domingo, 27 de maio de 2018

Crítica: "A Câmera de Claire"

(La caméra de Claire, 2017)

Kim Minhee e Isabelle Huppert em "A Câmera de Claire"

Hong Sangsoo, Isabelle Huppert e Kim Minhee em um mesmo filme. Combinações de talentos desse porte podem render obras-primas, mas a verdade é que costumam gerar sobretudo grandes fracassos. "A Câmera de Claire" não chega a ser uma coisa nem outra, mas em sua singular simplicidade, sua despretensão em ser "grandioso", é uma pequena e brilhante joia cinematográfica. Quase sem precedentes.  

Ao que parece, a ideia surgiu em um Festival de Cannes, quando Sangsoo improvisou uma historinha para aproveitar suas duas musas, que estavam por ali – aproveitou para também desovar mais uma leva de ideias que sua mente incansável devia estar ávida por materializar. Não por acaso, a trama se passa em um Festival de Cannes: um importante cineasta sul-coreano, So (Jung Jinyoung), apresenta seu novo trabalho na Croisette. Também na cidade está a jovem Manhee (Kim Minhee), que trabalha com venda dos filmes do diretor – e com o qual tem um caso. A chefa da moça, com ciúme de So, obriga a jovem a pedir demissão, mas sem explicar o motivo: diz apenas que Manhee é "desonesta".

A trama avança quando surge a professora de música Claire (Isabelle Huppert), que está na cidade para acompanhar uma amiga cineasta. Em sua primeira fala, ela relata: "É a primeira vez que venho a Cannes!", o que é uma divertida piada extrafílmica (será que alguma outra atriz já esteve tantas vezes no festival quanto Huppert?). Enquanto espera a sessão do filme da amiga, Claire perambula pela cidade, puxando assunto com desconhecidos e tirando fotos de pessoas que considera expressivas.

Claire deve ter uma queda especial por sul-coreanos, porque sua primeira modelo fotográfica é Manhee, e o seu primeiro interlocutor de café é So. De uma maneira sempre um tantinho pouco verossímil, mas justificada na trama por pura força do acaso, diversas coincidências acontecem, e o filme segue adiante, em sua pouco mais de uma hora de duração. Tem a leveza das comédias de erros – embora, a rigor, não seja exatamente uma: o filme não traz malentendidos e confusões. Ao contrário: o tempo todo esclarece situações mal resolvidas, com a intervenção de Claire e suas fotografias.

"A Câmera de Claire" não se pretende um filme "espiritual" ou mesmo místico, mas há algo de não natural na personagem de Huppert. Ela surge no filme o tempo todo com a mesma roupa (os demais trocam de figurino), um destoante modelo amarelo-canário, e aparece em cena em momentos estratégicos, sempre em socorro dos personagens; paira no filme como uma espécie de entidade (talvez uma fada madrinha, cuja câmera é a vara de condão capaz de mudar as pessoas).

Estaria ali, nesse ato de Claire registrar imagens, um dos pontos-chave do filme: ao tirar uma foto de alguém, é como se a câmera retirasse alguma coisa para sempre da pessoa, que jamais seria a mesma. A fotografia capta algo da pessoa que a modificará para sempre. Nunca fica muito claro o que é exatamente seria esse "algo" – mas a ideia, talvez, seja a de ressaltar que o ser humano é mutável, e de um segundo para o outro, já não é mais o mesmo. A câmera não seria tanto um "agente" assim, mas apenas uma testemunha de que o "eu" retratado era aquele só naquele momento exato em que a foto foi tirada. Claire está ali para mostrar isso aos personagens: todos mudamos, então não precisamos agir da forma como sempre achamos que devíamos (ou que esperam de nós).

Mais à frente na trama, Claire explicará a Manhee que tira fotos porque "observá-las vagarosamente é a única maneira de mudar as coisas". Provavelmente é uma metáfora sobre não incorrer nos mesmos erros, em deixar o que passou para trás e seguir adiante (Manhee, na abrupta cena final, parece realmente ter aprendido essa lição). Essa decisão sobre o próprio destino encontra ecos em um poema que Claire ensina So a ler em francês (em uma cena bem engraçada, aliás), sobre um homem que se recusa a não ter domínio sobre si; até sua morte, quando determinada, ele quer burlar, optando por se suicidar antes.

Tudo no filme parece se encaixar, de uma maneira sempre meio inesperada, até estranha, mas com alguma organicidade. Mas o longa traz um enorme mistério que desafia qualquer interpretação semiótica: a que se presta o enorme e pacato cachorro que surge recorrentemente no filme? Difícil chegar a alguma conclusão satisfatória; a impressão que fica é que o cão só está no filme porque o diretor o encontrou em Cannes e o achou expressivo (mas deixemos um voto de confiança ao diretor de que ele significa algo importante que, em uma revisão, faça mais sentido).

Mas a grandeza do cinema de Sangsoo não está tanto nas metáforas ou nas "grandes ideias" que o diretor apresenta. Está nas pequenas coisas, no prazeres prosaicos e simples de ver, por exemplo, duas atrizes tão agraciadas de talento em interação. "Observá-la me faz me sentir bem", diz Claire para Manhee quando a conhece na praia, mas a frase poderia facilmente também ser dita por nós, tanto a Manhee quanto a Claire. E Sangsoo utiliza algumas ferramentas simples que permitem explorar ao máximo o material que tem a mostrar. Por exemplo: os zoom in e out para aproximar o espectador do que é dito. Um truque antigo, básico, mas que utilizado no contexto e ocasião certa, funciona bem mais do que qualquer movimento de câmera afetado.

E há ainda a impressão de naturalidade que Sangsoo tão bem consegue obter. Mesmo que, nem sempre, o encenamento seja verdadeiramente "natural". "A Câmera de Claire" é provavelmente o mais rohmeriano do filmes de Sangsoo (e se pensarmos bem, o título talvez seja uma brincadeira com “O Joelho de Claire”, que Rohmer lançou em 1972).

O longa traz, ainda, um elemento confessional, em que o diretor escancara sua própria culpa por seu comportamento machista e pelos excessos de bebedeira (o diretor So é claramente seu alter ego). Mas mesmo com esse personagem niilista, depressivo, não impede o filme de se manter sempre luminoso, solar. As duas personagens femininas centrais o elevam; suas conversas, mesmo quando se elogiam ou concordam entre si em excesso ("Concordar é muito bom", diz certa vez Manhee, ao que Claire responde, divertida: "Concordo 100%"), são sempre entre duas pessoas que se respeitam e que estão abertas ao novo. Claire deseja conhecer mais sobre a gastronomia coreana, e Manhee se dispõe a cozinhar para ela. Já Manhee elogia um afresco, mas logo se abre a mudar de opinião diante da visão negativa da nova amiga sobre a mesma pintura. O intercâmbio com outra pessoa, especialmente de uma outra cultura, é sempre revelador, enriquecedor. É capaz de nos mudar. Claire nem precisava de sua câmera para deixar sua marca nos personagens deste belo filme.

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