes tem sido quase unânime, e se pensarmos que se trata de um longa de um estreante, de fato, é bastante compreensível tanta exaltação. Nemes mostra uma assombrosa competência técnica e uma enorme segurança ao narrar a história de Saul, um judeu húngaro prisioneiro de Auschwitz forçado a trabalhar na ingrata função de conduzir outros judeus à câmara de gás. Ele se torna obcecado pela ideia de enterrar o corpo de uma criança judia morta, sendo capaz de arriscar a própria vida (e a de companheiros) em nome disso.

O filme é ousado e um tanto presunçoso – quase 100% das imagens têm como foco o rosto de Saul. O formato de tela é estreito, quase igual ao de uma TV antiga. A ideia é sugerir claustrofobia e reforçar ao máximo a noção de que o que importa é o que se passa na mente de Saul – algo que Nemes reitera o tempo todo, optando também por colocar as imagens do fundo do campo fora de foco, com pouquíssima nitidez.

Comover o público com uma história passada em um campo de concentração não é exatamente difícil, e Nemes usa isso a seu favor. Mas ele é um cineasta extremamente ardiloso e sabe angariar a simpatia do espectador por métodos ainda mais sofisticados, menos óbvios. Por exemplo: mostra com crueza um grupo de judeus se despindo antes de entrar em um pavilhão, que logo descobriremos ser uma câmara de gás; mas na hora em que o gás é aberto, o cineasta poupa o público do terrível espetáculo fúnebre. A câmera de Nemes não mostra as mortes; fica do lado de fora do recinto, captando apenas os gritos de pavor emitidos pelos confinados, em total desespero do lado de dentro. O público se sente enormemente aliviado, a ponto de se comover diante da “nobreza” de atitude tão respeitosa, elegante, por parte do cineasta; Nemes conquista seu espectador.

Ocultar o horror humano e não ceder ao sensacionalismo (que poderia gerar reações emocionais mais imediatas) é um gesto artístico inquestionavelmente ético - até louvável. Mas no caso de Nemes, percebe-se que é uma ética incomodamente exibicionista; pode até ser genuína da parte do diretor, mas é uma postura que vem acompanhada de uma enorme vaidade ao se fazer notar de modo tão "exemplar", admirável – quase dá para imaginar o diretor esperando os espectadores do lado de fora da sala, aguardando que um por um lhe agradeça por esse gesto tão humano (e se Nemes fizesse mesmo isso, alguns talvez até ajoelhassem aos seus pés). O diretor tem um indisfarçável orgulho de sua própria "arte" - e exige que o espectador reconheça sua grandeza enquanto artista; faz parte do pacto. 

Mas "O Filho de Saul" tem problemas variados. O maior deles: a trama ser toda calcada no fato de o protagonista desenvolver pela criança morta uma relação quase de paternidade. Como recurso dramático, é péssimo – não tem a menor verossimilhança e, ainda por cima, torna o protagonista indefensável, já que ele sacrifica a vida de seus colegas em Auschwitz em nome dessa sua loucura. O espectador é então induzido a interpretar essa atitude de Saul em um nível alegórico - a postura artística de Nemes é tão intimidadora que quando algo que está na tela não faz sentido, resta ao público tomar como metáfora. Mas afinal: é uma metáfora do quê? De um sentimento instintivo de proteção de todo o povo judaico? É uma leitura possível, mas é preciso uma dose farta de boa vontade para engolir essa versão sem ficar uma sensação de engasgo na garganta (Mas ao menos é uma visão "poética", e encontrar algum tipo de lirismo em um filme tão perturbador e violento é tudo o que o público mais deseja.)

Mas a direção firme e autoconfiante de Nemes contorna a maior parte dos equívocos. A falta de didatismo, por exemplo, não incomoda tanto – personagens fisicamente semelhantes entram e saem do campo sem termos ideia de quem sejam e o que representam; nesse sentido, o filme é uma bagunça, mas o diretor nos joga com tanta força naquele ambiente opressivo que só nos preocupamos com o sentido geral do que vemos. Os detalhes obscuros não importam - só nos interessa Saul e seu drama.

Na pele do protagonista, Géza Röhrig tem uma atuação bastante eficiente. Mas (oh, Deus!) como o filme seria melhor se em seu lugar estivesse um grande ator de fato... seria um nocaute! Mas é Nemes outra vez em um gesto de "grandeza", como se dissesse que não quer dilacerar corações com uma interpretação antológica de um ator excepcional, com infindáveis recursos dramáticos; o filme já estaria suficientemente impregnado de tragédia humana, não precisaria estampar isso de forma ainda mais marcada nas expressões faciais do ator principal. É sem dúvida uma opção artística válida e, de novo, louvável, digna de admiração; mas acima de tudo é Nemes novamente querendo dizer que é capaz de conseguir as sensações mais extremas mesmo poupando o espectador de toda a potencialidade visual que o cinema permite (e, obviamente, esperando os aplausos por isso).

É um pouco assustador quando um cineasta iniciante já tem tanta segurança em seu próprio potencial e tanta clareza diante do seu próprio projeto estético. Ele é uma grande promessa, mas um diretor com o qual se deve ter muito cuidado no futuro. Não se pode, afinal, menosprezar o poder de manipulação por trás de procedimentos tão a priori "não manipulativos" de um talento como o dele.

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